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Delito de Opinião

Bacall

José António Abreu, 13.08.14

Um jogo raro estava a ser jogado, suficientemente bom para uma comédia de Hawks, no qual um realizador está pronto a apaixonar-se pela sua actriz mas mantém a mulher por perto para fingir que não. Quando Bacall e Bogart se apaixonaram, Howard foi apanhado de surpresa. (Bogart tinha quarenta e cinco anos; Bacall tinha vinte.) O realizador disse que o romance deles estava a estragar o filme.

David Thomson, The Big Screen – The Story of the Movies. Edição Farrar Straus and Giroux, tradução minha.

 

Obviamente, não estava. Na adolescência, apesar da minha desesperante falta de jeito para assobiar, To Have and Have Not era o meu filme favorito. Ainda hoje continuará perto do topo (evito fazer esse tipo de listas). Tinha suspense, música, humor e, acima de tudo, Lauren Bacall, envolvida num delicioso jogo de sedução com Humphrey Bogart. Um jogo baseado em olhares (the Bacall look, nascido do nervosismo inicial aquando dos screen tests, que a levou a baixar a cabeça e a rodar os olhos para cima) e frases provocantes, tão inocente pelo padrões actuais mas tão verdadeiro que, como o surpreendido e ligeiramente enamorado Howard Hawks comprovou, extravasou das personagens para os actores, dando origem a uma das relações mais sólidas (ainda que, como qualquer relação, não isenta de tensões) que Hollywood já viu. Depois, ainda com Hawks (um apreciador de mulheres fortes que, no final, faziam o que os homens desejavam) houve The Big Sleep, o filme em que uma morte ficou por explicar (que importa?) e em que ela, apesar de Slim (uma alcunha transferida de Nancy Gross, a mulher de Hawks), encarnou na perfeição uma heroína de Chandler, e depois houve Dark Passage e Key Largo (ao lado de Edward G. Robinson no segundo, ao lado de Bogart em ambos) e mais uma série de filmes onde se destaca How to Marry a Millionaire, contracenando com uma Marylin Monroe pitosga, no tipo de papel que lhe encaixava na perfeição: o de calculista que, após uma série de contratempos (as más intenções sempre mereceram punição no cinema comercial de Hollywood), acaba por revelar um coração mole e é devidamente recompensada pelo destino. Porém, a partir de certa altura, a sua imagem, de inteligência mordaz mas bem intencionada, uma mistura de fragilidade (real) e altivez (nada real no início, talvez um pouco com o avançar dos anos), pode ter sido mais prejudicial do que útil: o que numa jovem é encantador, numa mulher de meia idade é irritante - pelo menos para os produtores cinematográficos. Qualquer que tenha sido a razão, desde a década de 50 Bacall entrou em poucos filmes verdadeiramente dignos de nota, tendo perdido o Óscar de melhor actriz secundária (para Juliette Binoche, por O Paciente Inglês) em 1996 (o filme era The Mirror Has Two Faces, um projecto de Barbra Streisand de que recordo aproximadamente zero).

 

Os tempos áureos de Hollywood, em que os estúdios faziam o que queriam (a Lauren mudaram-lhe desde logo o nome de baptismo, Betty Joan Perske, e obrigaram-na a adoptar um tom de voz mais rouco) viram outras actrizes com personalidade forte. Marlene Dietrich, por exemplo, que disse a Hawks: «Aquilo sou eu há vinte anos»; Louise Brooks, um cometa explosivo ainda nos tempos do cinema mudo; Rosalind Russell, taco a taco com Cary Grant em His Girl Friday (outro filme de Hawks); Tallulah Bankhead, famosa (ou quiçá infame) apesar da carreira essencialmente teatral (Lifeboat, de Hitchcock, será o único filme digno de registo em que participou); Joan Crawford, luminosa em várias obras na década de 30 (rouba todas as cenas a Garbo em Grand Hotel), funérea já na de 50, no Johnny Guitar; e, com talvez mais pontos de contacto com Bacall do que qualquer outra, Katharine Hepburn, firme e mordaz ao ponto da insolência, apaixonada por um colega mais velho (Spencer Tracy), actriz principal de Hawks em Bringing Up Baby, dando réplica a Bogart em A Rainha Africana. (Quando Bogart contraiu cancro do esófago, Hepburn e Tracy foram visita frequente.) Todas belíssimas, todas extraordinárias, mas nenhuma com a conjugação de Bacall: beleza, inteligência, força, fragilidade – e aquela voz treinada para nos encantar. Seja como for, a partir de hoje estão outra vez juntas.

Bacall 'in excelsis'

Pedro Correia, 13.08.14

Tinha um jeito único de olhar. Que lhe vinha de uma timidez profunda: poucos suspeitavam dela, chegando a confundi-la com sobranceria ou arrogância.

Baixava a cabeça e mirava-nos daquela forma, com os olhos em ângulo ascendente. E foi assim fotografada uma e outra vez, milhares de vezes, pelas câmaras que procuravam a sua prodigiosa fotogenia.

 

Era um olhar inconfundível: não houve outro como este no cinema.

 

Lauren Bacall era a última de uma estirpe rara. Vinha de um tempo em que a fama estava longe da banalização hoje tão corrente e transportava ecos dessa época tão distinta da nossa, em que havia um toque de mistério e majestade associado a quem imperava no mundo do espectáculo.

Era uma deusa do celulóide, como Ava Gardner, Rita Hemingway, Gene Tierney, Grace Kelly, Elizabeth Taylor e a eterna Marilyn Monroe. Cada vez que iluminava um pedaço de celulóide produzia em nós, mortais espectadores de osso e carne, o efeito de uma aparição.

Certas pessoas são assim: impõem-se pela sua presença. O cinema, quando não receia ombrear com qualquer outra forma de expressão artística, potencia e amplifica esta aura. Com a vantagem acrescida de ser um repositório excepcional de momentos inapagáveis.

 

Por este motivo teremos sempre Lauren Bacall entre nós. Atirando a Humphrey Bogart -- paixão na tela e na vida -- uma das mais fantásticas deixas de que há memória na Sétima Arte. Foi em To Have and Have Not -- o primeiro filme dela, o primeiro filme deles, rodado em 1944. Chamava-se Slim nessa fita, nome adequado para designar a figura esbelta que nunca deixou de ter.

Slim olhava Bogart, que ali se chamava Steve, daquele jeito único. Confessou muitos anos depois, num livro de memórias, que estava aterrorizada no momento em que rodaram a cena, filmada por Howard Hawks com base num roteiro de William Faulkner inspirado numa novela de Ernest Hemingway.

Tinha apenas 19 anos e ocultava o pânico de estar num plateau cinematográfico, rodeada de celebridades. O que contribuiu para lhe baixar o tom de voz, já grave por natureza. E acentuar a intensidade daquela mirada tão singular e tão expressiva.

Ao vê-la, ninguém a suporia sequer nervosa. Isto ajuda a perceber o fascínio da arte de representar, ao alcance apenas de alguns eleitos.

 

«Sabes assobiar, não sabes, Steve? Basta juntar os lábios... e soprar», disse-lhe Slim/Bacall.

Steve/Bogart ficou preso para sempre àquela voz, àquele olhar só gélido na aparência.

Juntaram os lábios, os corpos, as almas e viveram felizes como nos filmes. Até a morte dele os ter separado.

Hoje bem cedo, tantos anos depois, alguns cinéfilos escutaram um assobio vindo de muito longe. Sinal inequívoco: eles voltaram a encontrar-se.

Os filmes da minha vida (47)

Pedro Correia, 16.02.14

 

SHIRLEY TEMPLE: O TEMPO E O ESPAÇO

À minha mãe

 

"O tempo prevalece sobre o espaço", ensina o Papa Francisco. Costumo pensar que temos uma relação muito mais equívoca com o tempo do que com o espaço: à medida que os anos fluem, sentimos que os ponteiros do relógio e as folhas do calendário aceleram a sua marcha inexorável. 

Mas nem sempre foi assim. Recordo com frequência as longas tardes de meninice, que ainda chegam até mim com o cunho do infindável. Era tudo mais vagaroso então. E sempre soalheiro: não me lembro de um só dia dessa época que não me traga memórias inundadas de sol.

 

Um dos meus prazeres de infância era ver as Tardes de Cinema exibidas ao domingo, na RTP ainda a preto e branco. Nada que se pareça com a de hoje: a estação pública de televisão assumia as funções de cinemateca, proporcionando aos espectadores três ou quatro sessões semanais de clássicos da Sétima Arte.

Quando eu era miúdo, durante o período escolar, só estava autorizado a ver os filmes de domingo. Sempre tive o hábito de fazer listas -- e conservo ainda o inventário de muitas fitas que ia vendo, semana após semana. Mas das primeiras que vi em televisão, na mais remota infância, guardo apenas memórias fugidias. Não tanto das cenas dos filmes, mas da atmosfera que se respirava lá em casa.

A minha mãe, fervorosa cinéfila pertencente à geração que via matinés duplas ao fim de semana e cultivava o cineclubismo, ia-me falando das actrizes e dos actores de que mais gostava, heroínas e galãs do tempo em que ela era menina e moça. Situando-os na época em que se estrearam, narrava-me episódios relacionados com esse período. Episódios do cinema feito vida, episódios da vida feita cinema.

E, para mim, esse acabava por ser um filme dentro do filme.

"Este vi-o em Angola, num cinema ao ar livre... Ainda me lembro do que senti ao ver esta cena pela primeira vez... Os meus actores preferidos eram o Henry Fonda e o James Stewart: olhava-se para eles e percebia-se que eram pessoas em quem podíamos confiar."

 

 

 

O que seria da nossa vida sem tempo -- e sem tempo para contar histórias?

Eu ia absorvendo o que ela me contava enquanto absorvia também as imagens e as falas que me chegavam do ecrã. Vários desses filmes, nunca mais os vi: já então me pareciam muito antigos, pertencentes a uma era em que a Mãe tinha a minha idade e a Avó, mãe dela, estava grávida das minhas tias mais novas.

Shirley Temple era da geração da minha mãe: tinham apenas dois anos de diferença e criaram-se naquela década de 30 em que a menina dos caracóis alourados salvou a 20th Century Fox da ruína e deslumbrou o mundo. Quem era criança nessa década guardou para sempre a sua imagem risonha, incorporando-a naquele panteão íntimo a que remetemos todas as relíquias do passado cristalizadas num presente perpétuo.

O verdadeiro espectáculo, para mim, era ver a Mãe novamente criança revisitando aquelas fitas da Shirley Temple de que nem sequer o nome guardo. Lembro-me dela a sapatear com um mordomo negro, a descer uma enorme escadaria de mansão sulista, abraçada em lágrimas a um avô de ar bondoso. E pouco mais.

 

Com Henry Fonda e John Wayne em Forte Apache (1948)

 

Certas estrelas de Hollywood tornam-se mitos muito cedo e perduram durante décadas de vida verdadeira sempre ocultas na ilusão desse mito. Aconteceu isso com Shirley Temple, que encontrei pela última vez -- adolescente eu, adolescente ela também, com trinta e tantos anos de intervalo entre nós -- em filmes como Desde que Tu Partiste, de John Cromwell (1944) e Forte Apache, de John Ford (1948). Absurdamente jovem ainda, mas excessivamente velha para se manter fiel à imagem infantil que a indústria cinematográfica lhe reservou.

Não podia haver fugas ao guião: Shirley disse adeus ao cinema e ficou eternamente jovem no celulóide, espécie de retrato de Dorian Gray às avessas, num toque mágico de que só o cinema é capaz.

Oito décadas depois da sua fulgurante estreia em Hollywood, quando muitos de nós já a supúnhamos transformada num pedaço de eternidade, chega-nos a notícia de que a sua morte física só agora se consumou. Ela que foi contemporânea do presidente Roosevelt e conheceu o último grande sucesso de bilheteira no ano em que começou a II Guerra Mundial.

 

O tempo prevalece sobre o espaço. Quando soube da notícia regressei por momentos àquela sala, àquele pesado televisor Blaupunkt de válvulas, àquelas imagens a preto e branco, à companhia da minha mãe outra vez muito jovem ensinando-me a gostar de cinema enquanto me explicava sem explicar que um filme é sempre mais que um filme.

Ao ver a Shirley-menina, também ela voltava à meninice. E neste momento em que escrevo o miúdo sou eu só por disso me lembrar também.

Certos animais de escamas

José Navarro de Andrade, 01.04.12

 


Brilham os olhos de Rita no escuro aquático do medo.

Orson Welles era demasiado inteligente para gostar de metáforas. Com ele era tudo literal. Donde o medo dela, nem é bem medo, será ansiedade?, diante de uma parede de vidro. Sabemos que é azul porque já ali estivemos, mas o que deles vemos é contra uma luz líquida e branca.

“Sigamos o cherne, minha amiga! Desçamos ao fundo do desejo”, segreda-lhe ele, enquanto de costas para que não lhe vejam os olhos, ou os dentes.

E Rita vibra e vê circular o cação, tão esguio na sua pele malhada, num sossego de águas transparentes (foi mesmo assim!):

“Em cada um de nós circula o cherne, quase sempre mentido e olvidado.” Diz ela o que lhe vem à cabeça loira.

Só no fim concordam que se podem beijar sem receio. Entrega-se Rita, multiplicadas Ritas. Vitória literal de Welles.