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Delito de Opinião

O legado

Sérgio de Almeida Correia, 08.06.18

 

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 (foto daqui)

 

Em 29 de Maio pp., ao cair da tarde, o 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau proferiu a sentença relativa ao chamado "caso Sulu Sou", no âmbito do processo criminal em que este deputado e Scott Chiang, um dirigente e activista da Associação do Novo Macau, foram julgados.

Depois do que aconteceu na Assembleia Legislativa de Macau, em Dezembro de 2017, com sucessivos atropelos à lei e aos direitos fundamentais do deputado para que fosse possível proceder à sua suspensão e ao levantamento da sua imunidade parlamentar, Sulu Sou e Scott Chiang acabariam por ser julgados e condenados pela prática de um crime de reunião e manifestação ilegal, por desrespeito ao art.º 14.º, n.º 1, do disposto na Lei n.º 2/93/M, na pena de 120 dias de multa, sendo que no caso de Sulu Sou a multa foi fixada à taxa diária de MOP$340,00 (trezentas e quarenta patacas), perfazendo MOP$40.800,00, e no caso de Scott Chiang de MOP$230,00 (duzentas e trinta patacas), no total de MOP$27.600,00.

A pena em que o deputado foi condenado não o inibe de retomar, por agora e a manter-se, visto que ainda está a decorrer o prazo de recurso e há mais inquéritos em curso contra ele, o seu lugar de deputado na AL. Só a condenação do deputado numa pena de prisão igual ou superior a 30 dias é que poderia, ainda que dependente de uma deliberação do Plenário, ter a virtualidade de afastá-lo definitivamente do hemiciclo. Talvez por causa disso tenha havido quem se tivesse manifestado sastisfeito pela pena aplicada.

No entanto, a primeira questão que desde logo se colocou e aos olhos de todos saltou à vista, por comparação com situações onde estava em causa idêntico tipo criminal, foi a severidade das punições aplicadas pelo Tribunal, depois do Secretário para a Segurança também ter admitido anteriormente que a polícia tem tratamentos diferenciados.

Há não muito tempo, no processo do caso "Sin Fong Garden", em que os manifestantes ocuparam a via pública, "davam sinais de instabilidade e violência", ocuparam a faixa de rodagem, causando um engarrafamento completo do trânsito, tentando forçar a entrada num parque de estacionamento, e tendo a PSP inclusivamente "advertido os manifestantes de que estavam a participar numa reunião ilegal, aconselhando-os a sair da rua", sob pena de incorrerem na prática de um crime de desobediência qualificada, "avisos que a Polícia diz terem sido ignorados", os arguidos foram condenados a penas de multa de MOP$9.000,00 (nove mil patacas).

Num outro caso (Polytech), "que terminou com um polícia agredido e ataques à viatura das autoridades", o agressor não foi sequer acusado.

E numa terceira situação (caso Hoi Vong Chong), já este ano, em que o Tribunal considerou o arguido culpado de um crime de desobediência qualificada e de um crime de difamação agravada com publicidade, a pena foi uma multa de MOP$6.000,00 (seis mil patacas) e uma indemnização de MOP$2.000,00 (duas mil patacas).

A disparidade de posições assumidas pelo Ministério Público (que terminou as alegações pedindo a prisão efectiva do deputado e do activista por acreditar que a multa não teria efeito dissuasor) e a severidade da sentença, num caso onde não se provou ter havido qualquer desobediência a ordens legítimas da autoridade policial, não houve qualquer violência ou distúrbio e a ordem policial de dispersar foi cumprida em segundos (na audiência de julgamento foram visionados os vídeos da manifestação), não podia deixar ninguém indiferente, tanto mais que a 4 de Junho passava mais um aniversário sobre os acontecimentos de Tianmen, em 1989, e tanto Sulu Sou como Scott Chiang não deixariam de marcar posição na vigília que anualmente ocorre no Largo do Senado em memória das vítimas e para exigir mais liberdade e democracia.

O julgamento de Sulu Sou e Scott Chiang seria ainda sublinhado pelo insólito do Ministério Público ter ressuscitado factos arquivados no inquérito criminal e em relação aos quais nenhum dos arguidos havia sido acusado. O Tribunal mandou ainda extrair certidões para serem abertos novos inquéritos por "haver indícios de que outros indivíduos praticaram o mesmo crime que o cometido pelos dois arguidos".

Mas aquelas que parecem ser as situações mais problemáticas da decisão proferida prendem-se com (i) a imputação aos arguidos de um crime que tem sido entendido como não tendo autonomia (em termos simples, só haveria crime de reunião e manifestação ilegal pelo art.º 14.º se houvesse manifestação que nos termos do art.º 11.º tivesse sido não autorizada, que se afastasse da sua finalidade ou que não tendo sido objecto de aviso prévio infringisse o art.º 2.º, ou se tivesse havido lugar à prática de actos contrários à lei que perturbassem gravemente a segurança pública ou o livre exercício dos direitos das pessoas") e (ii) a alteração da qualificação jurídica dos factos sem que tivesse sido dada previamente aos arguidos a possibilidade de se defenderem.

Esta última situação é de facto extraordinariamente absurda e já foi anteriormente julgada como sendo conducente à nulidade da decisão, sendo de estranhar como foi possível chegar-se até aqui.

Com efeito, no Acórdão n.º 269/2016 do Tribunal de Segunda Instância de Macau, proferido em 05/05/2016, e tirado por unanimidade concluiu-se que incorre na na "nulidade do art.º 360.º, n.º 1, alínea b) do C.P.P.M. [Código de Processo Penal de Macau], se no Acórdão proferido a final da audiência de julgamento se proceder a uma "alteração da qualificação jurídica" constante da acusação, condenando-se o arguido por outro "tipo de crime", sem qe lhe tenha sido (previamente) dada a oportunidade para sobre tal alteração se defender ou requerer prazo para o fazer". Independentemente das considerações que o ocorreu propicie, inegável é que nesse processo, perante uma questão desta gravidade, o Ministério Público se pronunciou no sentido do provimento do recurso então interposto pelo recorrente, afirmando textualmente que "é exacto, conforme vem alegado, que a recorrente acabou por ser punida – bem ou mal não interessa – por um crime diverso daquele que lhe vinha imputado. E, posto que a moldura legal do crime para que se operou a convolação seja inferior à do crime imputado na acusação, afigura-se que a diversidade dos tipos, dos bens protegidos e dos respectivos elementos constitutivos, impunham a observância do contraditório, mediante prévia advertência do arguido para essa hipótese de alteração, por forma a possibilitar-lhe a restruturação ou reorganização da sua defesa", acrescentando que "é este o entendimento doutrinário e jurisprudencial que se vem sedimentando em Macau, apesar da inexistência de norma expressa sobre o assunto, conforme se pode constatar, v.g., em "Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau", de Leal-Henriques, fls. 709 e seguintes do volume II, e nos acórdãos do Tribunal de Última Instância tirados nos processo 8/2001 e 6/2003".

Agora, tudo isto foi olimpicamente ignorado, no que não pode deixar de ser visto como mais um retrocesso do chamado Segundo Sistema num processo que é, por tudo o que tem acontecido, uma espécie de affaire Dreyfus à macaense, atentos os seus indiscutíveis contornos políticos e os atropelos sucessivos à lei (sublinhados pelos juristas que ainda falam).

A acrescer a tudo isto as considerações tecidas aquando da leitura da sentença aos arguidos e o facto desta, composta por mais de sessenta páginas, ter sido disponibilizada aos mandatários pro bono, Jorge Menezes e Pedro Leal, exclusivamente em língua chinesa, não obstante ter sido feito um requerimento para a sua tradução e entrega em língua portuguesa aos advogados.

Particularmente significativo é também o facto da não disponibilização de decisões judiciais traduzidas para português ser um dado recorrente, mais grave estando em causa um processo desta natureza e sobre matéria de direitos fundamentais protegidos pela Lei Básica de Macau.

O facto dos arguidos serem falantes de chinês não pode ser argumento para a não tradução da decisão para português, tanto mais que se aqueles escolheram mandatários portugueses foi por entenderem que estariam melhor defendidos. Além de que sendo aqueles leigos na matéria, são os seus defensores quem tem de apreciar as minudências técnicas e jurídicas da decisão para o recurso, o que só pode se feito numa língua que estes dominem e sendo para tal insuficiente um mero comunicado do Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância com um resumo do decidido.

Ao evitar-se a disponibilização de traduções em língua portuguesa (visto que em causa não está, nunca esteve, o direito dos magistrados escolherem qualquer uma das línguas oficiais na emissão das suas decisões), e ao arrepio do direito também consagrado no Código de Procedimento Administrativo e na lei que define o estatuto de igualdade das línguas e o direito dos interessados e mandatários serem notificados na língua da sua escolha, está-se a tornar mais onerosa a defesa dos arguidos (os prazos continuam a correr) e, objectivamente, "a correr-se" de Macau com os advogados portugueses que não leiam e escrevam em chinês, deitando por terra todas as garantias da Declaração Conjunta Luso-Chinesa e da Lei Básica.

A situação que hoje se vive em Macau não pode deixar de levantar outras questões, sendo que a menor delas todas ainda será a de saber qual o papel hoje reservado aos magistrados portugueses, judiciais e do MP, que por cá continuam nas três instâncias.

Recorde-se que aqui ao lado, em Hong Kong, foi confirmada há dias a nomeação de duas reputadíssimas juízas estrangeiras, o que levou a uma manifestação de júbilo do insuspeito South China Morning Post que escreveu em editorial ser a sua indicação de grande benefício para o mais alto tribunal de Hong Kong. O que do outro lado se valoriza desvaloriza-se em Macau, ademais patente com a vontade de afastar juízes estrangeiros, leia-se portugueses, do julgamento de algumas causas.

Tudo isto deverá, seguramente, levar o ainda recentemente nomeado Embaixador de Portugal na RPC a repensar as inacreditáveis declarações que fez numa entrevista à TDM, sinal de que no MNE se continua a ter uma imagem muito desfasada da realidade que quotidianamente aqui se vive e das prioridades em que Portugal apostou, o que, verdade seja dita, começou no tempo em que Carlos Melancia se predispôs a "queimar etapas" no processo de transição, no que foi seguido por Rocha Vieira. O que era preciso era fazer esquecer a descolonização africana, evitar pontes aéreas e varrer o lixo para debaixo do tapete. O resultado a que se chegou pode ser lido (em chinês, naturalmente) pelo Senhor Presidente da República Portuguesa, pelo Senhor Primeiro-Ministro António Costa e pelos senhores deputados à Assembleia da República na sentença do "caso Sulu Sou".

No momento em que se preparam as celebrações de mais um Dez de Junho, talvez seja este o momento oportuno para se começar a reflectir sobre o legado do direito português por estas paragens, no futuro das gentes de Macau (já que anteriormente se estiveram a marimbar para isso) e, em especial, sobre os valores que lhe são próprios no quadro das futuras relações com a RPC.

As lentilhas e as medalhas podem encher a barriga e o peito mas não alimentam a alma e o espírito de gente honrada. De gente respeitadora, cumpridora e pacífica, de gente que preza os seus direitos e a sua liberdade no segundo sistema. E que ainda confia nos seus dirigentes, qualquer que seja a língua em que se exprimam.

 

P.S. Este texto devia ter saído no início da semana, mas afazeres vários impediram-no. Sai hoje, seguro de que ainda irá a tempo do Dez de Junho. Que não vos faltem os foguetes.

Muito bem

Sérgio de Almeida Correia, 11.06.17

Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Pedro Correia, 10.06.17
 

Ao tomar posse como primeiro-ministro do XVIII Governo Constitucional, em Outubro de 2009, José Sócrates retomou uma antiga tradição da política portuguesa citando um verso de Camões que andava um pouco esquecido: «Esta é a ditosa pátria minha amada.»

Vem n’ Os Lusíadas, um clássico que ainda seduz políticos contemporâneos da mesma forma que seduziu o Rei D. Sebastião quando, segundo se julga, Luís de Camões lho leu pela primeira vez, no início da década de 1570, no paço real. «Esta é a ditosa pátria minha amada, / À qual se o Céu me dá que eu sem perigo / Torne com esta empresa já acabada, / Acabe-se esta luz ali comigo», escreveu Camões no canto III, 21ª oitava, d’ Os Lusíadas. É uma das mais belas quadras desta obra matricial da língua portuguesa cujo grau de popularidade se afere bem pela presença de muitos dos seus versos na nossa linguagem de todos os dias.

Com efeito, é vulgar aludirmos à «ocidental praia lusitana»(canto I-1), àqueles que foram «dilatando a fé e o império» (I-2), aos que «se vão da lei da Morte libertando» (I-2), ao «engenho e arte» (I-2) ou ao «peito ilustre lusitano» (I-3). São igualmente familiares, até a quem não leu uma só linha do vasto poema, versos como estes: «Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta!» (I-3); «Vós, poderoso Rei, cujo alto Império / O Sol, logo em nascendo, vê primeiro» (I-8); «(...) julgareis qual é mais excelente, / Se ser do mundo rei, se de tal gente” (I-10); "Duma austera, apagada e vil tristeza» (canto X-145).

 

Os Lusíadas é uma obra marcante também pelas figuras que cria ou recria.

As Tágides («E vós, ó Tágides minhas, pois criado / Tendes em mim um novo engenho ardente», I-4); Vasco da Gama, o «forte capitão» (I-44); a deusa Vénus, defensora dos portugueses, que «novos mundos ao mundo irão mostrando» (canto II-45), pois «se mais mundo houvera, lá chegara» (canto VII-79); Inês de Castro, aquela «que depois de ser morta foi rainha» (III-118); o Velho do Restelo com as suas imprecações («Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Dessa vaidade a que chamamos fama», canto IV-95); ou o sinistro Adamastor («Cheios de terra e crespos os cabelos, / A boca negra, os dentes amarelos», canto V-39).

Já para não falar das incursões autobiográficas do autor no seu poema, como aquela em que se retrata como alguém que tem «numa mão sempre a espada e noutra a pena» (VII-79).

Ou quando, projectado em interposto navegador no célebre episódio da Ilha dos Amores, nos ensina que «Melhor é experimentá-lo que julgá-lo / Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo»(canto IX-83).

 

Camões foi um mestre na arte do aforismo em forma de verso, como Os Lusíadas bem testemunham.

Eis alguns desses aforismos: "É fraqueza entre ovelhas ser leão” (I-68)«Sempre por via irá direita / Quem do oportuno tempo se aproveita»(I-76); «Quanto mais pode a fé que a força humana» (III-111); «Um baixo amor os fortes enfraquece» (III-139); «É grande dos amantes a cegueira» (V-54); «Contra o Céu não valem mãos» (V-58); «Quem não sabe a arte, não na estima» (V-97); «Fraqueza é dar ajuda ao mais potente» (IX-80).

Não admira que o nosso maior poeta continue a seduzir políticos: foi ele quem ensinou que «toda a terra é pátria para o forte» (canto VIII-63). Foi ele que tão bem soube cantar essa «ínclita geração» (IV-50) que se aventurou no ponto exacto «onde a terra se acaba e o mar começa» (VIII-78).

Foi no entanto também Camões quem ensinou – aludindo a D. Fernando I – que «um fraco rei faz fraca a forte gente» (III-138).

Este é um verso que não imaginamos em nenhum discurso de posse. O que não quer dizer que não seja igualmente digno de reflexão.

Texto reeditado

Sugestões para as comemorações do 10 de Junho.

Luís Menezes Leitão, 22.09.16

Leio aqui que o Presidente Marcelo promete comemorar o 10 de Junho fora do país "ano após ano". E que o Primeiro-Ministro António Costa naturalmente concorda com a iniciativa. Assim, depois de Paris ("teremos sempre Paris!"), deixo já aqui as minhas sugestões para os locais a escolher para as próximas comemorações do 10 de Junho:

2017: Las Vegas.

2018: Ilhas Maldivas.

2019: Bora-Bora.

2020: Ilhas Seychelles.

Justifica-se plenamente a escolha destes lugares para as comemorações do 10 de Junho, uma vez que haverá de certeza pelo menos um português em Junho em qualquer desses locais. E onde está um português está Portugal. Já se vê que vamos passar a ter uns 10 de Junho muito mais agradáveis.

O Senhor Contente e o Senhor Feliz

Helena Sacadura Cabral, 10.06.16
Em que país é possível encontrar a comandá-lo esta dupla? Em Portugal, claro. E onde poderia ser mais?
O país tem um PM contente, pese embora os índices que se conhecem não serem exactamente para isso. Esperam-nos surpresas na banca, o investimento não arranca, as importações aumentam e as exportações diminuem. Mas o turismo continua a deixar-nos dividendos apesar de Lisboa, em véspera de eleições, se ter transformado num estaleiro.
O país tem um PR que nasceu para o ser, que diariamente mostra a sua felicidade nas televisões nacionais, e, suprema misericórdia, nem o PC nem o Bloco o hostilizam. Já não há austeridade, apesar de não haver mais dinheiro e de ser novamente com o nosso que a banca se irá financiar. E se for só ela, já devemos dar graças.
Com a CGD, que vai precisar de 4 mil milhões, ninguém parece preocupar-se muito dado que até se encara aumentar o salário dos seus futuros administradores.
Com a emigração também se passam maravilhas. Antes insistia-se nos 500 mil que foram obrigados a sair, mas ultimamente só oiço falar de 250 mil. Não sei se os restantes já voltaram sem que tenhamos dado por isso...
Enfim, o país está sereno, o futebol anima as almas, o PM  está contente e o PR feliz. O que é que se pode desejar mais?!

E não é que eu estou de acordo

Sérgio de Almeida Correia, 20.04.16

1. É evidente que o Luís tem quase toda a razão. Quase toda, e não é má vontade minha, porque o amor ao "luxo" não é marca de um governo de esquerda. É mais de um governo de bimbos, novos-ricos ou deslumbrados, tanto mais que o uso de um Falcon para deslocações de trampa justifica-se plenamente durante a execução de um programa de austeridade. Bem mais, digo eu, do que depois de uma "saída limpa". E toda a gente sabe que a Atenas se chega mais depressa do que a Berlim, pelo que da próxima vez sugiro a António Costa que, em vez de partir da Portela, se meta ao caminho saindo da São Caetano à Lapa.  

 

2. E é igualmente evidente que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não anda a dormir na forma. Se for verdade o que o Diário de Notícias anunciou em matéria de atribuição de medalhas para o Dez de Junho, então só tenho mesmo que me congratular. Para quem nos últimos anos escreveu o que escreveu (Por alto, Um acto de Justiça, 40 anos de medalhas, ConfrangedorA propósito de uma condecoração, para só referir os textos mais recentes aqui no Delito de Opinião e num tempo em que já havia Internet), acabou o bodo indiscriminado a heróis, pobres, marretas e canalhas. A partir de agora, e até confirmação futura, passa a haver critério na forma e na substância: só para feitos excepcionais. Com "p", se não se importarem. 

Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Pedro Correia, 10.06.14

Ao tomar posse como primeiro-ministro do XVIII Governo Constitucional, em Outubro de 2009, José Sócrates retomou uma antiga tradição da política portuguesa citando um verso de Camões que andava um pouco esquecido: “Esta é a ditosa pátria minha amada.” 

Vem n’ Os Lusíadas, um clássico que ainda seduz políticos contemporâneos da mesma forma que seduziu o Rei D. Sebastião quando, segundo se julga, Luís de Camões lho leu pela primeira vez, no início da década de 1570, no paço real. "Esta é a ditosa pátria minha amada, / À qual se o Céu me dá que eu sem perigo / Torne com esta empresa já acabada, / Acabe-se esta luz ali comigo”, escreveu Camões no canto III, 21ª oitava, d’ Os Lusíadas. É uma das mais belas quadras desta obra matricial da língua portuguesa cujo grau de popularidade se afere bem pela presença de muitos dos seus versos na nossa linguagem de todos os dias.

Com efeito, é vulgar aludirmos à "ocidental praia lusitana” (canto I-1), àqueles que foram "dilatando a fé e o império” (I-2), aos que "se vão da lei da Morte libertando” (I-2), ao "engenho e arte(I-2) ou ao "peito ilustre lusitano (I-3). São igualmente familiares, até a quem não leu uma só linha do vasto poema, versos como estes: "Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta!” (I-3); "Vós, poderoso Rei, cujo alto Império / O Sol, logo em nascendo, vê primeiro” (I-8); "(...) julgareis qual é mais excelente, / Se ser do mundo rei, se de tal gente” (I-10); "Duma austera, apagada e vil tristeza” (canto X-145).

 

Os Lusíadas é uma obra marcante também pelas figuras que cria ou recria.

As Tágides ("E vós, ó Tágides minhas, pois criado / Tendes em mim um novo engenho ardente”, I-4); Vasco da Gama, o "forte capitão” (I-44); a deusa Vénus, defensora dos portugueses, que "novos mundos ao mundo irão mostrando” (canto II-45), pois "se mais mundo houvera, lá chegara” (canto VII-79); Inês de Castro, aquela "que depois de ser morta foi rainha” (III-118); o Velho do Restelo com as suas imprecações ("Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Dessa vaidade a que chamamos fama”, canto IV-95); ou o sinistro Adamastor ("Cheios de terra e crespos os cabelos, / A boca negra, os dentes amarelos”, canto V-39).

Já para não falar das incursões autobiográficas do autor no seu poema, como aquela em que se retrata como alguém que tem "numa mão sempre a espada e noutra a pena” (VII-79).

Ou quando, projectado em interposto navegador no célebre episódio da Ilha dos Amores, nos ensina que "Melhor é experimentá-lo que julgá-lo / Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo” (canto IX-83).

 

Camões foi um mestre na arte do aforismo em forma de verso, como Os Lusíadas bem testemunham.

Eis alguns desses aforismos: "É fraqueza entre ovelhas ser leão” (I-68)"Sempre por via irá direita / Quem do oportuno tempo se aproveita” (I-76); "Quanto mais pode a fé que a força humana” (III-111); "Um baixo amor os fortes enfraquece” (III-139); "É grande dos amantes a cegueira” (V-54); "Contra o Céu não valem mãos” (V-58); "Quem não sabe a arte, não na estima” (V-97); "Fraqueza é dar ajuda ao mais potente” (IX-80).

Não admira que o nosso maior poeta continue a seduzir políticos: foi ele quem ensinou que "toda a terra é pátria para o forte” (canto VIII-63). Foi ele que tão bem soube cantar essa "ínclita geração” (IV-50) que se aventurou no ponto exacto "onde a terra se acaba e o mar começa” (VIII-78)".

Foi no entanto também Camões quem ensinou – aludindo a D. Fernando – que "um fraco rei faz fraca a forte gente” (III-138).

Este é um verso que não imaginamos em nenhum discurso de posse. O que não quer dizer que não seja igualmente digno de reflexão.

Recuso-me a dizer qual seja, em 10 de Junho de 2014, o princípio fundamental do Estado de direito democrático

Sérgio de Almeida Correia, 10.06.14

"Na interpretação que têm feito da Constituição os juízes vêm modelando os princípios à la carte, em função das novas medidas. E vão encontrando novos princípios ou vão formulando novos condicionalismos";

 

"Alguns dos juízes cuja candidatura foi proposta por nós criaram a ilusão de que tinham uma visão filosófico-política que seria compatível com aquilo que é o projecto reformista que temos para Portugal no âmbito da integração na União Europeia";

 

"É verdade que foi revogado esse procedimento, isso não quer dizer que a aclaração não seja um princípio fundacional da ordem jurídica".

 

Senhor Presidente da República: Se não condecorou esta senhora, por favor, peço-lhe humildemente que o faça. Camões nunca compreenderia o esquecimento e a Nação jamais lhe perdoaria se esta distinta representante do regime ficasse de fora das quase 1000 medalhas e comendas que o seu mandato já fez sair do pesado bornal que consigo carrega.

Confrangedor

Sérgio de Almeida Correia, 07.06.14

 

(foto da Lusa)

 

Ano após ano, a lista repete-se com uma assustadora previsibilidade e um traço comum que é a desvalorização da noção de serviço à comunidade, à causa pública, numa repetição parola e cada vez mais pungente daquilo que devia ser o reconhecimento de uma cidadania de excepção. Ao invés, continua-se a valorizar a banalidade, a misturar o azeite mais puro com o detergente barato, a colocar no mesmo patamar a carreira construída a pulso, com trabalho e empenho, com a carreira construída à sombra da sorte, do favor político e empresarial, da porta que se abriu em nome do apelido ou da origem da casta. Como se a atribuição de medalhas a eito no Dia de Portugal devesse ser eternamente uma celebração barata e ordinária com ofertas de brindes, recepções e espectáculos anódinos para o povo ignorante se entreter antes de se entregar aos tendões de Cristiano Ronaldo. Como se o momento mais importante para a exaltação de uma cidadania de excepção, talhada no rigor, na seriedade intelectual, na força do carácter, pudesse ser tão recorrentemente desvirtuado perante a complacência e vacuidade dos frequentadores de salões, o silêncio dos partidos políticos e seus dirigentes e a acomodação dos espíritos livres.

Que me perdoe Eduardo Lourenço, mas quando um dia a República num acto de inteligência fizer a contabilidade das condecorações que os seus Presidentes atribuíram numa democracia adulta e consolidada, não será bonito de ver os nomes alinhados. E mais triste será ver os nomes de quem as atribuiu.

No dia em que o Dia de Portugal for celebrado por Portugal e pelos portugueses não haverá este espectáculo boçal e boçalizante das condecorações. E o Presidente da República será mais um no meio dos seus. E nesse dia, então, o cidadão número um será capaz de perceber por que razão um dia se fez Portugal e Portugal nunca se cumpriu. Só nesse dia a República atingirá a idade adulta. Portugal cumprir-se-á. E poderá, finalmente, sair da letargia em que vive há décadas controlada na sombra por meia dúzia de estupores. E levantará a cabeça para honrar os seus verdadeiros heróis, recordar a sua obra, recolher a sua lição e projectar um futuro que faça jus à dimensão do sonho camoniano.

A única e verdadeira medalha que enquanto portugueses estaremos em condições de poder receber, celebrar e honrar.

As comemorações do 10 de Junho em Maputo

jpt, 11.06.13

 

A última vez que compareci às comemorações oficiais do 10 de Junho em Maputo foi há 10 anos, e sei bem quando foi pois ainda vivia na F. Engels, ali vizinho da residência do embaixador. Cheguei bem tarde, vindo um trabalho entre Boane e Moamba, mas ainda lá fui como sempre o fazia nesta data. Quando cumprimentei o funcionário público que então ocupava as funções de representante, ele ficou a olhar insistentemente para a minha ausente gravata. Eu não lhe disse o impropério que ali mereceu - na época era cooperante, tive que aguentar - mas nunca mais lá voltei. Já agora, os últimos três embaixadores portugueses foram muito fraquinhos, e um tipo, ainda para mais tendo conhecido as verdadeiras excelências que os antecederam, perde a paciência para o mero aparelhismo, mesmo que doirado com o brilho do simbólico. E muito prejudicado com os tiques sociológicos de uma corporação profissional que a torna tendencialmente (muito) renitente à aprendizagem, auto-encerrada, numa "endogamia" intelectual medíocre e incompreendedora. É certo que ao longo dos anos conheci uma mão cheia de bons, até excelentes, diplomatas. Serão esses os que estão socialmente descansados e sociologicamente informados, nisso entendendo que uma república é uma mole de cidadãos e não uma hierarquia de estatutos ontológicos. Mas esses não são, infelizmente, a regra, e isso apouca as competências gerais. Enfim, diz-se que o homem que agora chegou a Maputo é de outro calibre, e ainda bem pois o momento histórico merece e exige. A ver vamos. Se suplanta o que se vem passando e a equipa que tem. 

 

Este ano fui à recepção comemorativa. O novo embaixador fez um bom discurso, para além do protocolar. Sublinhou que os portugueses residentes, 23 000 (?, sempre julguei que um pouco mais), constituem um contingente relativamente diminuto se comparado com os emigrantes portugueses em tantos outros países. Certo que o impacto migratório não é apenas estatístico, mas  é avisado recordar isso para obstar à ideia da "vaga" de portugueses num país com 23 milhões de habitantes. E deixou dois pontos importantes a reter, quais recados para nós outros, portugueses: a) estamos cá a trabalhar, a ganhar a vida, com o apoio local. No respeito das leis - necessário sublinhar, num contexto em que muito patrício julga que vem gingar diante dos regulamentos. É uma trabalheira, e conspurca a imagem de quantos por cá não o fazem; b) a comunidade portuguesa deixa a política moçambicana para os moçambicanos. Conveniente de lembrar num momento antecessor de um ciclo eleitoral, para acalmar alguns hipotéticos excitados.

 

A festividade em si própria foi interessante. Para mim, a permitir-me rever conhecidos, já raro convívio dado o meu ensimesmamento e o nosso envelhecimento. E continuo a espantar-me com isto de ver os patrícios, quando em algo oficial, a vestirem-se todos com fatos azuis. Qua aquele velho "azul Carris", o dos uniformes dos motoristas e revisores de autocarros. Acham que vão finos, assim. Não vão. Mas enfim, é o que conseguem. E se se esforçam é de louvar. Mas não deixa de ser um uniforme. E isso não é lá muito bom, que a cidadania não se uniformiza. Tornando o cada um como cada qual num cada todo como cada quais. E isso não é bom, principalmente hoje, a precisar de mais cores.

 

Para o ano há mais. E até lá há muito para percorrer. Muito mesmo.

Vistas curtas

Sérgio de Almeida Correia, 20.07.11

De um Presidente da República que se diz de todos os portugueses mas que só sabe condecorar e nomear amigos, acarinhar gente das suas relações e membros do seu partido, fora outros juízos, dir-se-á que tem vistas curtas. Mas não deixa de ser notável que depois da atribuição da condecoração do 10 de Junho, pelos extraordinários serviços que o País ainda espera que ele dê a conhecer, a rifa voltasse a sair à Dr.ª Manuela Ferreira Leite, agora feita chanceler das ordens nacionais em substituição de Mota Amaral.

Sem emenda e sem perdão

Sérgio de Almeida Correia, 09.06.11

 

O que então pensava mantém-se, sem tirar nem pôr.

 

A Dr.ª Manuela também não tem qualquer culpa que a grã-cruz da Ordem Militar de Cristo e as demais distinções sejam atribuídas no mero cumprimento de um ritual, que já tem tanto de pacóvio quanto de banal de cada vez que chegamos a Junho. E se ele próprio, Cavaco Silva, a recebeu, bem como Carlos Carvalhas, Rocha Vieira ou Ana Gomes, não vejo por que motivo a senhora não poderia recebê-la. Será mais uma. Mas ao menos seria bom que se esclarecesse aos portugueses quais os "destacados serviços" que merecem ser "especialmente distinguidos".

 

Quem faz da cidadania e do serviço aos outros o seu lema de vida só pode ficar deprimido quando chega o 10 de Junho e olha para as listas de condecorados do regime.

 

A cidadania não pode continuar a ser paga. Muito menos a políticos e dessa forma espúria e tão pouco camoniana. Por isso mesmo é tempo dos verdadeiros cidadãos recusarem tais "distinções", em nome de Portugal, sob pena de ficarem comprometidos com a forma nada republicana e assaz medíocre como este regime e os seus mais altos responsáveis entenderam prestigiar-se.