Hoje não é fácil distinguir os sérios dos que fazem por parecer sérios.
Os sérios são normalmente sinceros, francos, discretos e, pelo menos na aparência, rigorosos. Os que fazem por parecer sérios, que correspondem ao grosso da coluna, ao lumpen que se apoderou da política, têm tendência a ser verborreicos. Alguns são bem-intencionados mas acabam por se tornar perigosos.
Jorge Miranda, numa excelente entrevista ao Expresso, e à semelhança do que já antes afirmara ao boletim de Mário Crespo, assinalou sem tibieza e com o rigor a que habituou a academia, a insensatez da proposta de revisão constitucional do PSD. A noite passada, no mesmo programa, Isabel Moreira, que foi muito atacada a propósito, e também com despropósito, em relação às posições que defendeu sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, acabou, com clareza e elegância, com o que restava da revisão constitucional de Passos Coelho.
Estranhamente, agora que o primeiro-ministro anda a banhos e o PS “contratou” um líder parlamentar barbudo, talvez chegado da Sierra Maestra, Portas continua submerso num qualquer oceano à espera que os fogos passem, enquanto Louçã se mantém, certamente, tal o silêncio, a banhos na fantástica Graciosa. Vítor Constâncio no BCE acaba por ser uma chatice para os críticos do centrão.
Mas vamos ao que interessa.
A proposta de revisão constitucional do PSD começou por ser isso mesmo, ou seja, foi anunciada como uma “proposta de revisão”. Só que horas depois passou a “projecto”. A seguir, com o passar dos minutos, virou “ante-projecto”. Enfim, alguns dias depois não passava de um conjunto de “ideias para a discussão”. Neste momento, era inevitável, não passa de um embrião. Cada vez mais uma proto-proposta.
O milando, vê-se neste momento, é que foi este o pretexto encontrado para a nova direcção do PSD arregimentar meia-dúzia de incréus, de construtores civis de confiança dependurados das promessas do líder regional algarvio e de jovens militantes à procura de emprego no furo da regionalização para os levar até ao Calçadão da Quarteira (esta gente não faz a coisa por menos). Confesso que esperava mais da festiva jornada de encerramento da campanha estival do grupo recreativo que domina o triângulo delimitado por um conhecido rodízio, o salão de baile do Naco Fino e o dito “calçadão”.
E digo propositadamente “foi” porque, sejamos claros, para desgosto de Cavaco Silva, a proposta de revisão constitucional do PSD e as suas aspirações de governo soçobraram, não nas palavras de Jorge Miranda ou Isabel Moreira, não na nebulosidade de Alcácer-Quibir, mas antes nos areais mais transparentes, sambistas e roliços da Quarteira.
Já todos perceberam que, para o eternamente jovem líder de Massamá, a proposta de revisão constitucional que o seu partido apresentou, pelos tratos que tem levado do principal proponente, está ao nível da alteração do mapa de férias de uma qualquer empresa insolvente, ansiosa por despedir os trabalhadores de baixa médica. Porém, o discurso de Passos Coelho teve uma inegável virtude, a de ser o seu primeiro discurso genuíno enquanto líder do PSD.
Genuíno na medida em que Passos Coelho foi capaz de mostrar “sentida” preocupação pela situação económica que o país atravessa. E ao mesmo tempo, foi de mestre, conviver com o silêncio sobre a eventual manutenção da ausência de portagens na Via do Infante, tema candente e reclamado pelo anfitrião e mestre-de-cerimónias, e apresentar, sem se rir, um ultimato ao Presidente da República quanto à convocação de eleições legislativas antecipadas, e um outro a José Sócrates, tendo em atenção o OGE para 2011.
Mais do que o orçamento de Estado, a situação económica do país ou a necessidade de revisão constitucional, Passos Coelho está preocupado com a perspectiva não haver eleições antecipadas nos próximos meses. E de entrar em 2011 sem qualquer perspectiva de chegar ao poder para acalmar aquela legião de comensais que luta por um lugar (e já agora um licenciamento ou um contrato) na primeira linha da manjedoura. Daí o ultimato de nove de Setembro. Pior cenário, digo eu, só mesmo o de poder vir a ser confrontado, lá para 2013, com um sósia de José Sócrates que não tenha atrás de si o lastro pestilento do Freeport, das universidades do cavaquismo, da atribuição de tenças nas empresas públicas, ou que esteja amarrado aos panfletos libertários dos infelizes e irados sindicatos das corporações que exercem vitaliciamente funções nas magistraturas da República.
Nenhum líder político sério, responsável e com aspirações se atreveria a pedir, nas actuais circunstâncias, um orçamento que (i) não aumentasse impostos, (ii) reduzisse a despesa, (iii) assegurasse reformas de fundo, (iv) contribuísse para construir um estado social mais justo, (v) reformasse a Justiça e, ainda, (vi) fizesse ultimatos ao PR e ao primeiro-ministro e conseguisse, no final, ser aplaudido no Calçadão da Quarteira pelos vorazes regionalistas do PSD/Algarve, cujos exemplos de boa gestão são facilmente descortináveis ali ao lado, em Vilamoura, num concelho onde continua a ser possível, nos intervalos das tertúlias do seu presidente da Câmara, encher de turistas um hotel de 5 estrelas, em pleno Agosto e sem licença, sem que a autarquia fosse capaz de dar por alguma coisa antes da bronca estalar na imprensa.
Por tudo isto, e com o resto da oposição a banhos, é triste verificar que Cavaco Silva é uma carta fora do baralho. Ainda que venha a ser reeleito, conseguiu a proeza de provar antes do final do primeiro mandato, o que é inédito, que foi um lamentável erro de casting, a somar a tantos outros em que este país é pródigo. O Presidente está metido numa camisa-de-forças e não é por causa das suas convicções políticas. Ao fim de quatro anos é-lhe impossível disfarçar, mais ainda aos seus defensores, a falta de visão política e de arrojo. A sua visão economicista da vida teve continuação na leitura dos poderes presidenciais. Ser boa pessoa, academicamente qualificado e arrumadinho não chega quando está em causa o futuro. Será por isso legítimo pensar que quando um Presidente da República se predispõe a assistir à vendetta da Justiça, da República e do regime, sem uma palavra (já nem digo levantar a voz), depois de se ter manifestado enxofrado pelas alterações ao Estatuto do Açores (ainda que com razão), só pode estar a pensar em cumprir nos próximos cinco anos as promessas que vai fazendo aos netos no intervalo da promulgação dos diplomas que o Governo lhe envia.
Assim sendo, Passos Coelho está de parabéns. A sua revisão está morta e enterrada. O pretexto funcionou. Ele já se pode dar ao luxo de não precisar de parecer sério. E tem agora todo o tempo do mundo para analisar os poderes das nossas rainhas de Inglaterra. Desta vez, o palco é só para ele. Ou melhor, o trono. E não se trata, naturalmente, de ser rainha, ou rei, por um dia. Até nove de Setembro Passos Coelho pode dar asas à imaginação. Depois acabou-se.
Não gostaria, contudo, de terminar estas linhas sem lhe fazer uma sugestão para quando chegar a hora de no seu partido fazerem as contas ao OGE de 2011 e tomarem uma decisão. Parafraseando o siciliano cardeal Mazarini, que sabia destas coisas como poucos, seria bom que nessa altura o líder do PSD excluísse da sua companhia os avaros. Os avaros são servis por natureza.
No Algarve, no Verão, em especial no Calçadão da Quarteira, entre duas caipirinhas, percebe-se tudo isto melhor do que em qualquer outro lugar do mundo. Pena foi que o dr. Mendes Bota não o tivesse avisado.