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Delito de Opinião

Pensamento da semana.

Maria Dulce Fernandes, 03.10.21

"As máscaras vão manter-se obrigatórias em locais concretos, como sejam os transportes públicos, os hospitais e lares, ou as grandes superfícies comerciais. Nas lojas do comércio local deixam também de ser obrigatórias."

Finalmente podemos tirar as máscaras! Mas devemos ou queremos até pô-las longe das nossas vidas?

Pessoalmente, não vou deixar de usar a máscara no meu local de trabalho. Não sinto que as condições de segurança, no que concerne à saúde pública, sejam as ideais para começar a embandeirar em arco.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

Portugal ganhou com o Covid-19

jpt, 23.09.21

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"Ganhámos com o Covid-19", vangloria-se o secretário de Estado da Modernização Administrativa. Quando a epidemia aportou à Europa tivemos uma ministra da Agricultura a perspectivar que isso seria bom para as nossas exportações - mostrando bem o quão "a leste do paraíso" estava o Conselho de Ministros desta questão. Depois tivemos muitas decisões e discursos erráticos. Em Janeiro, quando éramos o pior país do mundo em termos absolutos, também tivemos um oficial de comunicação [ex(?)-jornalista] de uma universidade pública a ter muito sucesso ao consagrar a ministra da Saúde como "Super-Marta". Por esta... ter invectivado uma jornalista que a questionava sobre a tétrica situação que vivíamos. Em Maio apanhei o deputado Pinotes que, enquanto comentava futebol, clamava "está tudo a correr bem". Nem duas semanas depois viu-se, no regresso a medidas de controlo. Ou seja, para estupor e vil demagogia estaríamos já vacinados. 

Mas agora, no nojento afã demagógico de vésperas de eleições, vem-me este clamar isto. Em cima de tudo o que aconteceu, dos mortos e sofrimentos, das falências e desempregos, das mágoas e máculas, vem-me este tipo dizer "que ficámos bem na fotografia". No meu tempo um tipo ouvia uma coisa destas e respondia-lhe como deve ser, aludindo à imoralidade materna e/ou pendor anal do locutor. Mas agora não se pode, dizem-nos "preconceituosos", "fóbicos". Fica assim, então, o pior, mais peludo e abjecto dos insultos: Eurico Brilhante Dias!

Ainda os insultos a Ferro Rodrigues

jpt, 23.09.21

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(Homem com altifalante, Correio da Manhã, 10 de Agosto de 2014)

Levantou celeuma o episódio dos recentes insultos a Ferro Rodrigues proferidos - enquanto o Presidente da Assembleia da República almoçava com família e próximos colaboradores - por um grupo de adversários das vacinas contra o COVID-19. Li e ouvi vários exigindo averiguações e processos jurídicos contra os manifestantes. Muitos negaram - como se nisso agravando a situação - o carácter espontâneo afirmando-lhe dimensão organizada e até tutelada. E foi notório que vários implicitaram ou explicitaram ser aquilo o "ovo da serpente", um ataque inaudito à democracia. Nisso exigindo-se um procedimento criminal. Ouvi mesmo, num programa de produção de opinião política, a secretária-geral adjunta do PS e dois antigos dirigentes do PSD e do CDS clamarem por um processo contra os manifestantes, afirmando um "crime público" e até criticando, ainda que moderadamente, Ferro Rodrigues por não ter apresentado queixa.

Sobre isso aqui botei o "Mulher com Altifalante", recordando processos similares ocorridos há meia dúzia de anos, e que não vêm sendo considerados pelos produtores de opinião como o primeiro passo na escalada para o fascismo. E li ontem um texto muito interessante, muito informado, de Carlos Guimarães Pinto: "Lágrimas de Blocodilo". É uma memória preciosa, até porque explicita fenómenos similares aos que aconteceram agora com Ferro Rodrigues mas com implicações políticas muitíssimo maiores.

Transcrevo um excerto: "Insultar ou ameaçar durante uma visita oficial ou atividade política já é condenável, mas fazê-lo enquanto a pessoa está num momento da sua esfera privada é muito mais grave porque rouba à pessoa o direito a ser mais do que político. Reprimir esse direito é uma forma desumana e antidemocrática de condicionar a ação política.

Este caso fez-me lembrar outro já com nove anos. Passos Coelho saía de casa com a sua mulher e filha de cinco anos quando um grupo de pessoas que o esperava à porta de casa se aproximou deles para o insultar. Chamavam-lhe assassino por causa das portagens na Via do Infante (que estariam a causar acidentes mortais na EN125). A filha, assustada pelos insultos, começou a chorar. Tal como no caso de Ferro Rodrigues, a segurança pessoal evitou males maiores. Nessa altura, poucas vozes se levantaram à Esquerda para condenar o sucedido. Pelo contrário, no ano seguinte o BE publicitou um novo protesto à porta da casa de Passos Coelho. O responsável pela organização do protesto acabaria eleito deputado pelo BE. A intrusão violenta na esfera privada não só não foi condenada como foi institucionalizada, incentivada diretamente por um partido e o seu organizador promovido dentro desse partido. Nessa altura acharam que valia a pena insultar e intimidar um pai que levava a sua filha à praia por causa de uma portagem. O organizador tornou-se deputado em 2015, aprovou vários orçamentos, mas a portagem continua a existir. Não se lhe conhecem protestos junto à casa de férias de Costa a chamar-lhe assassino por manter a portagem."

O texto peca por não nomear o indivíduo a que alude - o que é nítido eco de um traço cultural português, o de elidir o "nome dos bois". Eu não me lembrava destes episódios, naquela época vivia no estrangeiro e ter-me-ão escapado. Por isso fui agora procurar informações sobre o assunto. E pelo que percebi o putativo organizador dessas arruadas insultuosas, depois elevado a deputado, chama-se João Vasconcelos. Será ele um agente do fascismo? Têm a palavra os indignados.

Mulher com Altifalante

jpt, 13.09.21

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(Mulher com Altifalante, Escola de Vermeer, c. 2010-2020)

Sobre estes anti-vacinas já aqui botei o que me é suficiente, resmungando a histeria ignorante que os imobiliza, seja nisto do Covid-19 seja nas restantes doenças. E  muito me indignei quando antes do processo de vacinação surgiram alguns patetas a propagandearem contra a participação nesse passo sanitário - a primeira pessoa que vi nesse disparate foi Maria José Morgado na tv. Mas, mesmo considerando estes anti-vacinas um coro de coirões, entendo que é muito diferente discutir a vacinação da população em geral ou a das crianças, o que não significa que acredite eu que a Pfizer e congéneres sejam os Herodes actuais.
 
Dito isto, leio muita gente muito ofendida porque 30 ou 40 desses maluquinhos anti-vacinas, em estado de histeria aguda, foram ontem à porta do restaurante onde comia Ferro Rodrigues. E ali se fartaram de emitir perdigotos e de gritar impropérios, com altifalante ou a plenos pulmões, ao actual Presidente da A.R.
 
 
 
(Pedro Passos Coelho, protestos na Feira do Livro em 2012)
 
Face a isso as pessoas "bem-pensantes" ofendem-se, clamam a inadmissibilidade desta "arruada", dos insultos e da agressividade. E a partir dela reafirmam o perigo iminente do fascismo. Porventura detectam a insidiosa mão do prof. Ventura. E presumo que até reconhecerão o espírito de Steve Bannon, conluiado com o de Farage, já para não falar do halo magiar, e mais demónios que haja.
 
Enfim, eu lembro-me destes agora ofendidos a saudarem outras pequenas arruadas "espontâneas", dos seus perdigotos e insultos, perfeitamente descabidos. Como esta, na simpática Feira do Livro lisboeta. Nesses momentos os tais aos quais agora doem os joanetes encontravam virtuosas aquelas acções genuinamente populares, denotativas do sentir das boas e sofridas gentes. E já nem falo de ver centenas ou milhares de manifestantes carregarem sobre a Assembleia da República, em pancadaria com a polícia ali convocada para defender a sede da democracia. Com as gentes da "esquerda" saudando o vigor e rigor democráticos que brotavam daquelas "acções populares".
 
Ou seja, toda esta hipócrita incoerência dos patetas que por andam a clamar a inadmissibilidade de se incomodar o presidente da AR é muito mais grave do uma velha gorda aos gritos num alto-falante. Ou então tudo se resume a ser virtuosa a gritaria contra o PSD (o Demónio) e malévola a contra o PS (o Espírito Santo). 

Voltar ao metro

Teresa Ribeiro, 27.08.21

Não guio. Como sempre estive convicta de que um dos principais focos de contágio da Covid é nos transportes públicos, defendi-me durante bastante tempo com um esquema de boleias que me resolveu o problema. Mas a dependência cansa e às tantas entendi que já era tempo de regressar à normalidade, até porque tenho um horário flexível, que me permite evitar as horas de ponta.

Quando voltei ao metro, a minha curiosidade concentrou-se no comportamento dos utentes. E constatei mais uma vez que somos um povo obediente e ordeiro. A maioria, quando há espaço que chegue, preocupa-se com o afastamento e usa máscara. Mas claro que há excepções. Em poucas semanas vi gente ao molho, sem necessidade. Magotes a concentrarem-se escusadamente junto às portas, muito antes de o metro entrar nas estações, pessoas sem máscara por estarem a beber, ou a comer, ou porque sim. Tanto que se fala na importância do distanciamento social e muitos, sem pensarem duas vezes, sentam-se nos bancos que ficam costas com costas, de modo a quase tocarem na cabeça uns dos outros.

Nunca me apercebi tanto como agora de que há imensa gente que tem o vício de ocupar o tempo que gasta nas deslocações a falar ao telefone. Numa só carruagem é comum ver várias pessoas nesse trai-lai-lai e facilmente se percebe, porque muitas falam alto, que não se trata de telefonemas inadiáveis.

Não é preciso ser especialista em epidemiologia para perceber que o risco de contágio aumenta com este género de comportamentos, tão fáceis de corrigir. Tanto tempo que se tem gasto em televisão a entrevistar especialistas, tanto que nem os mais pacientes já  os conseguem ouvir, e ninguém se lembrou de encomendar uma campanha, feita de forma simples e divertida, que chame a atenção para a importância dos detalhes na prevenção do contágio?

Ontem não pude evitar um risinho amarelo quando entro numa estação e oiço em fundo a voz de uma funcionária avisar que "a linha verde está com perturbações". Hoje tive a certeza que a velha rotina se tinha instalado na minha vida quando ouvi ao chegar ao metro, a voz de uma funcionária a pedir "desculpa pelo incómodo causado", pois "o tempo de espera na linha azul" podia ser "superior ao normal". 

E claro, escadas rolantes avariadas também existem com fartura. Há coisas que nem com a pandemia mudam...

Cidade Suspensa

jpt, 23.08.21

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo, Lisboa 2020)

No início de Março de 2020, mesmo que nos poderes fácticos ruminassem ainda os flâneurs flanantes, muitos de nós - angustiados com o que se passava nos países vizinhos - nos apressámos a retirar os petizes das escolas e a encerrá-los em casa, enquanto começávamos a evitar os avoengos. Em meados do mês o governo cedeu à evidência e declarou o confinamento - enfim, o Primeiro-Ministro haveria depois de proclamar que isso nunca existira mas essa sua proposta de "narrativa" não teve sucesso.

Fechámo-nos então todos em casa - com as consabidas excepções laborais -, desvanecendo o bulício de cidades e vilas. E logo no dia seguinte saiu à rua o Miguel Valle de Figueiredo, diariamente a fotografar o vácuo humano que o circundava. Calcorreou Lisboa e fez este "Cidade Suspensa", grande livro em formato de bolso, colecção de fotos a preto-e-branco, essa cor do silêncio. Guardou assim a memória da confinada Baixa monumental, do seu Tejo então desguarnecido, com vislumbres das míticas colinas e laivos dos bairros antigos ainda de tez popular, aquilo que sempre nos surge como o identitário da grande Lisboa e do vetusto alfacinha. E a das avenidas em tempos "novas", esse restos sempre apreciados do Estado Novo, tal como a da marca d'água desta II República, as fileiras de edifícios de serviços e as plataformas de transportes. Todos esses sedimentos da cidade unidos pela escassez de gente, tal como os diferentes templos, estes numa ecuménica solidão. Mas também aos lisboetas o fotógrafo perseguiu, mostrando-nos que não estavam eles desaparecidos, devastados, mas apenas acoitados, assomando às varandas, resistindo sarcásticos (decerto que ficará lendária a sua fotografia do lençol pendurado clamando "My husband is for sale"). Demorando-se, cruzou os parcos transeuntes nos seus inadiáveis, submersos nestas máscaras sanitárias, então polémicas, feitas veros cabrestos das almas. Bem como as restantes crianças ainda assim brincando. E, porque de saúde tanto se falava, fixou alguns desportistas a solo. Trouxe ainda médicos e enfermeiros afadigados, esconsos pois no securitário exigido, além de trabalhadores avulsos num desapoiado vai-e-vem pedonal, ainda mais exaustos do que no antes desta toda angústia. Foi assim em Março e Abril de 2020, durante a unânime suspensão. E termina o livro no 1º Maio, na visão da encenação pública da Alameda, pobre festa que tão resmungada foi, quando a tal momentânea congregação se cindiu.

Passou já um ano e meio sobre este início. E naquela época não se esperaria que tudo isto demorasse tanto tempo. Foi uma cesura, no tempo. Mas, mais do que tudo, nos ritmos. Nas nossas mentes, até bem mais do que nos hábitos, e quanto estes mudaram... Cesura que tanto perdura. Releio este livro, refolheio-o. E diante do preto-e-branco, de todo aquele silêncio que ecoa nas páginas, parece-me que urge cerzir o tão esgarçado. Pois, de facto, e por muito que o tenhamos alvitrado ou mesmo sonhado, nada de épico aconteceu.

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Cidade Suspensa: Lisboa em Estado de Emergência, Miguel Valle de Figueiredo (fotografias), Bruno Vieira Amaral (texto), Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020.

 

 

 

 

(Com este postal comecei no  meu blog uma série sobre os meus "livros do covid". Como vem aí a Feira do Livro deixarei também aqui no DO alguns desses postais, que nada mais serão do que "apelos à leitura" desses livros com os quais dialoguei sobre esta era).

O "Público" despublica

jpt, 20.08.21

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Em Abril de 2020 estávamos confinados, e a maioria muito ansiosa com o Covid-19. Nisso muito se lia e debatia sobre o assunto. No dia 15 o epidemologista Pedro Caetano publicou no "Observador" um texto veementemente crítico dos discursos dominantes em Portugal, manuseando os dados estatísticos para afirmar que se escondia uma situação gravíssima. 

Foi um clamor generalizado, e nesse dia o texto foi mais pontapeado do que defendido, com enorme arreganho, coisas do ambiente tenso que então se vivia. E muitos atacaram o jornal por o ter publicado - lembro-me de ter lido um jornalista (que fora o mais activo nos blogs entre o jornalismo português) defender que o "Observador" não deveria ter autorização para... existir. E do meu nojo diante de tal afirmação vinda de um jornalista, mas percebendo-a denotativa da mundivisão socratista, linha essa em que esse se perfilhou sob o capuz de "independente". Em suma, foi um dia em que muito se bateu no cientista e no jornal, este dito de "extrema-direita" e, como amiúde implicita Pacheco Pereira, mero instrumento de grupos económicos. 

No dia seguinte o "Observador" publicou um artigo do biólogo João Correia. Também ele manuseando os dados estatísticos (e uma bela ironia, já agora) opôs-se explicitamente ao artigo da véspera, dando uma visão bastante diferente da situação sanitária do país. E, claro, também esse texto foi bastante discutido na imprensa, blogs e no eixo FB/Twitter (e muito louvado, diga-se, pois também terá servido um pouco de paliativo para as nossas angústias de então). Ainda assim eu não li um elogio que fosse à estratégia editorial do jornal de apor visões tão opostas sobre assunto tão candente. Mas pelo menos nesse dia não vi apelos ao seu encerramento e alusões à sua esconsa agenda fascizante. 

Ontem o jornal "Público" publicou um artigo do médico Pedro Girão. Avesso à vacinação dos menores - o que é uma posição legítima -, e clamando a falta de comprovação científica das vacinas - o que sendo uma atoarda é legítimo de ser dito, pois não viola deontologia nem é calúnia. É certo que o "Público" tem todo o direito ao seu critério de selecção editorial, mas este texto foi publicado. Assim, e se afinal contrariada, a direcção do jornal poderia ter vindo afirmar a sua discordância com o seu conteúdo. Ou poderia ter escrito ou induzido a escrita de um texto mais informativo de teor inverso, até explicitamente crítico. Mas não, o jornal "Público" sob o director Manuel Carvalho, pura e simplesmente apagou o texto ("despublicou-o", neste falsário jargão de agora). 

Convoco o exemplo de Abril de 2020 (também sobre o tema Covid) para, na comparação, ilustrar como este episódio de ontem tanto demonstra um jornal a bater no fundo, e com estrondo. E esclarece bem o tipo de mentalidade dos seus leitores, que isto aceitam. Pior ainda, mostra o teor colaboracionista dos seus "colaboradores" - pois se os jornalistas da casa têm de ganhar o salário já os "colaboradores" não têm qualquer desculpa para pactuar com coisas destas. Quanto ao "grupo económico" por detrás do "Público", isso já é matéria para as elaborações de Pacheco Pereira.

Voltaren

jpt, 15.08.21

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Na sempre aziaga sexta-feira 13 tombei, inopinadamente, sob a urgência dos unguentos. Acabrunhado pelo império da radiculite fiquei à mercê de mãos caridosas, as quais me aspergiram com a última edição da "Visão", boletim que nunca leio - à excepção da sua excelente (fora-de-)série "Visão História", que sempre recomendo.
 
Assim sendo, neste meu imobilismo desalentado, deparei-me com uma entrevista a José Pacheco Pereira (publicitando um novo livro, o que não sendo soez é característica...), cuja retorcida argumentação muito acalentou os sintomas dos meus "bicos de papagaio". Mas tenho de ser justo, ali deparei também com uma belíssima crónica, "O avô António e um restaurante à beira da estrada" de Dulce Maria Cardoso, uma pérola rara nos periódicos nacionais, um verdadeiro Voltaren moral adequado os meus actuais padecimentos. Se não encontrardes a revista acorrei à pirataria pdf e lede o texto...
 
Madrugo hoje, insone de incómodo, e noto que no pavilhão vacinatório de Odivelas a turba rodeou o vice-almirante Gouveia e Melo, apupando-o e apodando-o de "assassino". Uma vera feira medieval, moles ululantes feitas de corcundas, raquíticos, alguns leprosos camuflados, desembarcados das "naves de loucos", suplicantes, um ou outro escravo eslavo, bruxas, pernetas, prostitutas e manetas, "endireitas" agitadores, pajens pernósticos, frades demoníacos, agentes de Castela e Aragão, mendigos ladinos e quantos mais, e isto enquanto os israelitas se escapavam, lestos, desde logo sabendo que a procissão irá sobrar sobre eles... É assim na capital do Reino.
 
Por cá, na vila a Sul do Tejo, narram-me o que se passa na vacinação. Inoculadas que foram todas as gerações mais velhas, sem preocupações nem incidentes, chegou agora a vez dos jovens, os dezoitonários, mancebos e mancebas... Que vêm acompanhados das mães, pedem apoio qual recobro sofrido, neste chegam a desmaiar, e é tamanha a histeria que - e só agora, apenas para esta leva júnior - se instalaram colchões no chão do pavilhão para que recuperem da "agressão" vacinatória.
 
De todas estas desvairadas coisas logo se soube alhures. Ao largo da costa aprestam-se os barcos bárbaros, velame já visível desde o promontório, e da raia chegam novas de que se agitam os berberes. D'El-Rei nada se espera, cirandando como sempre...
 
E eu, amarfanhado por este grifo que me acomete, feneço. Pois, afinal, não há Voltaren a dar-lhe.

Fleuma

José Meireles Graça, 30.07.21

O socialismo, a dívida, a Covid, são doenças endémicas. E estas enfermidades originam atitudes e declarações que não deixam esquecermo-nos delas, mas que devemos encarar fleumaticamente.

Por exemplo, um molusco gastrópode escreveu hoje no Tweet: Que chato, não é? INE anuncia esta sexta-feira o maior crescimento de sempre da economia portuguesa.

Quase verdade, uma tal Sónia confirma: No 2º trimestre o PIB cresceu 15,5% em relação a igual período do ano anterior.  A jornalista embandeira em arco e nós com ela, embora talvez fosse oportuno lembrar que o crescimento poderia ainda ser maior se a economia, em 2020, tivesse caído mais.

Estes dois cidadãos, dos quais um não tem cara de parvo, estão afectados de socialismo crónico. Incurável.

O endividamento de 753,3 mil milhões significa pouco: é 4 vezes superior ao PIB anual, portanto que saia bastante, muito, excessivamente, demasiado, torridamente, dos limites da imaginação, não interessa realmente por aí além. Uma dívida destas é coisa de tal modo lunática que a solução só pode ser de natureza celestial.

E a Covid? Estamos bem, obrigado. Poderíamos estar melhor, porém: toda a gente conhece os sintomas mas a doutrina não tem prestado excessiva atenção aos danos indirectos que a doença provoca nas capacidades cognitivas de seres sencientes aparentemente normais, como se demonstra pelo e-mail que abaixo transcrevo, dirigido a uma multinacional da saúde, e que evidentemente não terá resposta.

“Fiz pelas 15H30 uma TAC ao tórax no Hospital Velho de Guimarães. A técnica que me atendeu, cujo nome não retive, foi inteirada, porque perguntou, da razão para o exame: dificuldades respiratórias. Apesar disso, insistiu pela necessidade da máscara (o farrapo que alegadamente protege da Covid), que fui obrigado a conservar durante o exame. Durante este, preveniu a senhora, uma voz iria recomendar "encher o peito de ar" - precisamente a dificuldade que originou o exame. A mesma técnica informou, a final, que o abuso e a inépcia (qualificação minha) se destinavam a protegê-la de infecção, tendo-me abstido de lhe significar que semelhante desgraça seria um grande benefício para os serviços. Acham VV. Exªs que isto são boas práticas?”

Fleuma, disse acima. Umas vezes precisamos de mais, outras nem por isso.

Reservado o Direito de Admissão

jpt, 12.07.21

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Quem me conhece (ou tem paciência para as minhas bloguices) sabe que não sou o que vem sendo dito, estuporadamente, um "negacionista". Nem no que peroro nem na minha vida pessoal. Mas isto é totalmente inaceitável! O Estado perdeu a cabeça, as pessoas perderam os critérios.

Insisto, repito-me: vivemos um caos intelectual no poder (histriónico no PR e no Presidente da AR, mais soturno no esquivo PM, patético nos menores). Uma população angustiada e - de facto - alienada. Há cerca de um mês o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros (o ministro dos negócios estrangeiros, friso!!!!) ameaçava o governo do Reino Unido com retaliações, insultava-o de incompetente seguimento a "irrelevâncias estatísticas", desde então um número de prostitutos das letras a louvarem o extraordinário trabalho do PS/governo (o deputado Pinotes no seu part-time de comentadeiro da bola a clamar há quinze dias "está tudo a correr bem" é um exemplo inqualificável...), o país convocando os turistas da bola e das praias. E agora isto?! À revelia de lei e de ética e de bom-senso? Como é que é possível que se aceite isto? Isto não é loucura, é estupor.

Os animais são uns bichos interessantes

Maria Dulce Fernandes, 10.07.21

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Uma carreira nas forças da ordem, nas forças armadas, como segurança, ter-me-á passado ao lado? 

Para estas profissões com componente física tive sempre mais queda do que jeito, por isso nunca acalentei a ideia de poder aspirar a ser um John MacClane, ou quem sabe um John Matrix ou até mesmo um Larry Daley. 

Por isso, e também porque no meu singelo parecer a máxima de Plautus, apesar de muito acertada, não pode ser dogma, fora do âmbito que a minha profissão e o meu cargo requerem, não é de todo pacífico nem coadunante com a minha maneira de ser e de estar,  exercer funções de  polícia do povo.

É certo que cumprir e fazer cumprir a lei faz parte da ética de todo o indíviduo que se rege pelas regras democráticas de um estado de direito, mas no pó dos dias desta emergência calamitosa poderá mesmo valer tudo?

Arremessados de encontro à mole ululante, munidos de um telemóvel com uma aplicação do governo português,  com um quase inaudível "thou shall not pass", lá vamos nós quase que em slow motion salvar o mundo.

Seria bastante giro até, se não fosse o ridículo disto tudo.

Mais um.

Europa sem fronteiras

Cristina Torrão, 09.07.21

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Conseguimos agendar a vacinação cedo, para a nossa idade, com a marca desejada (Biontech/Pfizer), tivemos efeitos secundários leves (cansaço, dores de cabeça e no braço, que aliás não justificaram tomada de analgésicos; na segunda dose, senti ainda náusea durante 24 horas). E obtivemos o certificado digital.

Houve uma certa euforia, ao sabermos que ficaríamos despachados a 21 de Junho, uma segunda-feira, e planeámos a nossa viagem a Portugal para o fim-de-semana seguinte. Embora soubéssemos que teríamos de continuar a cumprir as regras básicas de higiene (máscara, desinfecção das mãos, distância), não víamos entraves à viagem. Porém, ainda antes de tomarmos a segunda vacina, começaram as dúvidas. As informações eram contraditórias, para quem viaja de carro, nomeadamente, em relação à fronteira francesa. As indicações variavam conforme as fontes consultadas: Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, ADAC (automóvel clube da Alemanha), embaixada francesa em Berlim, sites da ARD ou ZDF. Nuns casos, falava-se em vacinação completa, ou teste PCR; noutros, o teste podia ser PCR ou antigénio; ainda noutros, a vacinação tinha de ter, no mínimo, quinze dias. E, consultando diariamente as fontes, estas mudavam nos próprios sites: hoje isto, amanhã aquilo. Enfim, uma barafunda!

Ainda pensámos em adiar a viagem, à espera dos tais quinze dias depois da vacinação. Mas todos sabemos que tal adiamento implica algumas dificuldades, como datas de férias, hotéis já reservados (pernoitamos duas vezes em França), preparações logísticas em casa, etc. Como os testes antigénio se vendem em qualquer supermercado alemão por cerca de 80 cêntimos, resolvemos comprar uma dezena deles, a fim de estarmos em condições de fazer um nas barbas de algum guarda fronteiriço mais implicativo. Apesar de as fontes não serem claras quanto ao tipo de teste, torcíamos para que  chegasse o antigénio, junto com a vacina, apesar de esta ser ainda recente.

Fizemo-nos ao caminho no dia planeado. Tínhamos lido que não havia controle entre a Alemanha e a Holanda e assim foi. Não fosse a redução de velocidade, na zona de fronteira, até surgir a placa azul com a palavra Nederland rodeada das estrelas douradas, e nem notávamos que tínhamos mudado de país. Não tínhamos conseguido informações quanto à fronteira belga, mas o cenário foi o mesmo. Cerca de dez quilómetros depois de Maastricht, nova redução de velocidade, placa a anunciar o novo país, o piso da auto-estrada a piorar substancialmente… bem-vindos à Bélgica! Sem qualquer controle.

Seguia-se a temida fronteira francesa, já imaginávamos guardas fronteiriços a mandarem-nos para trás, depois de mais de 700 km de viagem… Mas, para nosso espanto, o filme repetiu-se: controle zero! Passámos a placa France com as conhecidas estrelas sem ninguém nos incomodar. Nem sequer melhorou o piso da auto-estrada, mas isso já sabíamos. O piso costuma ser bom em França, excepção feita junto à fronteira belga, até se passar Valenciennes e retirar o título da portagem. Só aí se tem a sensação de que se entra noutro país.

Nos hotéis, actuamos como da última vez, apesar de ser muito maçador proceder à desinfecção de superfícies, interruptores e puxadores de portas, depois de quase mil quilómetros de estrada e ainda antes de nos refrescarmos e instalarmos.

Na segunda noite, já em Bayonne (ou Baiona, na versão basca), perguntávamo-nos o que aconteceria na fronteira espanhola. E realmente, mandaram-nos parar! Já me preparava para mostrar o certificado da vacina, rezando para que não ligassem à data da segunda toma, quando reparei que as duas guardas fronteiriças não tinham máscara, nem sequer exigiram que as puséssemos. Não eram espanholas, mas francesas, armadas de cassetetes. Bem, já por várias vezes, no passado, demos com guardas fronteiriços armados até aos dentes, no País Basco. Mas ao tempo que isso lá vai… Queriam saber para onde íamos. Portugal! E com que objectivo? O meu marido balbuciou “vacances” e eu achei por bem dizer que era portuguesa, pois o carro tem matrícula alemã e o Horst pode passar por muita coisa, mas nunca por português. Ela olhou-me surpreendida, mas ainda perguntou quanto dinheiro levávamos. Dissemos uma quantia qualquer e lá nos deixaram passar. Um controle à antiga. De vacinas, testes, Covid não quiseram elas saber!

A fronteira portuguesa em Quintanilha, perto de Bragança, tinha aquele aspecto abandonado de sempre, no meio dos montes transmontanos. Atravessámos a ponte sozinhos, como se Portugal fosse vazio de gente e nós os únicos interessados em entrar neste curioso país.

No pé em que as coisas estão novamente, só espero que a vacina nos sirva de alguma coisa. Seja aqui, seja noutro lado.

Para Salvar o António Cabrita

jpt, 09.07.21

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O António Cabrita - poeta, prosador, guionista, crítico, conferencista na boa versão palestrante, professor, e sei lá mais que talentos vem distribuindo, para além de homem encantador, e esta até é a sua melhor faceta, "não desfazendo" nenhuma outra, raisparta - emigrou há anos para Maputo.
 
Foi lá agora re-hospitalizado, a enfrentar o maldito Covid-19. Mas o seguro de saúde acabou. E a sua condição exigirá mais quinze dias nos cuidados intensivos. A 1000 euros diários.
 
O Cabrita é um tipo porreiro (um homem magnífico, se mantendo o tom) e tem imensos objectivos e talentos. Mas nenhum deles o conduziu a acumular "redes" e dinheiro. Assim a questão é simples: ou o ajudamos ou o homem morre.
 
Eu vou dar o que não tenho. Peço-vos, conheçam-lhe a obra ou não, por favor botem algo para o safar. E de modo urgente. Senão o homem morre-se(-me).
 
ADENDA: a Teresa Noronha, mulher do António Cabrita, acaba de avisar que as contribuições obtidas na sequência de vários apelos no último dia e meio já somam a quantia necessária. E agradece a todos a solidariedade.
 
[Por isso apagarei deste postal os números das contas bancárias].
 

Os atrasos na vacinação

jpt, 08.07.21

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(Postal de 6.7.2021)
 
"Selfie" (6.7.21, alvorada). Já nem velho vou, mas mesmo ancião. E como todos nós, que a este assim chegámos, convoco o "no meu tempo" nele encontrando uma robustez moral bem superior à dissoluta anomia deste mísero hoje em dia.
 
E nisso recordo que nesse "no meu tempo", no dia em que tratei de me candidatar à universidade fui jantar com magote de amigos. E depois arrancámos - com um saco de cervejas e uns bolsos com outros consumíveis - para perto da 5 de Outubro lisboeta. Por lá aportámos cerca da meia-noite, fazendo fila já em lugares bastante recuados para a inscrição... matinal. E lembro o dia gasto, em transportes e longas esperas, na inspecção militar em Setúbal. Ou, já agora, chegar mancebo quase de madrugada aos claustros do Calhau de Mafra para ali entrar, assim tornado instruendo, ao fim da tarde. Ou as horas passadas, jovenzinho, nas inscrições escolares. Ou, já mais crescido, em filas administrativas, para impostos, certificados, e tralhas similares. E, mais do que tudo, as horas passadas esperando consultas, desde a pediatria à geriatria actual, tanto na medicina pública, como na corporativa e privada, folheando aquelas resmas de revistas usadas que tão típicas eram antes deste telefonismo de agora. Nesse "meu tempo" acontecia isso, sabíamos esperar. Um pouco demais, até.
 
Agora o Estado vacina-nos. Uma vacinação universal mas não obrigatória. Em emergência, urgente. A campanha começou mal, pejada dos aldrabismos típicos do nepotismo. Mas arrepiou caminho, convocado que foi o saber de gestão logística militar - ainda assim o Almirante-em-chefe já é criticado pelos plumitivos PS por não papaguear o relambório retórico do Público/DN/activistas-académicos, pois é preciso que não fique ele com muitos créditos dado que, afinal de contas, o lema é "o PS é que fez, o PS é que faz", adaptado do slogan do Frelimo.
 
E que leio eu agora? Acelerado que foi o processo de vacinação - pois no afã dos Reis Magos turistas o país reinfectou-se [oops "o PS é que fez, o PS é que faz"] e o governo desaustinado sequestrou a constituição - em alguns locais vão acontecendo algumas demoras. As pessoas são obrigadas a esperar pela vacina. Uma hora, até duas, por vezes mesmo um pouco mais. "O Horror, o Horror"! E vêm clamar para as redes sociais, umas queixando-se do acontecido. Outras anunciando que nunca aceitarão por isso passar. "Jamais!". Preferem até não se vacinar.
 
Ora quem eu vejo botar isto é gente da minha geração. Essa mesmo do "meu tempo". Gente que esperou ao longo da vida, ainda que cada vez esperando menos. Mas que envelheceram assim. Num pateta individualismo que nada tem a ver com a defesa do livre-arbítrio (eu a sair de casa para fumar um cigarro à meia-noite sem ser detido ilegalmente, por exemplo). Mas apenas um "individualismo" do burguesote imbecil que se acha "indivíduo muito importante". Que tem o "direito adquirido" de ser atendido à hora certa, de não esperar um momento que seja. Gente cheia de si-mesma, patetas repletos do vácuo que são.
 
E não se pode exterminá-los(?).

 

Recolher obrigatório

jpt, 08.07.21

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(Postal de 2.7.2021)
 
Devido a louvor alheio acabo de ler um artigo de uma afamada jornalista de investigação - do independente Diário de Notícias - no qual, e a propósito do Ministro da Administração Interna, as críticas aos governantes são resumidas a oportunismos de oposicionistas, afadigados a tentarem fazer cair ministros.
 
Por isso aqui garanto que não tenho a utopia de derrubar o sempiterno ministro Santos Silva, ainda por cima logo após a conclusão da presidência europeia. Apenas recordo que há menos de um mês o ministro (dos negócios estrangeiros) considerava "intempestiva", incompreensível e baseada em "irrelevância estatística" a decisão do parceiro britânico de controlar as deslocações ao nosso país - algo que depois a Alemanha também decidiu -, ameaçando-o mesmo com "retaliações".
 
Agora, e enquanto os avençados d'agora se desdobram em elogios ao governo, à "Super-Marta"e ao "está tudo bem" (como o sportinguista deputado Pinotes quando vai comentar futebol à TV), é declarado o recolher obrigatório em 45 concelhos. Decerto que medida "intempestiva" devido a uma "irrelevância estatística", dirá o auto-proclamado "parolo".
 
Quanto aos críticos? "Oportunistas", clamará a "jornalista de investigação" câncio no seu espaço no independente "Diário de Notícias". E os oficiais de comunicação - no ISCTE e não só - reforçarão os elogios à "Super-Marta".
 
No fundo? "Porreiro, pá!".

Portugal-Bélgica (crónica)

jpt, 08.07.21

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(Já velho postal, colocado a 28.6.2021 no meu Nenhures)

Na véspera dos oitavos-de-final deste Euro 2020/1 fui infiltrado, o que me criou más expectativas para o encontro pois temi alterações nas condições físicas apropriadas. Mais ainda, no próprio dia recebi a novidade, esperada é certo, de que nas relativas cercanias do estádio de Wembley a minha filha, também ela, assinara pelo clube Pfizer. Algo que me causou uma enorme desconcentração, prejudicial ao embate face aos belgas.

Pois assim me mergulhei em memórias inúteis: de quando na época passada a aguardei, ela com traumatismo asmático, agravado no pesado calendário inglês, para logo nos confinarmos num Nenhures campestre, eu em pânico, inseguro sobre os efeitos que uma hipotética fractura covidesca poderia ter na carreira dela. E isso quando o Presidente da Federação, Sousa, e o director das Relações com as Filiais, Silva, nos garantiam da impossibilidade de fechar fronteiras, sendo que Sousa prosseguia entre festejos em estádios teatrais no reduto de Pinto da Costa. E Freitas, a responsável pelo departamento médico, nos pedia para visitarmos os núcleos de veteranos - onde a minha mãe, antiga campeã de paciência, viria a definhar e morrer enclausurada - e nos alertava para não usarmos máscaras nos treinos nem aceitarmos que nos fizessem testes anti-doping. Já para não falar de Antunes, responsável dos relvados de Alvalade e Alcochete, que se debruçava sobre possíveis transferências de jogadores para o campeonato chinês. Lembrei ainda os meus frémitos quando a minha filha, já nesta época regressada à Premier League, contraiu uma lesão no tendão covidiano, ainda por cima sem que eu tivesse total confiança nos fisioterapeutas do seu clube. Enfim, tamanho foi o meu alívio, até eufórico, com a sua transferência para o Pfizer, que no domingo me alheei dos cuidados tácticos face ao nº 1 do ranking mundial e à ponderação dos titulares necessários para cumprir as matizes estratégicas que se poderiam impor durante o tempo regulamentar e, mesmo, no sempre temível prolongamento.

Tão abstraído estava que nem verdadeiramente notei que a equipa nacional, após entoar o hino, se ajoelhou como se fosse uma qualquer equipa de futebol americano, nisso decerto que arrebitando os ademanes dos holigões socratistas do Sport Campo Grande, do Atlético de Campolide e do Académico de Coimbra, já para não falar do entusiasmo que decerto sentiram os literais "Black Panthers", recém-contratados pelo Desportivo da República, ao verem o enérgico Sanches de "Poder Negro" em riste.

Assim sendo só após soar o apito inicial pude constatar algumas evoluções na filosofia do Engenheiro Santos: poventura para mitigar o número de punhos racistas erguidos no início do jogo cuidou de enviar William Carvalho, sua excentricidade, para a bancada, e Danilo, seu óbvio talismã, para o banco de suplentes. Um pouco mais à frente tudo na mesma como a lesma - como diz o povo, na sua infinita sageza - com os alas da direita e da esquerda (se é que este o era) impassíveis, pobres avatares dos excelentes Bernardo Silva e Diogo Jota que ali estavam encarregados de representar. 

As equipas entraram em cuidadosa fase de estudo, a qual teve direito a 2ª chamada e se prolongou até à 2ª época, o que comprovou o acerto da escolha do Prof. (Jubilado) João Moutinho como titular. Nesse entretanto, e apesar de algumas irreverências do aluno Sanches, decerto que devidas a ser oriundo do ensino técnico-profissional, posso afiançar que foi o período em que mais estive em jogo. Pois decorreu um futebol mastigado, condizente com a nossa claque aqui presente, entregue ao manuseio de uns belos ovos com farinheira (cuja origem não averiguei), uns rojões com molho amostardado do mais fino recorte técnico, uns decentes camarões austrais cozidos debruados com a maionese caseira, tudo circundado com tremoços temperados bem frescos e o pequeno luxo de tijelas de castanha de caju, estas ali em homenagem aos sempre indefectíveis apoiantes africanos da selecção nacional, como bem o comprovou o hino da selecção, o "Vamos Com Tudo" de autoria e trinados do artista David Carreira. Mas nestas manobras reconheci o meu estado de abatimento, o qual nada de bom augurava para o desiderato final, pois acompanhei-as com apenas uma cerveja, a condignamente titular "Super Bock".

Enfim, cerca do final da primeira parte aconteceu o rude golpe belga, selecção que - reconheço-o - muita simpatia me convoca e não só devido a Moulinsart. Ao intervalo o nosso estado era de algum torpor, em murmurados lamentos face à opção de retirar o play-maker Ferro Rodrigues da equipa, substituindo-o por um apático e inexperiente Brandão Rodrigues. Pois não basta ser (quase) homónimo para se poder levar a equipa ao triunfo. Confesso que a segunda parte por cá encontrou uma moldura humana já mais rarefeita e ainda menos confiante. Foi reconhecida, com justiça, a (tardia) afoiteza do Engenheiro, o qual com sucessivas substituições tratou de "meter a carne toda no assador", tentando inverter o agora regressado triste fado luso. Ficará para sempre a dúvida sobre porque não o fez antes, pois foi óbvio - como o demonstrou a inútil arrochada do Tio Pepe, que lhe provocou a reprimenda arbitral - que a carne assada em tão pouco tempo se torna demasiado nervosa, dando-se pouco macia às gengivas adeptas. Ainda assim o Engenheiro não mereceu a traição cometida por Raphael Guerreiro, que decidiu atirar ao poste quando as instruções recebidas eram para repetir exactamente a manobra de Budapeste.

Terminado o confronto de Sevilha, constatado o atentado blasfemo à religião oficial de Estado, retirámo-nos acabrunhados sem mesmo escutar os sacristões congregados nos painéis televisivos. Já no leito algo me reanimei ao ler as doutas declarações do presidente da Federação, Sousa, afiançando-nos que tínhamos sido os melhores e que, mais importante, somos como os melhores. Nisso convocando o nosso fervor para 2022, ano no qual, prometeu o Engenheiro, seremos campeões do mundo. Adormeci, mais pacificado. E sonhei com múltiplas medalhas em Tóquio. E com Eduardo Ferro Rodrigues.

A normalidade de sempre

jpt, 08.07.21

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Este cartoon - identificado como "Volta ao Normal" de Gerhard Haderer - é o que mais relevante vi/li nos últimos longos tempos. Bateu-me, bem! Encontrei-o no mural de Facebook de Alberto Ribeiro Lyra, um brasileiro com o qual tenho ligação desde os primórdios do FB por razões que já não lembro (conexão moçambicana?, bloguismo?), e que tem um mural magnífico, com constantes pérolas iconográficas, uma inteligência visual rejubilante. (Daqueles casos que me levam a praguejar quando ouço os patetas encartados a resmungarem contra as "redes sociais". Pois nestas, e assumo a arrogância, cada um vê/lê/encontra o que é. E quem só encontra mediocridades é porque é um medíocre, passivo).

Avante, este cartoon bateu-me bem! Porque diz o necessário nesta fase da maldita era covidocena. E, muito mais, nesta minha fase pessoal, aguentem lá este meu quase-porno intimista. O almoço foi singelo e saboroso, endógenos alguns dos comestíveis, verde o vinho, à mesa queridos familiares consanguíneos e espirituais, o dia está soalheiro. Agora vou dar um mergulho. Depois, secar-me-ei e afixarei este arame. A enfrentar o que aí vem. Tenham cuidado comigo! (cuspo, a la Clint).

Obrigado, Lyra. Deste vida ao zombie.