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Delito de Opinião

Joãozinho ou as perguntas que as crianças fazem

Patrícia Reis, 12.04.18

Faltam 22 milhões de euros para as obras na unidade pediátrica do Hospital de São João no Porto. Digo que faltam porque estão aprovadas há um ano e nunca apareceram, portanto estão em falta.

O Parlamento e a Oposição caíram – e bem – em cima do Governo; o Governo, na pessoa de Mário Centeno, o todo-poderoso ministro das Finanças, esteve no Parlamento, numa audição conjunta das comissões de Saúde e Finanças, solicitada pelo PSD e pelo CDS a propósito do sector da saúde e da cativação de verbas para o sector.

Mário Centeno disse muita coisa, revelou números atrás de números, afirmou que a unidade pediátrica hospitalar tinha sido anunciada pelo Governo anterior sem verba para tal e bateu-se  - ferozmente - para explicar aos senhores deputados que, afinal, está tudo bem e que eles é que parecem não entender o que lhes é dito.

Bom, sobre o Hospital de São João e crianças com cancro a serem tratadas em corredores e contentores, o senhor tem razão para dizer que o anterior Governo tem responsabilidades concretas. E este governo? Também.

Não está tudo bem, é evidente, e não deixou de estar tudo bem no início desta semana quando as palavras de um responsável  daquele hospital classificaram as condições  existentes como miseráveis e indignas. Há muito tempo que não está tudo bem.

O Governo assegura que a verba, os tais 22 milhões de euros, será libertada e que as obras se farão. Ninguém perguntou, mas deveriam ter perguntado: então, quando Pedro Passos Coelho foi inaugurar a primeira pedra de uma unidade pediatria oncológica em 2015, sem verba, apoiando-se numa associação que iria angariar mecenas dispostos a levar a carta Garcia, era só para fazer parangonas de jornais? Good press? E o que aconteceu à dita cuja associação liderada por um tal de Pedro Arroja?

E, já agora, depois deste Governo ter assumido funções ninguém se ralou com o que estava a acontecer no dito hospital? Tantas perguntas, eu sei.

Acrescento outras para a realidade do dia de hoje: uma vez chegado o guito a quem de direito, que trâmites burocráticos faltam resolver? O orçamento de 22 milhões de euros tem um ano, mantém-se? O concurso para as obras afinal é válido? Ainda há mecenas? Onde foi parar a Somague, por exemplo, que assumiu que doaria uma quantia anual por dez anos? Quem não quer ajudar as crianças com cancro? Eis uma pergunta que o responsável pelo mecenato nos tempos do governo de Passos Coelho fazia certamente com um sorriso.

Enfim, talvez alguém tenha perguntado estas minudências e procedimentos e eu não tenha visto na televisão, não tenha lido nos jornais. Pode ser. O que me faz assaz confusão é que, como todos sabemos, as obras tendem a perpetuar-se, nunca são o que se espera, raramente se cumprem os prazos inicialmente previstos quanto mais o orçamento. Ninguém fiscalizou? Desde 2015?

Bom, e agora chegámos aqui. Uma vez em obras, que condições tem o Hospital de São João do Porto para dar respostas aos tratamentos de oncologia? Para onde irão estas crianças? Para outros corredores? Qual é a logística? Não consigo descortinar respostas para questões singelas.

Um pai de um doente diz que há outros espaços no hospital, que os contentores onde estão as crianças com cancro não são uma fatalidade. Diz mais, diz que tentou convencer a administração que era possível encontrar uma solução imediata e o interesse foi nulo. O Presidente do Hospital, que veio dizer que as condições eram miseráveis e indignas, pois não deve querer deslocar a administração do hospital para os contentores.

Não ouvi, nem ouvirei, um qualquer responsável dizer algo idiotamente básico e que as famílias com crianças com doença oncológica mereciam ouvir: pedimos desculpa. O pedido de desculpa, se existisse decência, seria do Governo actual e do anterior.
Esta situação não se gerou espontaneamente esta semana, tem muito, muito tempo. Mas neste país não se pede desculpa por nada, porque  seria a admissão de uma qualquer culpa e isso não é, politicamente, aceite como de bom tom, por isso faz-se o costume, culpa-se o anterior governo. Neste caso, está certo atribuir culpas, mas não chega.

O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista juntam-se aos protestos, exigem que a luta pelo queda do défice seja mais branda e que o dinheiro seja aplicado onde é preciso. No Hospital de São João? Pois, por exemplo. Recordam que a maioria governativa não existe sem o seu apoio.

Está bem, de acordo, mas, de novo, além de se matarem com retórica uns aos outros no Parlamento e nos jornais, quem é que está a tratar de arranjar uma solução para as crianças da unidade Joãozinho enquanto as ditas cujas obras começarem? Quem é que efectivamente se preocupou com as crianças e respectivas famílias desde a operação mediática do lançamento da primeira pedra? Pois, parece que ninguém.

Não é uma pouca vergonha, é uma imensa vergonha.

para acabar de vez com a cultura

Patrícia Reis, 05.04.18
Não sei se é intenção deste governo assumir que, afinal, o partido socialista agradece o apoio de artistas e agentes culturais em campanhas e afins, mas não está nada interessado em mudar o panorama nacional e entender que a cultura é a identidade do país e, por isso, merecedora de muito mais do que 0,02 por cento do Orçamento de Estado. Não sei se será politicamente correcto dizer que esta gente da cultura, afinal, é uma grande chatice, mas certamente que passará algo de semelhante pela cabeça de quem governa estas matérias.
 

O ministro da Cultura e respectivo secretário de Estado têm prestado pouco, pouquíssimo, para garantir que, por fim, num governo liderado por António Costa, a cultura tem o que na verdade merece. A dupla terrível sofre de um mal, ou de vários, e não tem qualquer salvação. Quando a coisa corre pior para o seu lado perde a autoridade e os agentes culturais, artistas, gestores, etc., batem a porta, e apelam directamente ao primeiro ministro.

Foi assim com o cinema, é assim com o resultado do concurso da Direcção das Artes para apoio financeiro para a área do teatro, música, circo contemporâneo e artes de rua, artes visuais e cruzamentos disciplinares.

Numa carta aberta a António Costa, a tal gente da cultura que, na verdade, deveríamos ser todos nós, diz que a política cultural do Governo “falhou por completo e de forma transversal”. O Governo, perante tanta lamúria, manda dizer que afinal há reforço financeiro: tomem lá mais dois milhões de euros. A ver se a coisa acalma.

O secretário de Estado, que demorou muito tempo a definir os moldes deste concurso e que perante a sua ineficácia mantém a ideia de que o modelo de concurso é bom, pasme-se, parece dizer que ainda há espaço para rever algumas coisas. E, de repente, é uma coisa juvenil, ou mesmo uma disputa infantil: ah, os meninos querem mais e vão fazer um grande alarido? Esperem, esperem que nós mandamo-vos doces.

Desta vez, doces não chegam, as manifestações estão marcadas para amanhã em Lisboa, Porto (o presidente da Câmara Municipal do Porto tem esfregado as mãos com esta polémica e posiciona-se para ficar num pódio de solidariedade e cultura como nenhum outro dirigente), Évora, Coimbra (cidade que ficou sem nenhuma estrutura cultura apoiada pelo concurso para financiamento) e Funchal, às 18h00.

Nunca entenderei a razão que faz com que a cultura seja o parente pobre do governo, deste ou de qualquer outro, sendo que este nem consegue assegurar algumas das condições do passado e mete os pés pelas mãos com o duo fantástico que preside a estes destinos.

O Partido Comunista e o Bloco de Esquerda mostram-se acérrimos defensores dos queixosos. Até há quem volte a dizer que a Cultura deveria beneficiar de um por cento do PIB do país. Há cronistas que pedem a demissão de Castro Mendes, o ministro diplomata e poeta, e de Miguel Honrado. Para mim, vale pouco.

Importa dizer ao primeiro-ministro que não pode contar com os artistas para fins meramente políticos, é preciso dar-lhes condições para servirem melhor o país, enriquecendo a nossa identidade, mostrando como não somos iguais a mais nenhum povo deste planeta. A Cultura como parente pobre num país que tem níveis aclamados de turismo ainda faz menos sentido.

Bom, estou a magicar coisas: imagine-se o que seria uma aposta concertada na Cultura como investimento económico. Isso é que era. Mas não será com este governo, nem com qualquer outro governo. Não importa realmente a ideologia, o mecanismo de funcionamento face à cultura repete-se e é, no mínimo, triste.

A América que muda

Patrícia Reis, 29.03.18

Milhares de pessoas, em especial jovens, saíram à rua e fizeram uma revolução. Não foi apenas um acto isolado, e isso é evidente para quem ouviu os diferentes discursos nas diversas cidades.

Este movimento veio para ficar e para mostrar a Donald Trump que talvez seja derrotado por quem é mais jovem, por quem é capaz de pisar um palco e, com tão pouca idade, dizer de sua justiça, invocando palavras sábias, relatando episódios traumáticos de violência, exigindo que os políticos sejam melhores. É uma revolução.

“É um novo Maio de 68”, disse a escritora Inês Pedrosa no twitter. É é verdade. Um Maio de 68 em Março de 2018 cujo enfoque não é apenas a questão da venda de armas, a falta de controlo (os jovens exigem a proibição da comercialização de armas de fogo, da venda livre de carregadores para armas semiautomáticas e o reforço dos controles de antecedentes das pessoas interessadas em comprar armas). É uma revolução pela vida, pela segurança, pelos direitos elementares, pela liberdade de expressão. Não são “jovens corajosos”, como refere o comunicado da Casa Branca, de forma condescendente. Nada disso: são jovens com voz, com ideias, com discurso, com capacidade de mobilização, com ideias, com objectivos. Tal e qual como eram os estudantes que mudaram o mundo à sua maneira em 1968.

A geração das redes sociais, do século XXI, não é comodista e preguiçosa, é informada, articulada e tem coisas para dizer, em especial quando se sente ameaçada. Estes jovens norte-americanos estão fartos, cansados de ter medo de quem possa ter uma arma e atacar. Os ataques a liceus não são ocasionais, são constantes. O poder que o negócio das armas detém nos EUA reside no esquema mafioso de benefícios financeiros para políticos para quem os eleitores, na verdade, são um pormenor de somenos na equação da democracia. Estes milhares de jovens de provenientes de diferentes meios sócio-culturais, de ambos os sexos, habitantes de vários estados norte-americanos, não querem mais conversas e subterfúgios, querem uma solução. Não podem – nem devem – ser encarados com condescendência. É a eles que o futuro pertence, são eles os leitores que Trump deve temer.

Estes jovens pensam pelas suas cabeças e não são, como explicou Naomi Wadler, de 11 anos de idade, “manipulados por adultos”. São capazes de perceber a diferença entre o certo e errado e não têm medo de enfrentar o mundo para dizer de sua justiça.

Com uma organização exemplar, a Marcha pelas Nossas Vidas foi uma iniciativa de estudantes sobreviventes do tiroteio numa escola em Parkland, na Florida, um tiroteio que ocorreu no mês passado, durou seis minutos e vinte segundos e resultou na morte de 17 pessoas. Emma González, uma das estudantes sobreviventes, de origem cubana, assumidamente bissexual, surgiu no palco principal do evento em Washington, com um casaco a lembrar o universo militar, cabelo rapado, e tornou-se o rosto de uma geração, de uma geração com direitos e exigências, uma geração que exige que sejamos melhores enquanto sociedade, na forma como nos comportamos, como lidamos uns com os outros. Emma Gonzalez anteve-se em silêncio durante quatro minutos e vinte segundos, um tempo infinito, as lágrimas a espreitarem, a rosto cerrado. Podia ser uma cena de um filme de Hollywood a puxar ao sentimento, mas é a vida real e é impossível ouvir e ver esta jovem sem qualquer comoção, é obrigatório chorar com ela.

Cameron Kasdy, outro estudante de Parkland, disse: “Desde que o movimento começou, as pessoas perguntam-me: ‘Pensas que isto vai provocar alguma mudança? Olhem à vossa volta. Nós somos a mudança”.

Christopher Underwood, de 11 anos de idade, falou sobre o irmão, baleado em 2012. Tinha 14 anos. “Na altura, eu tinha apenas cinco anos. Transformei a minha dor e raiva em acção (...) As nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecermos em silêncio sobre as coisas que importam”. A citação de Martin Luther King é exemplar do que acontece(u) na Marcha Pelas Nossas Vidas. A neta de Martin Luther King, de nove anos de idade, Yolanda Renne King pediu "um mundo sem armas". Tem o mesmo sonho do avô. Não está sozinha.

Em Los Angeles, Edna Chavez, também ela estudante de 17 anos, declarou: “Sou uma sobrevivente. Vivi no centro de Los Angeles a minha vida toda e perdi muitos dos meus entes queridos por causa da violência. Isto é o normal. (...) Eu perdi mais do que o meu irmão naquele dia, perdi o meu herói. Também perdi a minha mãe, a minha irmã e a mim mesma para o trauma e ansiedade”.

Desde Janeiro deste ano foram registados 49 tiroteios, já morreram 3 mil 159 pessoas em incidentes com armas nos Estados Unidos. Destes, 737 tinham menos de 17 anos de idade. Os jovens gritaram: “Já chega!”

A História mostrará que têm a capacidade para mudar o mundo e que nada os deteve.

carneirada? sim, somos nós

Patrícia Reis, 22.03.18
Lembra-se daquele filme no qual Dustin Hoffman fabricava uma guerra porque o negócio da guerra é apetecível e porque politicamente era interessante para certas pessoas? Não tem importância se não se recorda, o que importa realmente é que a ficção foi largamente ultrapassada pela realidade, facto inegável perante notícias como as que dizem que o Facebook permite que os dados dos seus utilizadores sejam manipulados.
 

Há empresas especialistas em manipulação e propaganda política que, não apenas nos filmes com teorias de conspiração, prevêem comportamentos e tendências e encaram a população como... não há outra forma de o dizer, portanto aí vai, uma carneirada capaz de se deixar enganar com os engodos mais simples. Todos achamos que somos inteligentes, bem formados, temos bom gosto e somos moralmente corajosos e esclarecidos e, por isso mesmo, iremos negar essa possibilidade de manipulação.

Ontem alguém me dizia: “eu uso as redes sociais mas não embarco naquilo”. A mesma pessoa, há cerca de duas semanas, lamentou a morte de Umberto Eco, a circular por aí como uma novidade, apesar de ser uma postagem com mais de um ano. Não abriu a informação, leu as gordas e lamentou a morte do autor de O Nome da Rosa. Desde que frequento as redes sociais, o Vasco Granja já morreu uma dez vezes. Há sempre quem se comova e apresente as condolências com um sentido de oportunidade digamos que estranho.

Estes episódios são exemplos quase que inocentes de como não filtramos nem analisamos a informação distribuída nas redes sociais. Lemos as gordas e comentamos. Publicamos fotografias da nossa vidinha feliz e partilhamos notícias que nos importam e que podem ajudar a criar um perfil de quem somos, do que gostamos, no limite, daqueles em quem podemos votar. Se nos atirarem areia nem coçamos os olhos. Aceitamos.

Assim mesmo se explica que a campanha para a Presidência dos Estados Unidos tenha conquistado tantos adeptos, os mesmos milhões que votaram no senhor Trump. Teriam as pessoas a noção exacta daquele em quem estavam a votar? O mais certo é a resposta ser: não. Só assim se entende a percentagem de latinos e afro-americanos que votaram neste 45º Presidente dos EUA. É inegável que o senhor não é fã de nenhuma destas componentes da sociedade.

O Parlamento Europeu convidou Mark Zuckerberg a explicar como se podem – ou não – manipular os dados pessoais dos cerca de 500 milhões que utilizam o Facebook. Até ao momento em que escrevo esta crónica, o senhor todo-poderoso das redes sociais não deu uma resposta. O convite surge por causa das notícias (divulgadas pelo London Observer e pelo New York Times) que correram mundo rapidamente: uma empresa com sede no Reino Unido, a Cambridge Analytica, usou informação do Facebook para auxiliar a eleição de Donald Trump, em Novembro de 2016. Há uma violação clara dos direitos das pessoas? Pois.

A dita cuja empresa que, alegadamente, terá manipulado os dados, recusa as acusações (Então? Estavam à espera do quê?) e afirma-se disponível para ajudar em qualquer investigação. A verdade é que existem relatos – embora indirectos – de que a empresa se especializou em criar situações online com objectivos específicos, seja fazer ganhar eleições, seja fazer cair políticos corruptos. As investigações levarão a eternidade do costume, entretanto, as redes sociais - e outras empresas às quais damos os nossos dados, bancos, lojas, etc, etc - continuarão a dar-nos de comer e nós iremos comer às suas mãos, obedientes e de olhos fechados.

É do inimigo? Raul Solnado ainda está aqui

Patrícia Reis, 15.03.18
Há quase uma década que não rimos com Solnado. Telmo Ramalho aprendeu muito com Raul Solnado e sempre quis fazer a sua homenagem, dizer os seus textos mais acarinhados e reconhecidos pelo público. E é isso que acontece no palco do Auditório dos Oceanos em Lisboa até ao fim deste mês.
 

A história é quase comovente. Telmo Ramalho não tinha imaginado ser actor. Natural de Figueira de Castelo Rodrigo (não precisa de ir ao mapa, é no distrito da Guarda), Telmo Ramalho viu a sua vida transformada por uma cassete (uma espécie de CD mas um pouco mais primitivo, ver referências na internet, por favor) que o pai comprou numa estação de serviço. A cassete trazia os monólogos de Raul Solnado. Não o entusiasmou à primeira, precisou de um pouco de tempo, e depois rendeu-se ao poder quase hipnotizante de Solnado, a sua capacidade única de dizer um texto.

Vou contar-lhes a história da minha ida à Guerra de 1908.
Eu trabalhava numa fábrica de produtos farmacêuticos, e, um dia sem querer, parti um comprimido e despediram-me. Fui então lá para casa sentar-me numa cadeira que nós lá temos para quando somos despedidos. Estava-me a baloiçar, quando entrou o meu tio Gustavo com o jornal que trazia o anúncio da guerra.
Precisa-se de Soldado que mate depressa!
E diz a minha tia:
Porque é que tu não respondes a esse anúncio?
E diz a minha mãe:
Isso, isso o que era preciso era comprar-lhe um cavalo!
e diz a minha tia:
Mas eles na guerra dão cavalos.

A vida de Telmo Ramalho prosseguiu, com um novo morador no coração, mas sem grandes vontades de palco ou de representação. Estudou turismo e animação turística, foi para o Porto e, em 2002, ingressou no Corpo de Vigilantes da Natureza. Estava nisto de ver a Natureza, de prevenir fogos e mirar animais selvagens quando, em janeiro de 2007, participa no concurso televisivo Aqui Há Talento na RTP1. Não ganhou o concurso, já se sabe, mas acabou por conhecer o mestre. E o bicho ficou cada vez maior dentro de si que isto de ser actor não é um dado conquistado tão somente, é uma coisa que nasce dentro das pessoas. Decide estudar, fazer um curso de teatro e descobre que Raul Solnado dá aulas.

Fomos para casa, e a minha mãe preparou me umas papas de sarrabulho para o caminho, tomei um táxi e fui para a guerra. Cheguei à guerra eram sete horas da manhã, estava ainda fechada. Estava também uma mulherzinha a vender castanhas à porta da guerra e eu perguntei:
“Minha senhora, faz favor? Diga-me, aqui é a guerra de 1908?”
E a senhora disse-me:
Não! É mais acima! Aqui é a guerra de 1906.
Repliquei um
Muito obrigado.
Subi dois anos. Cheguei lá cima, e estavam já a abrir as portas onduladas da guerra, eram já nove e tal, e o sentinela perguntou-me se eu vinha ao anúncio, e eu, disse que sim, e perguntou ele:
E matas depressa?
E eu disse,
Por enquanto ainda mato assim-assim… preciso de treino.”
Respondeu-me:
Então, anda ao capitão.
Fomos ao capitão, e o capitão perguntou-me se eu trazia a espingarda ao que eu disse:
Não, pensei que a ferramenta davam cá vocês. O que eu trago é uma bala, que um vizinho meu guardou como recordação da guerra dos cem anos.
E diz o tenente:
Como é que você mata só com uma bala?
E eu expliquei:
Disparo a espingarda, e depois, vou lá a correr buscar a bala.

Telmo Ramalho aprendeu muito com Raul Solnado, ouviu-o atentamente, entendeu as críticas, as sugestões e, fascinado pelo grande actor, sempre quis fazer a sua homenagem, encarnar Raul Solnado, dizer os seus textos mais acarinhados e reconhecidos pelo público. E é isso que acontece no palco do Auditório dos Oceanos em Lisboa até ao fim deste mês. Depois, se o resto do país perceber este tesouro que temos em palco, talvez o espectáculo chegue a outras paragens.

Aqui o humor é único, com sub-texto, sem nada de brejeiro. O actor segue o mestre e está lá tudo, os tiques, as mãos a dançar, as pausas típicas de Solnado e uma história para contar que é, afinal, a história de todos nós com o actor que nos deixou fará, para o ano, uma década. Há uma década que não rimos com Solnado, apesar disso temos incorporado algumas das suas saídas, algumas partes do que disse em palco, pequenas tiradas que importámos para a nossa vida.

Fui ver o espectáculo com a minha mãe. Há muito que não a ouvia rir tanto. Voltou atrás no tempo e antes do Telmo Ramalho dizer o texto, em surdina, com imenso gozo, a minha mãe completava-lhe as frases.

Bem, fizeram uma conferência e deram-me seis balas, mandaram-me depois matar. Estava então eu, a matar, muito quentinho, quando veio o capitão e mandou-me ir vestir de espia. Deram-me um vestido de orgândicos com uns laços cor-de-rosa na cabeça e mandaram-me de espia. Cheguei à guerra do inimigo, bati à porta e o sentinela espreitou pela frincha e perguntou:
Quem é?
E eu:
Sou a Maria Albertina, malandrice!
Ele disse:
O que é que queres?
E eu disse:
Eu venho cá buscar os planos da pólvora.
E ele disse:
Trabalhas de espia há muito tempo?
E eu disse:
Trabalho desde as 11!

Há nove anos que não rimos desta forma, que não somos tocado pela magia de Raul Solnado. Obrigada Telmo Ramalho por nos devolveres um bocadinho do Raul.
* As partes reproduzidas pertencem ao sketch "A minha ida à Guerra de 1908", passou na censura e subiu ao palco em 1961 integrado na revista "Bate o Pé", em cena do Teatro Maria Vitória.

Seria mais fácil se fosse homem? Sim, mas não seria melhor

Patrícia Reis, 08.03.18
Podia debitar as estatísticas sobre CEO de empresas mulheres, mulheres sem ordenados equiparados, progressões de carreira a sofrer de lentidão e afins, mas não vale a pena maçar-vos com informação que é, nos dias que correm, dado adquirido e que, tantas vezes repetida, provoca, em algumas mentes estafadas de profundo cansaço, certa irritação. 

Não conto pelos dedos as vezes que me disseram que “isso já se está a tornar cansativo”. Não conto pelos dedos por não os ter em número suficiente. Confesso que o meu feminismo não é pop, nem fundamentalista, é talvez básico, mas atento. A minha luta, e a de muitas mulheres e homens de boa vontade, é pela paridade, pelo tratamento equiparado, pelo ordenado igual.

Uma coisa é certa: se eu fosse homem teria feito uma carreira no jornalismo - e na literatura! - com maior ligeireza e sem tantas provas de esforço. Não podem dizer que peco por excesso, podem apenas dizer que falo por mim, tendo em conta os meus 30 anos de vida profissional. Seja, falo de mote próprio, afinal é o meu nome no cabeçalho, a minha fotografia aqui especada. Se quiserem cingir o que vos escrevo à minha pessoa e vidinha, pois estão apenas a enganar-se, mas vamos lá a isto.

Em 2017, José Luís Peixoto, num encontro na feira do livro do Porto, disse: “A minha vida é mais fácil do que a vida da Patrícia, não sou mulher”. Sorri e comecei a pensar nas histórias que tenho acumulado ao longo da vida: a Maria Teresa Horta a dizer que coloca um alarme quando está a cozinhar para ter a certeza de que não deixa queimar nada, ela a tentar escrever poesia e a fazer comida para a casa; a Sophia de Mello Breyner que terá dito que escreveu muitos poemas enquanto fazia bacalhau com batatas; a Agustina Bessa-Luís a rir, os homens não são para levar a sério; a Inês Pedrosa a explicar que, como reivindicou Virginia Woolf (leiam o livro Um Quarto Só Para Si, edições Relógio d’Água, é maravilhoso), é preciso ter liberdade financeira e um quarto só nosso, um escritório como têm tantos homens.

A estes grandes vultos da literatura posso juntar quase todas as escritoras com quem me cruzei em Portugal e fora de portas. A nossa vida não é fácil. Ser escritora mulher significa ser uma mulher de sete ofícios, pela simples razão de termos inúmeros afazeres que, por uma razão quase estranha e maléfica, nos impedem de fechar a porta do escritório e dizer: vou escrever, não me perturbem, não me interrompam.

Não. É certo que a porta do “quarto só nosso” mantém-se aberta e corremos o risco de ter um filho a berrar lá ao fundo da casa: Mãeeeeee, preciso de papel higiénico! Tens 50 cêntimos? O que é o jantar? Ou outra coisa qualquer, porque a uma mulher não passa pela cabeça fechar a porta e dizer que vai escrever e está desligada para o resto do mundo. Sim, teria sido mais fácil ser homem enquanto criava os meus filhos, decerto que teria conseguido ir a festivais literários e sessões em bibliotecas com maior frequência.

Hoje sou uma privilegiada, sou uma mãe-livre, no sentido em que os meus filhos são adultos e, portanto, posso escrever e ouvir músicas estranhas, posso fugir para dentro de casa sem ter de me preocupar com escolas e actividades. E ainda tenho, cereja no topo do bolo actual, um marido que me diz: vai, vai escrever, eu trato. Ah, de que me queixo eu?

Se tivesse nascido rapaz e me chamasse João ou Manuel ou Francisco ou António ou Xavier, eu seria uma escritora com pergaminhos. Podia manter uma dose de mistério, mas os meus livros venderiam muito mais. Sim, está provado que os melhores compradores de livros são as mulheres e está igualmente provado que compram maioritariamente livros escritos por homens. E, lá está, peço desculpa pela repetição, mas é já um fetiche: se uma mulher escreve uma história que tenha um enredo amoroso, é somente uma história de amor; se um homem escreve uma história de amor, ah, é sobre a condição humana.

Mas há mais: se eu fosse um homem e escrevesse umas coisas lamechas, quem sabe?, podia vender mais livros e atingir o céu em termos de números de fãs (ou devo dizer, adeptos? fiéis?). Não, nada disso. Se estivesse numa televisão a apresentar qualquer coisa e fosse um rapaz garboso de fato azul escuro e bela gravata grená, podia escrever mistérios e até episódios eróticos de mau gosto, ninguém se importaria, sobretudo a minha conta bancária.

Sim, bem sei que estou a ser irónica e mazinha, mas o que querem? Parece que este é o nosso dia, o da mulher, porque o dos homens será todos os outros e nós, criaturas frágeis a precisar de protecção, temos de aproveitar este dia para falar alto e bom som das nossas dores tamanhas.

Ora, nós não precisamos de protecção, o que não significa que não possamos apreciar os gestos cavalheirescos, precisamos que nos encarem com a mesma seriedade com que encaram o sexo oposto, reconheçam o nosso valor, nos paguem os mesmos salários, nos dêem oportunidade de chegar aos mesmos cargos. Precisamos ainda que nos oiçam e percebam que o que se fez anos a fio, práticas seculares, não justificam o que continua a passar-se.

São vários os movimentos que tentam chamar a atenção para a causa feminina, já se sabe. Infelizmente, não são suficientes e, por isso, eu, cansativamente feminista, repito e volto a repetir as informações que cansam tantas mentes estafadas de ouvir estas mulheres que não sabem senão queixar-se. Um estudo da Deloitte demonstra que apenas 13% dos cargos de direção no nosso país são ocupados por mulheres. E quantas mulheres detêm e lideram conselhos de administração? Apenas 2%.

Portanto, pergunta para queijo: acham que nos temos queixado o suficiente? Olhe que não, caro colega, olhe que não.

A pornografia como educador? Se calhar era melhor falarmos de sexo com os nossos filhos

Patrícia Reis, 01.03.18
Num jantar de pais livres, como gosto de lhes chamar (pais com filhos em idade para ter vida social própria), falava-se de sexo. Será que os nossos filhos viram, ou vêem, pornografia? Não queremos falar de sexo com os nossos filhos e tão pouco pensar que têm acesso a pornografia com a maior facilidade do mundo, mas é um facto, real, fácil de comprovar, estudado e analisado.
 

Com acesso a smartphones ou tablets, os jovens podem aceder a sites pornográficos gratuitos com uma facilidade quase, digamos, obscena. Os pais não têm como saber? Não têm. Uma das mulheres que jantava naquela mesa de gente crescida disse que via o histórico do computador dos filhos (eu seria incapaz, confesso), mas que não tinha como aceder ao dos telemóveis sem “dar nas vistas”.

Os pais continuaram a conversar animadamente: os homens a recordar uma publicação de nome Gina e os lugares onde a podiam comprar (algumas eram herdadas dos irmãos); as mulheres a confessar como informações sobre sexo tinham chegado via amigas, e não pela família e, na sua maioria, concordavam que a informação chegara tarde demais. Hoje, os adolescentes ainda não iniciaram a sua vida sexual e já podem ter visto tudo. E o tudo é, muitas vezes, pornografia, sexo entre duas ou mais pessoas, tantas vezes com posições de dinâmica de poder favorecendo os homens, com práticas e discurso que podem surgir como “naturais” para quem é menos informado.

Para saber um pouco mais, leiam o artigo do The New York Times de Maggie Jones, traduzido Luís M. Ferreira e que foi publicado na última revista do semanário Expresso. São seis páginas muito elucidativas e preocupantes. Eu sei que são seis páginas de texto, sem qualquer imagem, porém garanto-vos que o artigo vale todos os vossos minutos, em especial se são mães ou pais.O sexo faz parte da vida, é saudável e de louvar, não tem discussão. Implica, numa prática saudável, reciprocidade, um princípio de prazer mútuo que é totalmente esquecido na maioria dos filmes pornográficos.Há uns anos, ouvi – procurem na internet – uma Ted Talk de Erika Lust, realizadora de filmes porno, que me ensinou em 15 minutos algumas coisas e aniquilou uns tantos estereótipos. Erika Lust gere um negócio porno altamente rentável. A diferença? A procura de uma narrativa sexual que não diminua a mulher, que possa ser entendida de outra forma, para, diz a realizadora, se perceber que nem todas as mulheres têm mamas gigantes nem os homens são todos dotados de pénis com 30 ou mais centímetros.

No tráfego de consumo de pornografia, Portugal está no 41º lugar, portanto não podemos dizer que não é um assunto. É um assunto. A maioria dos consumidores de pornografia são homens (78%), as mulheres ficam nos 22%. Estes dados são da Pornhub que, há três anos, decidiu analisar o mercado português. Chegaram a conclusões interessantes, então partilhadas pelo Jornal de Negócios. Um dado a reter: como o acesso aos sites porno antes dos 18 anos é ilegal, os dados sobre o consumo não contemplam idades inferiores. Outro dado a ponderar são as categorias de palavras mais procuradas em Portugal neste âmbito. A saber: “teen” e “milf” (Mother I want to fuck).

No artigo de Maggie Jones, encontramos o subtítulo: tudo começa aos 13. E a afirmação é sustentada por um estudo da Escola de Media da Universidade do Indiana (EUA) que aponta para que o consumo de pornografia em adolescentes comece aos 13 anos, no caso dos rapazes, e aos 14 anos, no caso das raparigas. A mesma universidade fez um inquérito a pais e filhos e concluiu que mais de metade dos pais não acredita sequer que os filhos vejam pornografia. Já 93% dos inquiridos masculinos e 62% femininos, no âmbito de um estudo da Universidade de New Hampshire (2008), admitem ter visto pornografia online antes dos 18 anos.

A pornografia como educador ou guia de orientação pode ter servido, ao longo dos tempos, vários propósitos. Nos dias de hoje, além de todas as questões relacionadas com sexo seguro e doenças sexualmente transmissíveis, importa que os adolescentes entendam as limitações do negócio que é o sexo. Um filme pornográfico não implica prazer, muitas vezes apresenta gestos de violência (asfixia, para dar um exemplo), linguagem mais agressiva e, classicamente, ejaculação para o rosto da parceira.

Replicar o que se vê não é boa opção na vida real. Vamos, então, falar sobre sexo com os nossos filhos? É capaz de ser ajuizado.

 

Tenho dois cães. Não vão a restaurantes.

Patrícia Reis, 22.02.18

Gosto muito de animais, sempre gostei. Já tive gatos, agora tenho cães. Em tempos que vão, tive uma égua. Esforço-me muito por não impor os meus animais a terceiros. Não vou de elevador com eles à rua, vou de escadas. Se alguém vai jantar lá a casa, pois faço por não os ter em casa, vão ali passar umas horas com alguém que os trate bem. Apanho dejectos na rua e não os solto nunca. Esforço-me para os educar e nunca, nunca mesmo, vou dizer a uma criança (ou adulto) com medo de cães: não sejas parvo, ele não morde. Respeito o medo dos outros.

Não vou levar os meus bichos para os restaurantes, da mesmo forma que não os levo para a praia, para o bar, para a piscina, para os jardins cheios de crianças. Não gosto menos dos meus bichos por causa disto. É uma forma de estar. Sei que muitas pessoas considerarão que a nova lei é uma boa coisa. Ficará ao critério de cada um, já se sabe, e também dos donos de restaurantes.

Há, contudo, um aspecto crucial que creio não ser de somenos: os animais sofrem em espaços nos quais não se podem movimentar e sofrem mais ainda com cheiro de comidas que lhes estão interditas. Este é, como dito de início, o meu entendimento e ajo de acordo com esta ideia. Da mesma forma que, pese o amor que lhes tenho, reconheço-lhes a origem, logo não os visto, não lhes meto ganchos ou roupinhas e lenços à Xutos & Pontapés. São animais. São bons animais e excelente companhia, mas não são comparáveis com seres humanos. É que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

Dirão que há animais que são tão importantes – ou mais – que muitos familiares. De acordo. Mas há mínimos olímpicos de higiene que me afligem nas idas aos restaurantes e afins. A minha cadela larga mais pelo quando se deita do que aquele que a cabeleireira atira para o chão sempre que me corta o cabelo. Os cães largam pelo. É um facto. Então, caso encontre um restaurante que o permita, com tanta fiscalização e afins, vou levar o meu animal e conspurcar o sítio? Ou vamos pensar que os donos de restaurantes têm de estar preparados para tal? E, já agora, para necessidades fisiológicas inesperadas?

Enfim, sei que para muitas pessoas esta questão é sensível e, decerto, alguém se encarregará de me colocar na ordem. Eu sou teimosa e vou manter os meus cães em lugares onde possam ser felizes e farei por ser o mais civilizada possível, apanhando dejectos da rua com um saco para o efeito, afastando os cães de crianças e idosos, de sítios que possam ser perigosos (cuidado com os vidrões, por perto estão inexplicavelmente vidros mínimos que se enfiam nas patas) e nunca os deixando andar a vaguear livremente. Não sei o que pode acontecer, creio que tudo pode acontecer e é para isso que existem trelas e, por outro lado, espaços específicos para cães correrem.

vivemos num país só para jovens? parece que sim

Patrícia Reis, 15.02.18

Vivemos num país deslumbrado pela juventude. O que é novo é bom, logo pode ser arrogante e até mal-educado. Pasmo perante a quantidade de gente nova que masca pastilhas elásticas com a boca aberta; jovenzinhos foliões que não dizem bom dia ou boa noite, obrigada ou se faz favor; gente com menos de trinta anos incapaz de entender que serão, não tarda, parte desta outra metade do mundo: os mais velhos.A juventude aguerrida é de louvar. Nem todos tiveram educação esmerada, logo é aconselhável optar por observar, aprender e replicar. Não me comovem os argumentos de que cresceu sem isto ou sem aquilo. O que aconteceu na nossa infância ou na adolescência pode ser revisto na idade adulta. Convém que o façam para que, uma vez traídos pela passagem do tempo, possam chegar aos trinta, quarenta, cinquenta e por aí fora sem se sentir postos de lado, nomeadamente no mercado de trabalho.

Sim, a juventude é boa para os potenciais empregadores e não se premeia a experiência. É triste, mas é a nossa realidade, o que leva a que muitas pessoas com 50 anos de idade e mais tenham perdido o emprego e não consigam arranjar soluções no mercado. De repente, tudo o que fizeram não tem qualquer importância? Parece que não.

Muitas pessoas que trabalharam uma vida inteira, muitas vezes em condições indignas, envelhecem sem qualquer abrigo ou protecção. As famílias não são os álbuns das festas com sorrisos e roupas engalanadas. As famílias também podem ser autênticos infernos a portas fechadas. E, perante a velhice, os mais novos preferem não ver, nem ouvir. E há ainda quem prefira abandonar ou agredir.

Há cinco anos, um estudo brasileiro indicava que a cada cinco minutos um idoso era agredido no país-irmão. Em Portugal, mais de um terço da população tem 65 anos de idade ou mais. O que significa que somos o quarto país mais envelhecido da Europa, ultrapassado apenas pela Grécia, Alemanha e Itália. Mas vamos um pouco mais longe. Sabe quantos octogenários temos? Pois são 5,84% da população. Estudos apontam para que daqui a 50 anos existirão cerca de 300 velhos para cada 100 jovens.

E tudo isto importa porquê?

Importa que o envelhecimento activo se torne uma prioridade. Não só para evitar a discriminação de quem quer manter-se no mercado de trabalho apesar de não ter uns gloriosos 20 anos de idade, mas também por ser melhor.

Portugal terá de se redefinir, elaborar estratégias de forma inteligente, porque a população não está a rejuvenescer, não vivemos numa série de ficção científica, logo temos de dar resposta à questão da idade de outra forma. A maioria das empresas parece preferir ter dois empregados a ganhar ordenado mínimo do que um sénior com um ordenado adequado ao seu percurso e experiência. Diz-me a experiência que não é necessariamente a melhor opção. Conheço quem faça tudo para continuar a trabalhar e se mantenha activo, apesar de se ter visto no desemprego ou na reforma por razões alheias à sua vontade.

Uma equipa que integra gente mais velha possui algo que muitos desconsideram e que é fundamental: a formação. Não é apenas ter alguém mais velho que pode saber mais, é alguém que tem outra memória, que pode ajudar a contextualizar.

Quando comecei a trabalhar nos jornais, há 30 anos, aprendi muito, muitíssimo, com jornalistas veteranos. Bebia o que me ensinavam com fervor e fui acarinhada de forma inimaginável por sentir que apostavam em mim, que queriam que eu fosse mais longe.

Hoje, perante um vídeo que se tornou viral e que faz uma paródia do que é uma entrevista a um millennial, tenho de me rir. Quando fui à minha primeira entrevista de trabalho não me passou pela cabeça estar em permanente contacto com ninguém a não ser com o meu sistema nervoso. Queria muito aprender, sabia o meu lugar e, como o poeta, se falhasse pois voltaria a tentar e, porventura, falhava melhor. Ter alguém ao meu lado com uma enorme experiência serviu para muito.

As empresas não reconhecem o valor dos mais velhos num país que só quer jovens, mas que não os tem em número suficiente? Não. Nem as empresas, nem o Estado.

A minha morte é um assunto meu

Patrícia Reis, 08.02.18
A eutanásia nunca será um tema consensual? Porquê? Parecem perguntas simples, mas não o são.
 

A sociedade gere-se por regras e as mesmas são impostas por uma maioria forte, predominante e, muitas vezes, cingida a uma moral que deriva da religião. Fala-se muito em amor, em vida, direito à vida e ainda outras coisas como a invocação divina. Estamos no século XXI, há coisas que já perderam validade. Ora, em Portugal, alguns partidos políticos elaboraram, ou estão no processo de elaborar, projectos de lei de legalização da eutanásia. Só pecam por ser tão tarde. Sou completamente a favor. Haverá quem seja contra, não tenho a menor dúvida.

Dirão que serão necessárias limites e fronteiras, pois seja. Até porque importa acautelar a possibilidade de familiares demasiado ansiosos por eventuais heranças, ou desejosos de se verem livres do peso daquela pessoa doente, se apressarem a antecipar a sua morte. É, portanto, crucial que a lei seja claríssima e eficazmente explícita quanto aos mecanismos de confirmação inequívoca do desejo do doente. É um caso em que não podemos permitir que a lei tenha zonas cinzentas? Absolutamente. E é para isso que votamos e temos partidos a pesquisar para produzir decretos-lei com pés e cabeça.

O que me importa, contudo, é a possibilidade de ver eliminada esta indignidade que a evolução da medicina permite: estendemos a vida do corpo sem qualquer preocupação com a dignidade individual, com a qualidade de vida de cada um. Há sempre o argumento do instinto de sobrevivência, ninguém quer morrer (ora pois, então!), não sabemos ao que vamos e, mesmo os mais religiosos, com promessas de céu e salvação, virgens e outras coisas, têm grande dificuldade em digerir este momento biologicamente inevitável.

A morte não é simpática, mas a vida faz-se com alegrias e percursos mais árduos, numa presunção de que vamos envelhecendo, mas não ficamos apenas ali num canto a dizer que estamos vivos sem capacidade para nos mexer. Se não quero cá estar, se o corpo me trai, por que será que não posso colocar fim à minha vida?

Em casos de sofrimento, devo dizer que não tenho qualquer reticência. Os fundamentalistas dos movimentos pró-vida, irão invocar argumentos que não tenho como entender: e se um adolescente se quiser matar com assistência? Bom, a adolescência é uma espécie de construção e destruição diária, os adolescentes pensam na morte e os que se querem matar, matam-se, não será para isso que servirá um decreto-lei certamente. Existe sempre também quem veja o aspecto financeiro da coisa. Em tempos, noutra matéria sensível, ouvi um argumento contra o referendo do aborto que era surreal: se matamos as crianças por nascer, não estamos a garantir contribuintes para o futuro, logo estamos a lesar as pensões (sem comentários). Portanto, também teremos quem pergunte porque razão deverá o Estado financiar a morte.

Ora, todos os dias, em todos os hospitais do mundo, existem pessoas que viveram vidas cheias, umas melhores do que outras, não tenho dúvida, e que chegaram ao fim para estar no tal canto que a medicina proporciona, com comprimidos para o coração, para a tensão, para dormir, para ter fome, para o colesterol, para a insuficiência cardíaca, para ... e para.... Valerá a pena? Os moderados irão reclamar e bradar aos céus que cada caso é um caso.

No dia em que a minha vida for exclusivamente uma visão de caixas de comprimidos, sem trabalho, sem capacidade de leitura, de apreciar música, de sair à rua, pois não quero cá estar. Podemos concordar que discordamos, mas a minha morte é um assunto meu.

O génio de Ursula K. Le Guin

Patrícia Reis, 01.02.18
Na semana passada, morreu Ursula K. Le Guin. Confesso-vos já que fiquei com lágrimas nos olhos e, por isso, se acham que é lamechas, mais vale não ler esta crónica. Nunca conheci a autora de fantasia que me mudou a forma de ver o mundo era eu ainda adolescente, mas li tudo o que escreveu e tenho-a como uma amiga. Morreu-me. Como só nos morrem as pessoas que amamos. 

O meu primeiro encontro com Ursula K. Le Guin deu-se com o livro Feiticeiro Terramar e depois nunca mais parei. Aprendi imensas coisas com ela ao longo da vida. Sobre a forma de estar, sobre a escrita, sobre a importância dos dragões. Para mim, nunca foi uma autora de ficção científica, embora seja esse o rótulo no mercado dos livros e dos leitores. Sempre entendi que os seus livros eram reflexões sobre a vida e os relacionamentos. Reflectir é um dos bens maiores da Literatura e a razão pela qual acusamos a falta de pensamento prende-se com essa preguiça no exercício de ler e de pensar. Ler e interrogar, ler e entender, ler e incomodar. Agustina Bessa-Luís disse muitas vezes que escrevia para incomodar.

A autora norte-americana, casada com um francês, filha de antropólogos, mãe de três filhos, dispôs-se a fazer-nos pensar e construiu histórias que ficarão para sempre com quem as leu. Uma das suas leitoras, acredito que devota, será J.K. Rowling, a autora do famoso entendedor de serpentes, Harry Potter de ser nome. Se Ursula K. Le Guin bebeu em J.R.R.Tolkien, Rowling foi beber à obra de Ursula e sempre que me cruzo com Harry Potter penso em Gued, o Gavião de Terramar, ele que falava com dragões, a língua mais antiga do mundo. A autora afirmou: “Escreva o que deseja escrever. Adicione tantos dragões quanto quiser”.

Imaginar o possível, ou o impossível, para pensar a humanidade é um talento de génio que poucos possuem. E claro que ainda hoje se diz que H.G. Wells, autor da Guerra dos Mundos, é o pai da ficção científica. O pai parece importar sempre mais do que a mãe, vá-se lá saber porquê. Eu, que sou cansativamente feminista, pois torço por Mary Shelley e pelo seu Frankenstein. Coisas minhas, já se sabe.

Uma das facetas de Ursula K. Le Guin era o seu feminismo num mundo manifestamente dominado por homens. Ela dizia que não tinha gostado de ficção científica ou de fantasia imediatamente. O facto de a maioria das histórias terem como protagonistas homens bélicos com desejos de invadir ou conquistar algo pareceu-lhe redutor. Assim, como lhe pareceu redutor ser apenas mãe e esposa. “Não há motivo para que uma mulher casada com filhos não possa ser uma artista comprometida. (Isso parece evidente, mas não foi imediatamente claro para mim)”. E, assim, entendendo o universo ao seu redor e o domínio do patriarcado, a escritora tornou-se feminista acima de tudo, mesmo quando os personagens centrais das suas histórias eram do sexo masculino. “Os valores do patriarcado estão enterrados em muitos dos enredos das nossas histórias. São necessários novos enredos”.

Frontal. Bem-disposta, capaz de se manter num certo anonimato para preservar a sua vida privada, Ursula K. Le Guin foi convidada para a Academia de Letras Americana em 2017 e terá, de acordo com declarações suas, perdido ou deitado a carta para o lixo. Meses depois da formulação do convite, sem resposta, a Academia decidiu interrogar a agente da escritora e é assim que fica a saber do convite. Escreve a agradecer e a aceitar, dizendo que não recebeu nada por escrito, não “estava a dar numa de Dylan”, aludindo ao silêncio de Bob Dylan à Academia Sueca aquando do Nobel da Literatura. O seu sentido de humor pode ser apurado em alguns vídeos na internet. Os livros, a sua maioria não está traduzida para português, são procurados pelo mundo inteiro. Não apenas a ficção, mas também a poesia, a literatura infantil e, claro, o guia para escritores. O mesmo livro onde afirma que ler é mais importante do que qualquer outra coisa e, por isso, os outros escritores não são concorrência, são sustento. É aí também que se pode ler que o arrependimento faz parte do crescimento enquanto escritor e que corrigir é bom, mesmo que os erros anteriores sejam eternos e possam estar a um “Google de distância. Não há nada vergonhoso em se tornar uma pessoa melhor, uma pessoa mais sábia”.

Morreu Ursula K. Le Guin. Ela que estudou o taoismo e o budismo, na busca permanente de equilíbrio, e que teimava na ideia de que o trabalho diário era o mais importante porque, afinal, “a imortalidade nunca funcionou bem para ninguém”, acrescentando: “Evite isso a todo custo”. Não creio que tenha conseguido atingir este objectivo. Quem leu os seus livros irá passá-los a outros e, de geração em geração, a escritora será única e, portanto, imortal.

Tem algum Nobel da Literatura no seu país?

Patrícia Reis, 25.01.18
Todos os anos, temos a saga do Nobel e, como um bom relógio suíço, há quem torça por António Lobo Antunes e quem recorde José Saramago. O Nobel da Literatura é porventura um dos poucos prémios Nobel sobre o qual as pessoas discutem com à-vontade, discutem e criticam.
 

Afinal, de literatura sabemos todos um pouco? Parece que sim. Ora, a opinião pública conta pouco – ou mesmo nada – para esta corrida já que os putativos vencedores devem ser nomeados por antigos laureados, instituições e academias cujo perfil seja indiscutível.

A Academia Sueca, na sua sabedoria imensa, gere uma pequena fortuna do senhor Alfred Nobel e tem alguns objectivos a cumprir. Não se rala com a opinião dos meros mortais, é preciso ser especial.

A corrida para os prémios de 2018 já começou. Podemos torcer por este ou aquele, pouco adianta. A Academia Sueca segue as suas normas e, apesar da maioria ignorar, existem candidaturas designadas por outras academias (não vinculativas) e requisitos que são inultrapassáveis. Um exemplo? Não estando traduzido para sueco, nenhum escritor(a) terá hipótese de ganhar. E não basta um livro, terão de ser dois no mínimo. No caso de Bob Dylan, que ganhou o Nobel da Literatura em 2016 por obra e graça da sua poesia, não foi preciso mais. Dois livros traduzidos para sueco e uma obra inteira que faz parte da banda sonora de muitos milhões de pessoas. Muitos ficaram boquiabertos. Poesia? Música? E isso é literatura?

O que é literatura? A pergunta impõe-se, porque anteriormente o prémio já tinha sido atribuído, em 2015, a Svetlana Alexiévitch, jornalista e escritora bielorussa. Muitas vozes identificaram a obra de Alexiévitch como jornalismo ficcional ou ficção a partir de jornalismo e a polémica durou o tempo que tinha de durar. E a literatura?

Bom, o Nobel não foi entregue a Jorge Luis Borges, a Virginia Woolf, a Marguerite Yourcenar, e por aí fora, a lista é extensa. Tem sido entregue a muitos, mesmo muitos autores, de que nunca mais ouvimos falar. Autores que ganharam o Nobel, mas não ganharam um lugar na História.

Desde 1901, o início da atribuição deste prémio, cujo valor financeiro é muito elevado e a projeção internacional é garantida, os diferentes prémios foram atribuídos 834 homens e 48 mulheres. Quando olhamos para o Nobel de Economia existe apenas uma mulher agraciada. No Nobel da Paz temos 16 mulheres e na Literatura temos 14 vencedoras (a primeira foi a sueca Selma Lagerlöf, em 1909, e a última a bielorrussa Svetlana Alexijevich, em 2015). 
A partir dos dados oficiais é possível perceber outras pérolas: 94 % dos vencedores são brancos, 88% são homens e 69% europeus. Negros e asiáticos? Representam 3% respectivamente. But who’s counting?

Discretamente, saiu a notícia de que a Academia Sueca terá pedido formalmente à Academia das Ciências de Lisboa a indicação de um candidato ao próximo Prémio Nobel da Literatura. Assina a carta de pedido Per Wästerberg, o presidente do comité Nobel. «Em nome da Academia Sueca [...] temos a honra de vos convidar a nomear, por escrito, um candidato (ou candidatos) ao Prémio Nobel da Literatura para o ano de 2018».

Perante o convite, os membros da Classe de Letras da Academia de Ciências de Lisboa indicaram dois nomes: Agustina Bessa-Luís e Manuel Alegre. Ora, o eterno candidato, Lobo Antunes, não terá apreciado grandemente este gesto, mas terá de o aceitar, porventura terá sido indicado no passado. Eu fico a torcer por Agustina Bessa-Luís. A Academia Sueca irá surpreender-me decerto e o gesto será entendido, outra vez, como um “sinal de abertura”.

jornalismo à portuguesa

Patrícia Reis, 18.01.18
A maioria dos jornalistas do país está nos centros urbanos e, a maior percentagem, em Lisboa. Não há nenhum problema com esta realidade, é assim há muito tempo e talvez seja o mais natural. Dito isto, os jornalistas a trabalhar em Lisboa estavam convictos de que Pedro Santana Lopes ganharia as eleições para presidente do Partido Social Democrata e foi um enorme desaire a vitória de Rui Rio.
 

O problema? Sentir o pulso do país com os dedos da capital é um erro crasso. Muitos jornalistas e fotógrafos ficaram em Lisboa e aguardaram a vitória daquele que seria, ouvi dizer amiúde por aí, um presidente do PSD que iria tornar “a cena mais divertida”. A cena é a cena política.

Um militante de Viseu conta-me que votou no Rui Rio por saber que este não se coibirá se fazer governo com o Partido Socialista e que isso é um regresso à forma antiga, antes das maiorias Cavaco e de Sócrates, e o fim da chamada geringonça.

O facto de os militantes terem trocado a volta aos jornalistas deu origem a alguns incidentes sem relevância e a perplexidade estendeu-se gloriosamente até às direcções de órgãos de comunicação social. Facto consumado, a vida anda para a frente. Há uma tragédia em Tondela e a maioria dos jornalistas a trabalhar em Lisboa interroga-se: Tondela? Perto de Coimbra? Não, distrito de Viseu. E lá vão à cata de como contar a história, tal como fizeram com Pedrogão Grande cuja localização seria, para muitos, igualmente desconhecida até aos incêndios.

Conhecemos o nosso país através da comunicação social mais generalista e com maior impacto ao nível nacional. Existem terras e terrinhas sobre as quais nunca ouvimos falar e, consequentemente, militantes de partidos vários que desconhecemos. A realidade da política é distinta.

Não é o Pacheco Pereira a pontificar na televisão ou os 30 segundos de discurso crispado na Assembleia da República. O mundo faz-se de outra forma quando é visto com olhos que não os de um lisboeta. Não é um problema do jornalismo, é um problema de todos nós.

O que consideramos normal e adequado em Lisboa pode ser o inverso para a realidade do Samouco ou de Marco de Canaveses. Os exemplos são mais do que muitos e convém não esquecer que a capital, ou o Porto, reflectem apenas os gostos e atitudes, comportamentos e vontades de uns tantos, não da totalidade.

Os jornalistas aceitaram a vitória de Rui Rio com espanto, mas já estão a organizar-se. As pessoas a norte não se surpreenderam grandemente. Santana Lopes não percebeu nada.

Boas intenções

Patrícia Reis, 04.01.18
Todos os anos, faço uma lista com decisões tomadas. A cada ano que passa, a lista fica mais curta. Já percebi que posso fazer mil planos, a vida encarrega-se de os destruir e de colocar novos no meu caminho. Não tenho, por isso, desejos que cheguem para as doze passas da praxe, à meia noite de 31 para 1 de Janeiro. Vou repetindo as mesmas coisas básicas que posso resumir em saúde, amor e alegria e a coisa dá-se.
 

Dito isto, no dia 6 de Janeiro há algo que muda na minha forma de estar e estou pronta para fazer a simpatia dos Reis. Reunimos amigos à volta da mesa – a melhor forma de estar com os amigos, diria – e munidos de uma nota de cinco euros e de bagos de romã vamos dizendo e embrulhando três bagos: Melchior, Gaspar e Baltazar eis uma semente para ter e para dar.

A dita nota, no meu caso, está velha e seca, é sempre a mesma. Fica enrolada e bem apertada dentro da minha carteira durante o ano e tenho a certeza que nunca terei os 117 milhões de Cristiano Ronaldo, mas terei para ter e para dar. Todos os anos, o ritual repete-se. Depois de dobrar a nota três vezes com três bagos de romã, dou-me conta que ter e dar é apenas uma extensão do afecto gigantesco de quem partilha a mesa comigo.

Os amigos permitem-nos ter e dar. Estão cá para nós. São uma família lógica, distinta da família biológica, são a família que escolhemos.

O meu núcleo familiar é cada vez mais curto. As famílias não se praticam com os primores de outrora. No meu caso, o Natal mudou consideravelmente depois da morte do meu avô paterno que, na verdade, era um perpétuo Pai Natal, sempre de sorriso no rosto, capaz de dançar de andarilho e de não se chatear com nada. Faz falta o meu avô. Muita falta.

Contudo, olhando à minha volta, ouvindo as histórias mil vezes repetidas (amigos antigos também têm essa coisa da repetição), as gargalhadas, as exclamações de alegria e de espanto; observando a forma ternurenta como os meus amigos se abraçam, se tocam enquanto conversam, assegurando-se da importância de cada um, sei que estou bem entregue.

O meu avô apreciaria esta dádiva de amizade que me aconteceu na vida e, é claro, riria da minha lista de boas intenções. Para ele, um dia de cada vez era mais do que uma opção, era um mote. E eu, avô, estou a aprender, um dia ainda chego lá.

Senhor Presidente, dê dois berros aos partidos sff.

Patrícia Reis, 27.12.17
Parece um guião para um filme de série B, com alegações relativas à segurança nacional, porventura envolvendo as secretas (agora dirigidas por uma mulher, saliente-se) e interesses ocultos. Não é. Trata-se tão somente de política à portuguesa, mal feita, indecorosa, ofensiva.
 

Que os partidos queiram tratar da sua existência financeira e fiscal com melhores opções não me espanta grandemente; que os partidos o façam à porta fechada, em sessões sem actas ou qualquer registo escrito (nem que seja para a posterioridade) é, no mínimo, suspeito. Nove reuniões à porta fechada decorreram entre abril e outubro deste ano. Nove reuniões, repito, para discutir, digamos, interesses próprios (fim do limite para a angariação de fundos, a possibilidade de pedir restituição do IVA pago na totalidade de aquisições de bens ou serviços, e ainda a possibilidade de pessoas singulares pagarem despesas de campanhas a título de adiantamento).

Podia ser um erro, uma inocência, mas nada disso: quando emails trocados mostram que há um encobrimento de quem propôs o quê, designando-se os partidos envolvidos pelas letras do alfabeto, pois não temos como acreditar na ingenuidade de nada, seja de ideias ou de processo.

O CDS e PAN foram os únicos partidos que não votaram a nova lei de financiamento, uma lei aprovada no dia 21 de Dezembro, vésperas de natal. Será que alguém, iluminado por luzinhas de fraca potência, pensou que a época permitiria que isto não viesse à tona? Terá sido essa a hipótese levantada naquelas cabeças, da esquerda à direita? A isto chamo eu um atestado de estupidez passado à sociedade portuguesa sem qualquer vergonha ou embaraço.

Resta-nos, portanto, que Marcelo Rebelo de Sousa leia com atenção o que é proposta de lei, perceba o processo de construção desta nova lei e faça o que é preciso ser feito: vetar a lei. Mas não pode ficar por aí. Terá de dar um puxão de orelhas a todos aqueles com assento na Assembleia da República e que dizem representar Portugal e os portugueses.

Marcelo Rebelo de Sousa redesenhou o nosso conceito de Presidência da República. Não pode ser comparado a nenhum dos presidentes anteriores. Cavaco era demasiado distante e rígido; Sampaio era diplomático e contido; Soares gostava de uma presidência inspirada na realeza e por aí fora. Marcelo Rebelo de Sousa apostou nas pessoas, na proximidade, na humanidade. Dizem que é o Presidente dos afectos e que está em todo o lado.

No caso desta lei de financiamento dos partidos e devolução do IVA, o Presidente terá de esquecer os afectos e tratar os partidos como merecem, alunos armados em espertos que não cumpriram com as regras de transparência que o exercício das suas funções obriga. Não deverá ser apenas uma reprimenda, terá de ser uma valente reprimenda. Não só porque a nova lei levanta questões variadas sobre as quais o Presidente tem uma opinião formada e conhecida (Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto líder do PSD, considerava que os partidos deveriam ser financiados pelo Estado na totalidade, retirando empresas e pessoas individuais do processo), mas sobretudo por ser evidente que em democracia não se aprovam leis desta forma.

No presente caso, espero que se recorde vivamente da sua profissão de professor e tenha a capacidade de dizer aos partidos o que é preciso ser dito: não brinquem com o poder que têm, sff.

 

P.S.: Como bom professor, Marcelo Rebelo de Sousa dá oito dias aos partidos para voltar atrás com a lei do financiamento. Resta saber se os “alunos” merecem ou estão ao nível.

o moralismo que vai matar o consolo e o sexo

Patrícia Reis, 20.12.17
Quem é que define o que é ética e moralmente correcto quando toca às coisas da sexualidade? Até a pergunta é perigosa de se fazer nos tempos que correm.
 

Ando a combater com esta mania de querer dizer as coisas como as penso em vez de as dizer dentro de uma forma que se pode classificar, nos dias que correm, como “politicamente correcta”. Sou acusada de ser frontal e bruta muitas vezes, é um karma como outro qualquer, assim fico com a fama e o proveito. O que me atormenta é o moralismo em que vivemos. Quem é que define o que é ética e moralmente correcto quando toca às coisas da sexualidade? Não, esta não é uma crónica sobre o Kevin Spacey, o Harvey Weinstein e afins. Nada disso. O que me preocupa é uma situação como esta que passo a descrever.

Na sala de aula de uma universidade decorre, num silêncio perturbado pelo choro, um exame. O professor, constrangido, aflito com a aflição da aluna, aproxima-se da mesa da rapariga e pergunta, em sotto voce, se há algum problema (bom, é evidente que há!), e a estudante continua a soluçar. O professor pede para o acompanhar e saem da sala, com o objectivo de não perturbar o resto da turma.

A rapariga lá começa a desbobinar o filme trágico que é a sua existência, perdeu o emprego, as chaves de casa, o gato teve um ataque cardíaco e mais não sei quantas coisas deprimentes e avassaladores que podem ocorrer na vida das pessoas. Está um caco. O professor tenta o consolo e uma solução: “Bom, nesse caso, se não está em condições de fazer o exame, o melhor será fazer na amanhã na outra turma...”.

A moça continua em prantos, são sete da tarde, a universidade não está a borbulhar de gente, não há testemunhos deste encontro, e o professor consola a aluna, coloca-lhe (ó meu Deus!) uma mão no ombro. Lá se consegue chegar a uma certa calma, regressam à sala de aula e a aluna recupera forças e ânimo e faz o exame. O professor conta este episódio a outros professores que o olham chocado: tu tocaste numa aluna sem testemunhas? Tu sabes que isso agora é assédio?

É triste que gestos de consolo possam ser confundidos desta forma, ou não é? Eu acho que é. Se tocar nas pessoas começa a ser pretexto para uma acusação, vamos viver amarrados, contidos, vigilantes uns dos outros e, pior ainda, vamos condenar as próximas gerações a terem uma sexualidade muito infeliz. Sim, a sexualidade deve ser vivida de forma saudável, de acordo, mas com tanto fiscalismo agora temos de perguntar: posso tocar-te? Posso beijar-te? Posso colocar a mão no teu corpo? É isto que os jovens devem fazer uns com os outros, para que estejam isentos dessa coisa perigosa que é a acusação?

Se assim é, só posso dizer uma coisa: ainda bem que nasci em 1970. O que sinto é um retrocesso civilizacional em termos de comportamento, uma obsessão pela vigilância, um discurso pelo politicamente correcto que cai constantemente num moralismo que ninguém sabe quem define ou comanda. Será isto saudável?

Uma coisa é certa, este professor nunca mais consolará aluna alguma. E os meus afilhados mais novos, quando chegarem à adolescência, e se questionarem sobre o seu próprio corpo e o dos outros ou outras, terão de fazer um percurso deveras complicado e, antevejo, perigoso.

"Minha querida" juíza

Patrícia Reis, 15.12.17
Então, analisemos de forma muito simplista: se a juíza diz “Professor” para se dirigir a Manuel Maria Carrilho e opta pelo “Bárbara” ou "minha querida" para falar com a apresentadora de televisão Bárbara Guimarães, isso é ...? Não é normal.
 

A notícia de que Manuel Maria Carrilho foi ilibado no processo de violência doméstica do qual é acusado pela ex-mulher foi um vento mau que apareceu hoje de manhã. Não consigo entender várias coisas, mas há uma que me espanta mais do que qualquer outra: uma juíza que Bárbara Guimarães considerava incapaz de imparcialidade e tendo, por isso, pedido a sua escusa, mantém-se no caso e é capaz de dizer coisas como: “Causa-me alguma impressão a atitude de algumas mulheres." A mim também, sobretudo se são juízes.

A lei não confere poder a uma juíza para proferir semelhante frase e as implicações que possam ter, em especial junto da opinião pública. Ainda há quem venere os juízes com o mesmo fervor com que em outros tempos se venerava a opinião do padre ou do médico. Vivemos numa aldeia global, bem sei, mas os juízes deveriam perceber que existem limites e deveriam ter em conta que observações sobre o carácter das pessoas não são do seu pelouro.

No caso presente, seria ainda de ter em conta o vasto curriculum do acusado, com um conjunto de processos perdidos, de multas aplicadas, e ainda com uma constante presença nos meios de comunicação social a difamar a ex-mulher e familiares.

Bárbara Guimarães manteve uma elegância ímpar e tem sido enxovalhada da pior maneira. Sobre isto a juíza não tem nada a dizer? Tem, pois, tem para dizer uma pérola que, espero, possa ser analisada em aulas no Centro de Estudos Judiciários ou objecto de processo no Conselho Superior de Magistratura. Diz a juíza, Joana Ferrer de seu nome, que Bárbara Guimarães é uma mulher determinada e auto-suficiente do ponto de vista financeiro, que deveria ter ido ao Instituto de Medicina Legal mostrar como foi vítima de maus tratos.

Portanto, posso concluir que para esta espécie de juiz, garante da boa manutenção de uma sociedade, todas as vítimas de abuso estão a correr para o dito Instituto. Nunca leu, coitada, nada sobre o perfil psicológico de vítimas de abuso. Deveria ler. É pena que a justiça não sirva para ser justa. Mas, lá estamos, um é um professor e a outra é apenas a Bárbara.

Não acontece só aos outros

Patrícia Reis, 15.12.17

A reedição do livro de Maria Antónia Palla, "Só acontece aos outros - histórias de violência" é uma radiografia de uma sociedade portuguesa que, afinal, em 40 e tal anos pouco ou nada mudou. Lançado há uma semana, pela novíssima editora Sibila da escritora Inês Pedrosa, este livro de Maria Antónia Palla tem agora uma segunda vida e permite que qualquer leitor possa descobrir uma grande jornalista através das reportagens que fez ao longo da sua vida. São peças de antologia, como descreve a editora, mas são também uma radiografia da sociedade portuguesa, que mudou muito e mudou quase nada. As reportagens de Maria Antónia Palla descrevem situações que ainda hoje perduram, violências sucessivas com crianças, mulheres e idosos. Histórias portugueses, muitas delas escritas na década de 70, algumas antes do 25 de Abril, espelham a vida de certas pessoas e de como a dor, a desilusão, a fraqueza ou o heroísmo podem ser, demasiadas vezes, penalizadoras. Uma menina que aparece morta; uma anciã violada por um jovem; ex-amantes que combinam espancar e torturar a mulher com quem andaram; uma mulher mata o filho recém-nascido; um rapaz português aparece morto numa cadeia espanhola; uma mulher, cansada de maus tratos, envenena o marido. Estas são algumas das histórias reais que serviram de mote para a investigação da jornalista Maria Antónia Palla. No prefácio, Helena Matos, também ela jornalista, escreve que este livro “mostra-nos como para lá da espuma do que enche as primeiras páginas dos jornais – os planos salvíficos para o país, as declarações dos governantes, os programas que vão resolver definitivamente os problemas inadiáveis [...] – estava e está a vida das pessoas. Porque a Maria Antónia, acima de tudo, conta-nos as pessoas”. O livro, há tanto esgotado, é agora reeditado com a inclusão de duas reportagens inéditas, uma delas escrita na década de 80 do século passado e outra já este ano. Comprova-se assim que a jornalista, de 83 anos de idade, mantém o seu interesse contínuo na sociedade portuguesa. Na biografia "Viver pela Liberdade" (edições Matéria-Prima), Maria Antónia explica-se com facilidade: uma vez jornalista, para sempre jornalista. E é essa forma de olhar o mundo que lhe permitiu, em 2017, voltar à reportagem, desta vez para abordar a questão da adopção e das instituições de acolhimento. Existem milhares de crianças nas instituições, abandonadas, retiradas à família. O mundo da adopção é visto agora por Maria Antónia Palla numa reportagem única, na qual não pretende atingir qualquer imparcialidade, já que não considera possível que um jornalista envolvido nas coisas do mundo possa ser imparcial. O facto de permanecer activa e sempre jornalista, confere a Maria Antónia Palla um olhar sobre o Outro que é raro, que é coincidente com o jornalismo que aprecia: aquele que implica pesquisar, ouvir, estar atenta. As histórias sobre as quais escreve são fortes e são, apesar de terem um tempo cronológico de escrita, intemporais. Infelizmente, a violência permanece mesmo que possamos nomear um certo avanço civilizacional. “Nem toda a mudança dependeu da vontade de mudar. E essa vontade, quando existiu, ficou muitas vezes aquém da necessidade, em particular no que se refere às mulheres, aos jovens e às crianças. Faltou à 'revolução' o rasgo de inventar o futuro. A voz do cidadão comum permanece silenciada. A dor da gente não chega aos jornais, o diz o poeta na canção”, escreve a jornalista.

quer saber a dieta da Adele?

Patrícia Reis, 06.12.17
Se é mulher, de qualquer idade, provavelmente quer. Se tem mais de 40, a probabilidade de querer é ainda maior. E porque todas-temos-de-ser-magras, há publicidade a receitas milagrosas a cada esquina das redes sociais - e parece que é tudo normal.
 

Então, a coisa dá-se. Chegamos aos 40 anos de idade e cada quilo que engordamos chega, generoso, com a família mais chegada, pai, mãe, filhos, instala-se naquilo a que a minha mãe designa como a faixa de Gaza, barriga, coxas, peito, cara, rabo. É um quilo, nada de grave. Vamos suar as estopinhas e caminhar ou frequentar o último ginásio genial com uma estratégia complexa e milagrosa. Sabemos, por termos a idade que temos, que estamos a viver uma ilusão.

Depois fazemos 45 anos de idade. A coisa piora um bocadinho – a vários níveis – e ver as revistas de moda só pode ser um exercício que se faz com descontração, cientes de que ninguém tem corpos assim, pelo menos ninguém feliz, a comer um bom queijo alentejano e a beber um copo de vinho tinto. Os nossos quilos a mais são nossos, logo não faz qualquer diferença a nossa melhor amiga ou a senhora a lavar a cabeça na calha ao lado no cabeleireiro, dizerem: ah, que disparate, estás óptima. Se uma pessoa sabe que já não entra numas calças 36, pois não entra numas calças 36 e já entrou, não há conversa.

Pessoalmente, aos 47 anos, não me posso queixar, admito. Vivo bem com o corpo que tenho, mesmo que me possa atraiçoar aqui e ali, e não vista um 36. O pior é a perpetuação do fascínio com a magreza e com as dietas mais estrambólicas. Como estamos todos dominados pelas redes sociais – eu só conheço duas pessoas que não têm facebook e uma delas é a minha avó – somos bombardeados com as informações mais diversas, basta serem publicações patrocinadas e nas quais nós nos inserimos, ou seja, fazemos parte do grupo alvo: mulheres, entre os 35 e os 55.

E estas publicações repetem-se todas as semanas e, todas as semanas, me perguntam: Sabe como Adele emagreceu? Veja como Julia Roberts se mantém. E por aí fora. Tudo isto com as fotografias das senhoras cuja imagem e nome é usado e abusado para vender uns comprimidos ( à base de umas plantas de que eu nunca ouvi falar, mas eu não sou especialista em plantas), que só se vendem online, e nesta semana, maravilhoso!, em promoção, encomende já, estamos com 30% de desconto.

Nada disto é bom, já se sabe, e há quem vá cair na canção do bandido por acreditar que a Adele ou Angelina Jolie (que está claramente feia de magra na minha opinião, mas isso agora não interessa nada) tomou aquelas coisas à base de Hoodia Gordonii ou Garcinia ou outra coisa qualquer que, afinal, depois de tudo, porque carga de água é que não se experimenta mais uma coisa? Depois da dieta do paleolítico, da dieta das maçãs, da dieta com produtos que parecem comida de astronauta, pois vamos lá experimentar estes comprimidos.

Esta semana atingimos o pináculo da perfeição, para citar Miguel Araújo, com um post patrocinado que anuncia uma dieta que não se deve fazer porque emagrece de imediato. Carregando então no botão que diz saber mais, fico eu, pobre alma inocente, horrorizada com a venda de outros comprimidos, que está provado que emagrecem de um dia para o outro, mas que os nutricionistas não recomendam. Mostram imagens do antes e depois que, para sermos honestos, são imagens da senhora A e da senhora B, nunca a senhora B podia ser o depois da senhora A pela simples razão que não são a mesma pessoa. O texto e as imagens mostram que é possível emagrecer num ápice, mas não o façam. É uma forma doentia de promover uns comprimidos (esta coisa dos comprimidos é uma mania?) que, no desespero, alguém menos sensato pode encomendar. Porventura com promoção especial desta semana.

Eu denunciei este post, um post patrocinado, algo que alimenta financeiramente o senhor Mark Zuckerberg e esta invenção extraordinária que une a aldeia global. Não sei se terei alguma sorte com a minha denúncia, o mais certo é ver isto outra vez daqui a duas semanas. O pior de tudo, penso eu que tenho sobrinhas a sair da adolescência, raparigas que vêem as tais revistas de moda e atrizes perfeitas em filmes românticos que Hollywood fazia na temporada antes-do-assédio-ser-assunto, são as jovens com problemas de peso que vão cair nesta esparrela.

Moral e eticamente, o senhor Mark Zuckerberg não deveria aceitar estas coisas, mesmo que lhe dê mais uns trocos. O mesmo tipo de posts é colocado no Instagram, criado pelo senhor Mike Krieger, com promessas de dietas milagrosas que vão mudar a vida de quem quer perder peso. Querer perder peso é, muitas vezes, uma questão estética, muitas vezes de saúde e bem estar e implica necessariamente com a auto-estima das pessoas. Não deveria ser possível enganar as pessoas deste modo. Dirão que só é enganado quem quer. Será?

frames da vida

Patrícia Reis, 25.11.17

O Pedro a cortar um texto na Grafinova, em pé, com o x-acto na mão, concentrado. Foi a primeira vez que o vi, fazia ele parte daquele grupo especial do Caderno 3 de O Independente.

Não nos tornámos amigos com rapidez, eu era apenas a estagiária. Foi o tempo. Pedimos desculpa um ao outro num certo almoço de bacalhau num restaurante de que o Pedro gostava em especial.

Rimos os dois às gargalhadas com recordações da vida amorosa de cada um de nós.

Mostrámos o orgulho devido com as conquistas dos nossos filhos, filhos com Maria no nome.

E depois pequenos frames da vida.

O Pedro a discutir músicas com o João Gobern.

O Pedro abraçado à Cila. À Ana Teresa. À Margarida.

O Pedro sério. Na televisão, na rádio, por escrito.

O Pedro com a Helena a rirem os dois, a grupeta reunida, num jantar ali ao lado, num restaurante, e eu a invejar tanta partilha e alegria.

Bolas, Pedro, podias ter avisado que isto ia ser tão curto. Podíamos ter feito aquela coisa estranha para a Egoísta, ou aquela proposta igualmente estranha a uma fundação.

Podíamos ter feito tanto, e agora não há tempo. Tu fizeste muito e quem te conheceu só pode mesmo chorar-te. Desculpa se não te respondi com mais pressa, desculpa se a vida nos atrapalhou em algum momento.

Agora resta-me dizer, até já. Ficamos mais pobres sem ti.