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Delito de Opinião

A esperança em vez do medo

Pedro Correia, 08.12.13

 

Estes dias que se têm seguido à morte de Nelson Mandela mostraram-se muito férteis em manifestações de pesar que enaltecem o maior estadista de que há memória no continente africano, embora muitas não o façam pelo motivo mais adequado.

Sim, Mandela foi um admirável resistente a um regime iníquo. Sim, a sua tenacidade e a sua valentia são dignas de profunda admiração. Mas o que o torna superior aos demais, o que o torna realmente diferente de tantos nacionalistas africanos que também não se vergaram e resistiram à iniquidade e à opressão, aquilo que o projectará para sempre na memória colectiva das gerações vindouras é o seu exemplo ímpar de tolerância, reconciliação e diálogo num país que todas as cassandras de turno anteviam mergulhado em sangrentos conflitos étnicos e tribais.

Ao estender a mão fraterna ao inimigo de véspera, Mandela deu a todos os seus contemporâneos disseminados pelo planeta -- tenham a cor de pele, a fé religiosa ou a ideologia que tiverem -- uma extraordinária lição de dignidade humana que transcende épocas, fronteiras ou crenças. Foi uma verdadeira "fonte de inspiração", capaz de nos revelar "aquilo de que o ser humano é capaz quando é guiado pela esperança em vez do medo", como dele disse Barack Obama.

 

Retomo uma ideia já aqui muito bem expressa pela Ana Vidal: qualquer outro, no seu lugar, professaria a Lei de Talião -- o tal "olho por olho" que, como nos ensinou Gandhi, é o meio mais eficaz para tornar o mundo cego. Ele, que tinha mais razões que ninguém para impulsionar actos de vingança, apontou com rara sabedoria um rumo alternativo -- e conseguiu pô-lo em prática, não se confinando ao plano teórico -- durante cinco anos de mandato presidencial na África do Sul em que lançou os alicerces de uma sociedade verdadeiramente multirracial, congregando brancos e negros -- aqueles que agora o choram, unidos num genuíno abraço de pesar.

Um caso único de sucesso em África, o continente de todos os fracassos.

E o seu mérito não termina aí: abdicou voluntariamente do cargo supremo do país após ter cumprido um mandato presidencial, dando assim provas de um notável desapego do poder. Outro facto raríssimo em África.

 

No simples plano da convivência cívica, ao estabelecer pontes com adversários dos mais diversos matizes, Mandela soube ser grande. E único.

É tristemente irónico vê-lo agora enaltecido por todos quantos ignoram deliberadamente o seu exemplo, pregando nas colunas de opinião e no espaço público um exacerbado radicalismo, argamassado no ódio a quem pensa de maneira diferente e no desprezo pelas posições moderadas, racionais e não-extremistas.

Um pouco por toda a parte, neste mundo de múltiplas indignações plasmadas nas redes sociais, vivemos uma espécie de guerra civil de baixa intensidade. Que vê em cada palavra de bondade um sinal de fraqueza. Que faz de cada tribuna uma trincheira de rancor. Que imagina um inimigo oculto em cada divergência. Que transforma cada opinião discordante em casus belli. Que esmaga cada tese contrária com a fúria de um combatente apostado em não recolher prisioneiros nem respeitar convenções de Genebra.

 

Dizem admirar Mandela enquanto ignoram tudo quanto de essencial Mandela nos ensinou.

Isto é serviço público

Pedro Correia, 18.07.12

 

Nelson Mandela - Os caminhos da liberdade: excelente reportagem de uma equipa da RTP encabeçada pelo jornalista António Mateus. No dia em que Nelson Mandela - um dos maiores ícones universais do nosso tempo - festeja 94 anos vale a pena recordar a evolução da África do Sul desde os dias de chumbo do regime racista de P. W. Botha até à actualidade.

António Mateus - que conhece bem a África do Sul, onde foi correspondente durante largos anos - recolhe os testemunhos de dois obreiros desta admirável transformação do mais próspero país do continente africano, anteriormente banido da comunidade internacional, num exemplo de multirracialismo, democracia e liberdade: Desmond Tutu e Frederik de Klerk. Ambos galardoados com o Nobel da Paz - o primeiro em 1984, pelo seu corajoso combate aos esbirros do apartheid, o segundo dez anos depois (em parceria com Mandela) por ter liderado enquanto chefe do Estado o processo de transição, que atingiu um dos seus momentos culminantes na hora da libertação do histórico líder do Congresso Nacional Africano, em Fevereiro de 1990, acompanhada com emoção em todo o mundo.

De Klerk, num depoimento emocionado, diz uma frase carregada de sabedoria: «Não devemos deixar que o futuro seja minado pelas amarguras do passado.»

Os cínicos de serviço, que lançaram os maiores anátemas à Primavera árabe iniciada em 2011 - e já traduzida em eleições na Tunísia, no Egipto e na Líbia - deviam ver com atenção esta reportagem.

Fazia-lhes bem.

Um ano depois

Pedro Correia, 12.02.12

 

Não tenho, naturalmente, uma palavra a retirar ao que escrevi faz agora um ano sobre a revolução egípcia.

Ficam alguns excertos, para avivar memórias:

 

Contra as Cassandras. «No Irão, a clique teocrática não tem motivos para se congratular com as manifestações no Egipto, um país onde 20 milhões de pessoas – cerca de um quarto da população – utilizam regularmente a Internet. No Cairo, por estes dias, foi possível ver muçulmanos e cristãos orar em conjunto. Ali não se queimou uma só bandeira americana nem se gritaram palavras de ódio contra Israel.
O fracasso da “revolução islâmica”, há 32 anos, serve aliás de aviso e de vacina a novos movimentos destinados a destituir ditaduras: podem não saber ao certo por onde vão nem para onde vão, mas todos sabem que não irão por aí.»

 

Contra as bempensâncias. «Uma revolta popular pacífica, ordeira, participadíssima, onde as únicas bandeiras são as nacionais, deita abaixo uma tirania. Sem necessidade de intervenção dos marines norte-americanos, sem líderes "carismáticos", sem partidos ou igrejas a "organizar" as multidões.

Devia ser motivo de congratulação em todo o mundo democrático. Mas não é. Em redutos de opinião, bem entrincheirados nas suas certezas graníticas, analistas derramam por jornais e blogues o seu imenso desdém pela página histórica que acaba de se virar no Cairo.»

 

Contra os saudosistas. «Extraordinário: assume-se a defesa póstuma da ditadura para lançar um vigoroso anátema sobre a democracia que ainda nem começou a ser construída. Como se o mundo árabe sofresse de um atavismo genético que o torna incapaz de conviver ad seculum seculorum com estados de direito e o respeito escrupuloso dos direitos humanos.»

 

Contra as ditaduras. «Todas as ditaduras são más. A de Cuba, a da Coreia do Norte, a do Zimbábue, a do Irão - e a que acaba de ser derrubada no Egipto. Se amanhã a ditadura iraniana caísse, seria um motivo de alegria e de congratulação para todos os democratas. Como o é hoje a queda da ditadura egípcia. Não podemos ser democratas até metade da bacia do Mediterrâneo e 'compreender' a ditadura na outra metade.

 

Contra a demagogia. «Extraordinário Mubarak, tão amigo do Ocidente em geral e tão digno da admiração de Alberto Gonçalves em particular. E extraordinários "estudos de opinião" - não especificados pelo crédulo sociólogo - que "parecem" conjugar liberdade e lapidação no Egipto.

Não conheço nenhum outro pensador mundial capaz de associar um movimento pró-democracia à excisão feminina.»

Desesperadamente

Pedro Correia, 12.08.11

 

Enquanto o mundo acompanhava com emoção a vaga de violência gratuita que varreu várias cidades do Reino Unido, na Somália morria-se de fome perante a indiferença quase generalizada. É um drama que se desenrola a um ritmo constante: 640 mil crianças estão mal nutridas. E já morreram 29 mil com menos de cinco anos.

Enquanto na Europa uns destroem tudo à sua volta em busca de aparelhagem electrónica e vestuário desportivo de marca, milhões de habitantes do continente africano querem simplesmente um pão ou uma tijela de arroz.  Desesperadamente.

Não nos enganemos de perspectiva: é na direcção destes que devemos olhar.

Os jagunços do ditador líbio

Pedro Correia, 20.02.11

 

Financiou o terrorismo internacional. Sob o seu mandato, pelo menos 250 presos políticos "desapareceram" misteriosamente. Os partidos são rigorosamente proibidos no país. A tristemente célebre Lei 71 pune a "dissidência", em casos extremos, com a pena de morte. Agora o ditador há mais tempo em funções no planeta não hesita em virar as armas contra o seu próprio povo para se perpetuar no poder: a tentativa de esmagamento do movimento pró-democracia na Líbia já ali provocou 233 mortos, segundo o Observatório de Direitos Humanos. Muammar Kadhafi, que procura censurar toda a informação, tem no entanto direito a assento oficial na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Não é preciso mais nada para se avaliar como é urgente a reforma das instituições internacionais e para se perceber a que ponto chegou o descrédito da ONU, que alguns sonham ver como sede de um futuro governo mundial.

Portugal, que em Dezembro de 2007 o recebeu com honras de estadista na lamentável cimeira dos ditadores realizada em Lisboa, mantém um envergonhado e vergonhoso silêncio sobre o massacre de cidadãos líbios às mãos dos jagunços de Kadhafi, como já muito bem o Rui Rocha sublinhou aqui. Um silêncio que não pode prolongar-se. Ser membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas não pode servir só para os habituais rodriguinhos de propaganda interna.

 

Adenda das 00.38: actualizei o número de mortos - de 173 para 233. A fonte é a mesma.

Este já não prende mais ninguém

Pedro Correia, 15.01.11

 

Menos um tirano no activo: a revolta popular que estalou há duas semanas na Tunísia acaba de derrubar o general Ben Ali, que ocupava o palácio presidencial em Tunes desde 1987 e se especializou em organizar eleições fraudulentas em que obtinha sistematicamente 99% dos votos. O seu consulado despótico pertence já ao passado: agora rumo ao exílio, o general não encontra país disposto a dar-lhe guarida - a começar pela dúplice França, que tanto o auxiliou a prolongar-se no poder.

Ben Ali, convém recordar, foi um dos ditadores a quem o Governo português estendeu a passadeira vermelha em Dezembro de 2007, por ocasião da  lamentável cimeira UE-África. Como na altura escrevi, «segundo a Amnistia Internacional, existem centenas de presos de consciência na Tunísia, a pretexto do combate ao terrorismo internacional. As condições de detenção são "cruéis, inumanas e degradantes". Muitos prisioneiros são condenados em "julgamentos injustos", inclusivamente em tribunais militares». Isso não evitou que Cavaco Silva e José Sócrates o tivessem recebido com todas as honras protocolares em Lisboa: as vénias que lhe fizeram constituiram um insulto irreparável aos resistentes tunisinos.

Agora ao menos, para serem coerentes, poderiam ambos oferecer asilo ao ditador em fuga. Na Aldeia da Coelha ou em Vilar de Maçada.

O herói de ontem é o tirano de hoje

Pedro Correia, 16.11.10

 

Em 1978, o político mais admirado e elogiado do continente africano chamava-se Robert Francis Mugabe. Acabara de assinar com o Governo de Margaret Thatcher o acordo de Lancaster House que pôs fim à década e meia do regime racista de Ian Smith na Rodésia, a antiga Rodésia do Sul, e preparava-se para ascender ao poder. No ano seguinte o país tornava-se independente, com o nome de Zimbábue, e Mugabe jurava mantê-lo como o celeiro da África Austral, garantindo a harmonia social e a prosperidade económica dos seus habitantes, de todas as raças. Num continente onde proliferavam os Bokassas, os Mobutus e os Idi Amins, as palavras moderadas de Mugabe soavam a discurso de estadista.

O líder do novo Zimbábue revelava fibra de resistente: permanecera uma década nas prisões de Smith e conduzira uma guerrilha que dobrara o domínio branco de Salisbúria, pondo fim a 90 anos de domínio britânico. Mas prometera estender a mão aos opressores do passado, o que lhe dava uma aura de invulgar grandeza. “Ontem eram meus inimigos, hoje são meus amigos”, disse à comunidade branca no discurso da independência.

Dez anos mais tarde, fez aprovar uma nova Constituição, que lhe permitiu trocar o cargo de primeiro-ministro pelo de Presidente da República, mas o essencial das promessas mantinha-se incólume: Harare continuava a ser capital de um dos mais prósperos países africanos, albergando uma sociedade multirracial. Não faltaram analistas a elogiar o “milagre” do Zimbábue.

 

Quem analisar com atenção o percurso político de Mugabe – um homem de formação católica que se tornou marxista quando estudava Direito numa universidade sul-africana – verifica que os primeiros sinais do ditador em que se tornou eram já detectáveis no início da década de 80, quando ainda merecia os mais rasgados elogios da imprensa internacional, pela forma brutal como esmagou aquele que era então o seu principal adversário político: Joshua Nkomo, líder da União Popular Africana do Zimbábue (Zapu). Nkomo foi, a par de Mugabe, um dos principais resistentes ao regime de Ian Smith. Após a independência, em 1980, integrou o Governo de unidade nacional como ministro do Interior. Menos de dois anos depois, Mugabe acusou-o de conspiração contra o Estado. Foi preso e pelo menos 20 mil dos seus apoiantes no Leste do país acabaram assassinados. A Zapu foi dissolvida e a União Nacional Africana do Zimbábue (Zanu), de Mugabe, tornou-se o partido único.

 

No ano 2000, a máscara caiu de vez. Mugabe lançou uma “reforma agrária – a ocupação pura e simples das propriedades agrícolas dos brancos. Suprimiu toda a oposição. Aboliu o poder judicial independente. Meteu na cadeia opositores, sindicalistas, estudantes e activistas de direitos humanos. Amordaçou a imprensa. E fez mergulhar o país no caos económico: em Outubro de 2008, segundo o Banco Central do Zimbábue, a inflação atingiu 231.000.000%. Milhões de zimbabuanos abandonaram o país para fugir à fome.

As ilusões do passado transformaram-se num interminável pesadelo. “Só Deus pode retirar-me o poder que me concedeu”, proclama Mugabe, hoje com 86 anos – o mais velho dirigente africano. O antigo estadista modelar, invocado outrora como exemplo no continente, é apenas mais um nome a juntar à longa lista de tiranos que vêm destruindo o sonho de uma África próspera, justa e livre.

Gostava que a morte não fosse assim

Pedro Correia, 08.11.09

Birth or Death? There was a Birth, certainly,
We had evidence and no doubt. I had seen birth and death,
But had thought they were different; this Birth was
Hard and bitter agony for us, like Death, our death,
We returned to our places, these Kingdoms,
But no longer at ease here, in the old dispensation,
With an alien people clutching their gods.
I should be glad of another death.

T. S. Eliot

 

Na Somália vigora a lei islâmica, que não perdoa: o adultério é punido com o apedrejamento até à morte. Foi o que aconteceu a Abas Hussein Abidarahman, de 33 anos, executado defronte de 300 pessoas por ter confessado o "crime": a agonia durou sete minutos, como relata a BBC. À mulher foi por enquanto poupada a vida. Motivo: está grávida. A execução só deve ocorrer após o nascimento da criança concebida em "pecado", que será confiada a uns parentes que aceitem tomar conta dela. Queira Alá que não tenha o triste destino dos pais. Ou da menina de 13 anos que morreu também lapidada em Outubro de 2008 em Kismayo, igualmente na Somália, por presumível "adultério". Garantiu o pai que a rapariga fora violada por três soldados, pormenor que o tribunal islâmico terá considerado irrelevante.

Por muito que queiramos fechar os olhos a estes factos, em nome do relativismo cultural, do respeito pelas 'tradições islâmicas' ou do longo cortejo de 'pecados do homem branco' em África que jamais deixam de ser expiados, eles existem. Teimosamente, persistentemente, existem. E conseguem por vezes até ser transformados em notícia, apesar de não ser rara a execução dos mensageiros. E não se passam num tempo remoto, envolto em trevas medievais, algures num inacessível reino de pesadelo: estas violações diárias dos mais elementares direitos da espécie humana ocorrem no mesmo instante e no mesmo planeta em que esgotamos a nossa indignação a clamar contra o milho transgénico ou os animais de circo.

Yes, you can

José Gomes André, 13.07.09

 

As (excelentes) intervenções de Obama em África suscitaram um óptimo texto de Nuno Gouveia, do qual salientaria a seguinte passagem: "Obama pediu aos africanos que parem de se queixar do seu passado colonialista, e da exploração que sofreram pelos europeus. A génese dos problemas africanos está sim, na corrupção e nas suas elites. E Barack Obama foi mais longe, dizendo que a ajuda ocidental deve ser acompanhada pela garantia de boa governação e de boas práticas democráticas. [...] ao contrário daqueles que culpam o Ocidente e o capitalismo, o presidente americano urge os governos africanos a abraçaram um modelo de desenvolvimento económico e social responsável, assente nas instituições democráticas."

Obama está perfeitamente ciente de que a sua Presidência assume importantes contornos simbólicos e que esse facto, mais do que simples curiosidade, pode ser utilizado para operar alterações concretas nas políticas públicas. Naturalmente que não se "decreta" por exemplo o fim do racismo nos EUA, nem o fim da corrupção em África, mas quando um Presidente negro se refere a estes dois temas, as suas palavras têm uma amplitude e um significado reforçados. E ao insistir que, quer os afro-americanos, quer os povos africanos, têm de abandonar a referência sistemática à "exploração do passado", e assumir a sua responsabilidade e lutar pelo seu próprio destino, Obama envia claramente a mensagem certa.

O drama da Guiné-Bissau

Pedro Correia, 12.03.09

 

Cansei-me de ouvir o discurso da nossa responsabilidade histórica perante os morticínios que continuam a cometer-se em África. Três golpes de Estado, um presidente assassinado, três chefes militares abatidos e um primeiro-ministro executado em menos de 35 anos, a Guiné-Bissau em estado de insolvência, uma esperança média de vida baixíssima, o poder nas malhas do narcotráfico internacional - e há ainda quem venha explicar tudo isto com a Conferência de Berlim, de 1885, e a colonização portuguesa. É o caso do João Tunes, uma das pessoas que mais respeito na blogosfera. Os argumentos que invoca merecem-me reflexão. Mas não me convencem. Pela mesma lógica, poderíamos sempre culpabilizar a conferência de Viena, de 1815, que redesenhou o mapa da Europa, como causa da I Guerra Mundial um século depois e as imposições do Tratado de Versalhes, em 1919, como chave de ignição da II Guerra Mundial - e neste caso atenuando desde logo as responsabilidades históricas do impulso totalitário de Adolf Hitler.

Num mundo interdependente, a causa do progresso é a construção de grandes blocos regionais com fronteiras diluídas. João Tunes fala na Conferência de Berlim, mas esquece que os movimentos progressistas que tomaram o poder em África, no final dos anos 50, impuseram como dogma a intocabilidade das fronteiras coloniais, assumindo-as na plenitude. Precisamente na mesma época em que Jean Monnet e outros visionários lançavam os alicerces de uma Europa unida.

A União Europeia como aglutinação voluntária de povos que travaram batalhas milenares é uma causa progressista. A multiplicação de estados "étnicos" nos Balcãs ou a edificação de um País Basco "independente" à força da bomba, tudo em nome do nacionalismo, são causas reaccionárias, que nada deviam ter a ver com a esquerda. Lamento que haja tanta gente de esquerda a dar-lhes caução política, tão equivocada como quando via em Nkrumah ou Sékou Touré, nos anos 60, os estadistas iluminados de uma nova era. Tudo isso era um logro, como aqui já sublinhei.

O drama da Guiné-Bissau não é filho de pai incógnito: tem rostos, tem nomes, tem protagonistas. Quase todos do PAIGC, a força política que durante tanto tempo foi erigida como símbolo da nova África e afinal era apenas uma erupção da África velha. Sei que este é um facto incómodo. Mas é tempo de o deixar escrito com todas as letras.

 

Ler também:

- Guiné-Bissau, um olhar moçambicano. Editorial do jornal Savana, transcrito na Estrada Poeirenta.

De vanguarda a retaguarda

Pedro Correia, 11.03.09

 

Nos dias que correm, nada como a Guiné-Bissau simboliza tão bem as surpreendentes reviravoltas da História. Arvorada durante anos em bandeira do progresso, a "independência" guineense transformou-se num dos maiores logros do nosso tempo. A causa nacionalista, aliás um conceito reaccionário por excelência, mal disfarçava então os velhos demónios xenófobos e tribalistas que não tardaram a soltar-se mal terminou o 'fardo do homem branco' em África. O percurso da "independência" da Guiné-Bissau, hoje presa das redes de narcotráfico internacional, não podia ser mais trágico. Naturalmente, quem há três décadas enaltecia o PAIGC como vanguarda do progresso histórico não tardou a virar-se para outras causas mais apelativas - e hoje é possível ocorrer algo tão impensável como o Presidente Nino Vieira, antigo herói da guerra da "independência", ser assassinado e literalmente esquartejado como um animal no matadouro sem que o facto suscite uma só linha de comoção em blogues habituadíssimos a comover-se com um único tiro disparado na Palestina ou nos Balcãs. Percebe-se porquê: o drama guineense é um tema incómodo para Portugal. Talvez por isso, o Estado português fez-se representar no funeral de Nino - que era chefe do Estado em funções no momento em que foi morto - apenas pelo secretário de Estado Gomes Cravinho. Não podia ser mais gritante o contraste com a classe política que se acotovelava ontem em Lisboa para cumprimentar o Presidente de Angola ou com a comitiva de sete ministros, seis secretários de Estado e 28 empresários que José Sócrates leva a partir de amanhã a Cabo Verde.

Encerrado o ciclo colonial, a República da Guiné-Bissau deixou de ser uma peça no xadrez geopolítico e uma flor na lapela progressista. É quase como se não existisse, aconteça lá o que acontecer. E existirá mesmo?

O tirano que passeou por Lisboa

Pedro Correia, 06.03.09

Há pouco mais de um ano, por ocasião da inútil cimeira UE-África, Lisboa recebeu com pompa e circunstância este senhor, que nunca devia ter sido nosso hóspede, como na altura afirmei aqui. É uma figura nada recomendável - o Tribunal Penal Internacional acaba de lançar um mandado contra ele, acusando-o de crimes contra a humanidade e crimes de guerra. O general Omar al-Bashir - ditador do Sudão, o maior país de África - é o responsável (i)moral pela morte de cerca de 300 mil pessoas no Darfur desde 2003, uma das mais brutais acções de extermínio registadas nos nossos dias.

"Bashir é suspeito (...) de ataques intencionais contra uma parte importante da população do Darfur (...), assassinando, exterminando, violando, torturando e forçando a fuga de um grande número de pessoas, cujas propriedades foram saqueadas", declara o TPI. Outra consequência dramática do morticínio no Darfur: mais de dois milhões de desalojados, a maioria no vizinho Chade.

O tirano sudanês apressou-se a desafiar a ordem do tribunal, que implica a sua detenção em qualquer dos 108 países que reconhecem a jurisdição do TPI. "Haia [onde se situa a sede do tribunal] pode comer o mandado", proclamou o general, apoiado pela União Africana e pela Liga Árabe. E também pela Rússia e pela China, países que não reconhecem a jurisdição do TPI. Inversamente, as organizações internacionais de direitos humanos aplaudem. "As acusações são um sinal forte de que a impunidade deixou de existir", sublinhou Reed Brody, da Human Rights Watch. Ele sabe do que fala. A regra, no mundo "civilizado" em que vivemos é esta: "Quem mata uma pessoa, vai para a cadeia. Quem mata 40, é internado num hospital psiquiátrico. Quem mata 40 mil, ruma a um exílio dourado com uma conta bancária num país estrangeiro."

Bashir é o primeiro chefe de Estado em funções a ser formalmente acusado de crimes contra a humanidade. Nunca o deveríamos ter recebido em Lisboa. Em nome da vítimas do Darfur, contra a cultura da impunidade.

 

Ler também:

- Apanhem o Bashir! De Ana Gomes, na Causa Nossa

- Darfur. Do Daniel Oliveira, no Arrastão

- Eu hoje acordei assim... Da Carla Quevedo, na Bomba Inteligente

- A propósito da acusação do TPI contra Omar al-Bashir... De Alexandre Guerra, n' O Diplomata