Convidado: FILIPE MOURA
O PSD não é social-democrata
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O PSD não é social-democrata
Extraordinariamente normal
Na sequência dos incêndios de 15 de Outubro, foi noticiado que a Caixa Geral de Depósitos, onde estão depositadas partes dos donativos que os portugueses fizeram para apoiar as vítimas de Pedrógão Grande, irá doar cerca de meio milhão de euros aos hospitais de Coimbra para ajudar as pessoas afectadas pelos incêndios. Sendo Portugal um país onde há um sistema de saúde financiado pelos impostos pagos pelos portugueses, deve-se concluir que o Governo acha que pode tratar os donativos como um substituto de impostos.
Quando as pessoas fizeram estes donativos, decerto pensavam que o dinheiro iria ser directamente entregue às vítimas para as ajudar a reconstruir parte da vida que perderam – isto daria um bom inquérito aos portugueses, se houvesse algum meio de comunicação social para aí virado. Em vez disso, o governo achou por bem aumentar a capacidade dos hospitais de Coimbra em responder a incêndios. Um investimento em capital fixo permanente não faz sentido do ponto de vista de gestão dos hospitais, se o que se observou este ano é completamente anormal e fruto de vicissitudes meteorológicas combinadas com um excesso de optimismo na gestão dos recursos actuais.
Mas se o que se observou este ano deixar de ser uma situação considerada extraordinária, para ser encarada como normal porque não há “solução mágica”, como disse o Primeiro Ministro, em que o Governo espera que todos os anos haja incêndios que causem feridos suficientes para justificar este investimento, então a decisão do governo parece ser lógica. Digo parece ser porque não é necessário que seja.
Na gestão de recursos alocados a uma potencial tragédia há sempre uma escolha entre gastar o dinheiro em medidas reactivas ou medidas preventivas. Não me recordo de ver noticiado que os hospitais tenham tido capacidade insuficiente para lidar com as vítimas dos incêndios de Junho e agora com os de Outubro; mas, segundo própria admissão do ex-Secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, há, ao nível da administração local, recursos insuficientes que requerem que os próprios cidadãos não contem com a protecção do estado, tendo dito “Não podemos ficar todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver o problema”. Ou seja, há sítios onde aplicar o dinheiro de forma a aumentar a capacidade de se prevenir o tamanho da tragédia.
Na quinta-feira antes dos incêndios de Outubro, que foi também o dia em que o relatório da comissão de peritos foi entregue no Parlamento, uma entrevista a Nádia Piazza, da Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande, foi publicada no jornal i. Nela, a usurpação do poder pelo governo central e administrações regionais, que impedem os municípios de agir, é dada como uma das causas para a pouca resiliência do interior do país aos incêndios. Só que estes últimos incêndios demonstraram que mesmo em locais urbanos no litoral, como por exemplo Braga, um motor de crescimento do país, não há plano para manter a cidade segura. Outros factores apontados são um quadro legislativo caótico, havendo também medidas que poderiam ter resultados, mas que por não serem implementadas não surtem efeitos.
Relativamente ao financiamento de projectos, Nádia Piazza aponta que a administração do território florestal depende da existência de fundos comunitários, o que indica que não é uma prioridade governativa nacional. É como se Portugal deferisse para a União Europeia o esforço de administrar o seu próprio território, numa auto-demissão das suas responsabilidades básicas.
Para o ano, o orçamento do Ministério da Administração Interna irá aumentar 11% face a 2017, atingindo o valor máximo dos últimos 10 anos, o que foi anunciado após os incêndios de Outubro; no entanto, de notar que as despesas com os incêndios poderão ficar fora da contabilidade do défice para 2018, pois o Comissário Europeu Pierre Moscovici considera tais custos excepcionais, o que contradiz as declarações do Primeiro Ministro, que acha que os incêndios devem ser assumidos pelos portugueses como uma situação normal – subentende-se então que esta crença do Primeiro Ministro é a justificação do aumento de investimento nos hopitais de Coimbra, discutido acima.
Dada a importância que o governo associou ao défice para demonstrar a sua boa gestão do país, dá jeito haver estas tragédias, de vez em quando, pois abrem folga nos critérios de contabilização do défice, até porque ninguém liga ao nível da dívida pública. E dá jeito o governo ter uma cassete para Bruxelas e outra para Portugal.
Cada dia com uma doença auto-imune é uma batalha
Um almoço de grupo igual a tantos outros, não fossem os rolos de papel higiénico em cima das mesas. Poderia ser uma despedida de solteiro, quiçá, antecipadas as festividades para a hora de almoço. Mas não. Um grupo de pessoas unidas por algo que as assola e que as tenta vergar, umas vezes com mais sucesso do que outras.
Entre sorrisos, dietas, piadas e trocas de experiências, este grupo assemelha-se a qualquer outro que festeja um aniversário, um almoço de Natal, ou outro qualquer que imponha celebração. Cortesia de uma doença invisível aos olhos do comum dos mortais, mas bem presente para quem tem que lidar diariamente até ao fim dos dias da sua vida. Tal e qual um casamento. Só que desta vez imposto e sem poder de escolha do "parceiro" com quem TODA a vida será partilhada.
Uns pensam que é mentira, que é preguiça, que são "queixinhas" crónicos ou até hipocondríacos. Imaginem se um dos membros do grupo apenas explicasse sem grande detalhe um dia da sua vida. Ou lhe faziam uma estátua, ou bajulavam-no pelo seu heroísmo! Na verdade, cada uma das pessoas que partilha este repasto é um lutador, um herói, o expoente máximo da resiliência. Mau estar, desconforto, dores 24/7 até ao fim da vida: não é fácil de aceitar, enfrentar e gerir. Há dias em que o mundo é demasiado pequeno para amenizar, escutar, confortar ou aliviar. Há dias que são maiores para noutros dias se enfrentar a cruel realidade de um corpo que não acompanha o que a mente deseja alcançar.
Cada dia com uma doença auto-imune é uma batalha. Um constante processo de tomada de decisão que jamais vê o fim. "Ora, tenho 10 barras de energia, tenho esta lista de tarefas que precisa de 12 barras de energia. O que deixar para amanhã?"
Nunca na vida as palavras do Variações fizeram tanto sentido: "Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga!" Se não é pelo dosear da energia, é por aquela comida que nos faz salivar só de ser mencionada, mas que o corpo nem sempre aceita. Claramente Deus nem sempre perdoa o mal que faz, pelo bem que sabe. Que Deus cruel! Aliás, quem é o Deus, que supostamente é amor e afins, que faz alguém passar por tamanha provação?
A Doença Inflamatória do Intestino (vulgo DII, ou Síndrome de Chron, ou - os diferentes tipos - Colite Ulcerosa) assola mais de 15 mil almas só em Portugal – e o número não pára de aumentar. Esta doença consiste numa resposta exarcebada do sistema imunitário, que ataca o sistema digestivo. Chron, Colite Ulcerosa ou Indeterminada: está relacionado com a sintomologia e com as zonas afectadas.
No caso da Doença de Crohn, ocorre uma inflamação em qualquer parte do tubo digestivo, desde a boca até ao ânus. A colite ulcerosa ataca o revestimento interno do intestino grosso causando inflamação, ulceração e hemorragia.
Foto: Cristiana Reis
Os sintomas incluem: dor abdominal, cólicas, diarreia, hemorragia, perda de apetite, perda de peso, fraqueza, fadiga, náuseas, vómitos, cansaço, febre e anemia. A cirurgia pode ser necessária, mas não cura a doença inflamatória intestinal.
Depois temos as pérolas extra das DII: os sintomas extra-intestinais. Dentro desses sintomas, destacam-se a artrite; úlceras orais; febre; olhos avermelhados, doridos e sensíveis à luz; erupções cutâneas; osteoporose, entre muitos outros. Acreditem: numa doença-auto imune, nem a imaginação é limite.
Para que estejamos todos na mesma página: a doença inflamatória do intestino NÃO tem cura. Portanto, dispensamos toda e qualquer sugestão que venha como milagrosa para uma cura (inexistente). Beber sumos xpto, comer um ingrediente importado de Marte, ou fazer yoga dia e noite não vão curar nada! Será muito mais produtivo e gentil que nos escutem quando precisamos de falar do que estamos a passar. Não nos julguem, não digam que somos exagerados, não digam que somos hipocondríacos ou que temos a mania das doenças. Porque, acreditem, se tivéssemos escolha, não escolheríamos isto!
Querem ajudar? Ora, porque não, num dia em que a fadiga teima em ficar, fazerem as compras do supermercado para nós? Ou trazerem-nos comida? Ou fazerem-nos sorrir nos momentos em que parece que o mundo desaba sobre as nossas cabeças? Porque não serem gentis quando não conseguimos ir à vossa festa porque passámos a noite no wc em vez de dormir? Ou animarem-nos quando mais um tratamento não resultou? Ou irem-nos buscar ao hospital depois de mais uma dose de medicação ou de um exame médico?
Almoços com rolos de papel higiénico em cima da mesa, de um grupo de pessoas que não se conhecem a não ser numa das redes sociais da moda, acontecem por uma simples razão: ninguém julga. Todos escutam.
Quando é que tu irás também escutar?
O chumbo e o livro
A mão. A primeira vez que tive consciência da minha mão foi quando levei um tiro que a atravessou de lado a lado. Em Luanda. Tinha 15 anos e tinha uma espingarda de chumbos, o que, mutatis mutandis, fazia de mim um herói de Mark Twain. Eu era Tom Sawyer e quem me deu o tiro foi Huckleberry Finn. Fazíamos, se bem me lembro, um jogo perigosamente adolescente: tínhamos de abrir e fechar dois dedos com uma sinuosa rapidez de cobra, em frente à espingarda de ar comprimido de quem ia disparar a seguir. E já não me lembro, mas sei que tínhamos todos a Diana 27. Lembro-me de coisas que já não sei e sei coisas de que já não me lembro, mas sei e lembro-me que passei a palma da mão esquerda em frente do cano da arma inimiga e, tiro célere e limpo, o chumbo entrou, rompeu e passou pela palma da minha mão, entre os nervos e os ossos que levam a dois dedos, o médio e o anelar. O chumbo raivoso perdeu força no impacto e ficou preso, incapaz já de sair, na pele das costas da mão. No posto médico, com um golpe de bisturi, a pele abriu-se, sangrou um pouco mais e o chumbo caiu, derrotado e som metálico, no mesmo balde onde – ai dos vencidos – tombavam agulhas, seringas e dentes cariados.
E não é dessa mão que quero falar, mas só da consciência dela. Antes da passagem deste diligente projéctil, se de alguma coisa tive consciência, foi do que, dizível ou indizível, nessa mão segurei, história e elenco a que vos poupo, por a mim me querer poupar. Mas a entrapada mão esquerda acelerou, como um aguilhão, a consciência da única e útil mão direita. Se já lia muito, muito mais li durante essas semanas de braço ao peito. E tive, então, pela primeira vez, a consciência da dimensão centáurica da mão e do livro. Tinha na mão um romance de Steinbeck, outro de Caldwell, a história do Dia D, o Fio da Navalha, um Saint-Exupéry, o meu primeiro Papini, e a mão e o livro tinham, como a impenetrável harmonia do uno sempre tem, o mais completo desdém pelo múltiplo. Só tinha um problema, faltava-me sempre um dedo, o entrapado dedo, para folhear.
Donde vem essa simbiose da mão e do livro? Quando começou? Platão escreveu livros, o primeiro a Apologia de Sócrates, que é também o primeiro livro filosófico a ter-nos chegado inteiro, não fragmentado, da antiga Grécia. Mas a mão que segurava a Apologia de Sócrates não segurava um livro. Sabem todos melhor do que eu que segurava um rolo. Quem, em nome de Deus, nos ensinou então a folhear, a ler combinando estas improváveis coisas: a mão que segura o livro, o dedo que vira a página e os olhos que a varrem?
O livro, esse luxo sibarítico, que tantas vezes roça a maravilhosa obscenidade, ao contrário do tiro intempestivo e imediatista que em Luanda me furou a mão esquerda, nasceu devagar, página a página, e começou a nascer no primeiro século da nossa era. Pergaminho ou papiro dobrado e cortado em cadernos, páginas de madeira até, foram a primeira revolução. Não foi a mão que procurou o livro, foi o livro que ousou nascer para se fazer à mão. E andou séculos a namorá-la – que romance! Catorze séculos depois, Guttenberg conferiu leveza e deu início à tímida massificação que, até há poucos dias, nos permitia dizer que mal sabemos onde a mão acaba e o livro começa.
Já quase não há na minha mão esquerda, na palma e nas costas dela, vestígios da entrada e saída desse chumbo Mark Twain da minha adolescência. O recalcitrante anelar da mão canhota começa a recusar o alongamento e deixa-se ficar entrevado e curvo, submisso à aliança das bodas de prata, que em breve serão de ouro. Temo que essa minha resignada artrose seja só o humilde, porventura imperceptível, símbolo da harmonia de Brigadoon (ou de How Green Was My Valley) que mão e livro andaram séculos a entretecer. Inconsciente e cada vez mais jovem, a mão, toda articulada em volta do polegar, deixou, como o meu dedo anelar da mão esquerda, de se estender. Há um livro caído – ai dos vencidos – nesse balde onde antes tombaram agulhas, seringas, um dente cariado, o audacioso chumbo de uma Diana 27.
É fundamental proteger a orla costeira
A protecção da orla costeira portuguesa é uma necessidade de primeira ordem. Ninguém duvida de que o processo de erosão costeira assume aspectos preocupantes numa percentagem significativa do nosso litoral continental.
Atente-se no estado em que se encontra a duna logo a seguir ao chamado “Quinto Molhe”, a sul da Praia da Cova [concelho da Figueira da Foz].
Por vezes, ao centrar-se a atenção sobre o acessório, perde-se a oportunidade de resolver o essencial...
Foto de Pedro Agostinho Cruz
O professor Filipe Duarte Santos, coordenador do Grupo de Trabalho do Litoral, visitou em 2015 o by-pass da Gold Coast, na Austrália, destacando aquela tecnologia como solução para a transposição de sedimentos na barra da Figueira da Foz.
Esta é a posição, há muitos anos, do movimento cívico SOS Cabedelo (que surgiu da urgência em salvar uma onda que é um dos ex-líbris da cidade), que tem publicamente defendido a construção de um by-pass (um túnel para deslocação contínua das areias das praias a norte para as a sul).
Filipe Duarte Santos considera que o caso da Figueira da Foz “é dos mais gritantes” no que respeita à erosão costeira e defende que “não há incompatibilidade entre ter um porto e uma praia que não seja exageradamente grande, como a que existe actualmente”, desde que seja encontrada e posta em prática uma solução. “E não tem nada de extraordinário, basta o transporte das areias a Norte para Sul”, resumiu. Concluindo: “Na Austrália, num caso semelhante mas mais complicado em termos de traçado, a solução do by-pass resultou. O que é preciso é que os poderes públicos tenham em sua posse estudos fiáveis e se disponibilizem a fazer análises de custo-benefício e a implementar a melhor solução."
Na sua opinião, o by-pass fixo é mesmo a melhor resposta a longo prazo. "E Portugal tem uma longa tradição de engenharia costeira."
Ainda no seu entender, “estão reunidas as condições para avançar”, uma vez que, acredita, “há verbas comunitárias” disponíveis.
Então o que tem faltado?
Vontade política e financiamento.
Todavia, em época de campanhas eleitorais, como aconteceu recentemente nos debates que se realizaram tendo em vista as autárquicas 2017, se houve temas abrangentes a todas as candidaturas que se apresentaram a sufrágio, foram a erosão costeira, o porto da Figueira e o by-pass...
Amêijoas com os olhos em bico
(Nos últimos tempos, pelas mais diversas razões, a menor das quais não será o desinteresse pela rasteira vida politica portuguesa, ensaio contos baseados em factos reais, notícias de jornal, e procuro com isso tentar a ficção, por um lado, e olhar o país e os portugueses, por outro. Ofereço ao Delito de Opinião um desses ensaios. Não o levem a sério – quem sempre escreveu sobre a realidade tem sempre dificuldade em inventar por cima dela...)
Os homens perdem-se pela mais básica das tentações, já sabemos. Quase todas, diz quem quer generalizar. Mas o Sargento Barreto costuma afirmar, lá na messe, que nada o faz desviar da sua rota. A não ser... amêijoas! Os colegas gozam, riem, desafiam-no, mas há dez anos que ninguém o ouve dizer outra coisa no Quartel dos Bombeiros Sapadores de Vila Franca de Aguiar, onde presta serviço. Podem criticar-lhe muita coisa, mas falta de coerência é que não...
Barreto, 45 anos, é um homem alto e forte, mãos grossas e seguras, pouco cabelo numa cabeça luzidia e avermelhada, uma vida dedicada à corporação, passagens breves pelos bombeiros locais, e até um estágio em Lisboa. Por onde foi passando, o hábito nunca se perdeu: começar por descobrir a tasca, o restaurante, a cervejaria, onde a amêijoa “à bolhão pato” – mergulhada num mistura de alho, coentros, limão, azeite e temperos a gosto, e cozida até os bichos abrirem a concha e revelarem as suas “intimidades” ... – se apresentava do seu agrado. Chegou a comprar um bloco de apontamentos pequeno, dos que cabem numa algibeira da farda, para anotar as melhores mesas para aquela delicia, que lhe transformava momentos azedos em dias felizes. Contava, tentando explicar a tentação, que mesmo depois de confrontado com os mais selvagens incêndios, ou com imagens hediondas de cadáveres desfeitos, perdia a fome para o jantar dedicadamente feito pela sua Olímpia (que implicava com as “minudências” do seu homem...), mas não resistia a umas amêijoas, se as encontrasse por perto.
Há uns anos, porém, Barreto começou a notar uma ligeira mudança nas mesas dos restaurantes, especialmente nos da sua zona, ali mesmo junto ao Tejo. Cada vez havia mais amêijoa, mas o bivalve parecia-lhe diferente, talvez até alterado: a casca cada vez mais clara, raiada, o sabor desmaiado, como se o bicho sofresse de anemia, e um caldo final sem graça. Parecia que tudo tinha sido reduzido a uma sopa de alho. Ao mesmo tempo, começou a ouvir falar do negócio da “amêijoa japónica”, uma espécie importada dos países asiáticos, que teria a vantagem de se reproduzir mais rapidamente, e de se adaptar a qualquer tipo de ambiente, ainda que pudesse constituir perigo para a saúde publica, se não fossem salvaguardadas as devidas medidas de prevenção.
O Sargento começou a perguntar aos seus amigos, donos de restaurantes, onde andavam eles a comprar aquela “espécie de amêijoa”, e aos poucos lá foi descobrindo que a praga estava em plena expansão: centenas de pessoas, cujos recursos eram escassos, recorriam à apanha da “japónica”, para ganhar a vida, calculando-se que chegavam diariamente às 15 toneladas de bivalves desta “raça” capturados sem qualquer controlo. Sachos, facas de mariscar, enxadas e tesouras, tudo servia para a apanha, sempre num jogo de gato e rato com as autoridades – a que Barreto pertencia, é certo, mas integrado numa brigada mais urbana e pouco ou nada ligada ao rio.
Em conversa com o dono do “Pão de Forno”, um dos seus tascos favoritos, Barreto tentou convencer quem o ouvia a não alinhar naquele crime – que além de ilegal e perigoso, dava cabo do sabor da sua única tentação. As respostas eram sempre as mesmas: a “japónica” é mais barata, o cliente nem dá pela diferença, e o desemprego ajuda a caucionar as alternativas. Além disso, esta amêijoa, ainda que seja proibida em Portugal, era bem valorizada em Espanha, para onde se vendia boa parte do stock de cada apanha.
Vencido pelo cansaço e pela argumentação dos que o rodearam na conversa com o Silva do “Pão de Forno”, Barreto não teve outro remédio. Na manhã seguinte, apresentou-se no Posto e disse ao Comandante Peralta que queria trocar a ronda da cidade pela caça aos apanhadores do Tejo. Apesar da falta de agilidade física não recomendar tal ousadia, o chefe percebeu o sentido profundo do pedido. Passou-lhe a guia de marcha.
Dois dias depois, os primeiros 683 quilos de “amêijoa japónica”, no valor de 2000 euros, estavam apreendidos nos armazéns da GNR de Vila Franca de Aguiar. E a guerra não parou mais. Até ao dia em que Barreto se sentou à mesa do “Pão de Forno” e voltou a sentir o aroma incontornável da “sua” amêijoa de sempre, a “amêijoa boa”, que não se chama assim por ser apenas boa, mas por ser a melhor que os apanhadores encontram nas baías, nos estuários, nas lagoas.
- Ah, agora sim, temos amêijoa no prato...
A missão estava cumprida, o fogo estava apagado.
Esquerda e direita
I
Paulo Trigo Pereira, um dos gurus da política económica do actual governo do PS e referência incontornável da esquerda portuguesa, concedeu, há dias, uma entrevista ao Público, da qual, só por estar profundamente entorpecida e desatenta, a nossa direita não soube retirar o devido aproveitamento. O ponto mais importante do que aí foi dito está num comentário feito a propósito da política orçamental para 2018 e da possível redução da carga fiscal em vigor, em que Trigo Pereira afirma o seguinte: «O desagravamento fiscal não deve ser a bandeira da esquerda. É a bandeira da direita».
Esta afirmação encerra, de facto, o essencial que distingue, desde sempre, a esquerda da direita ou, para sermos mais rigorosos, toda a esquerda de alguma direita liberal: a convicção de que a justiça social e o progresso são apenas atingíveis pela intervenção do estado na distribuição da riqueza socialmente gerada.
II
É verdade que existem socialistas em muitos partidos, movimentos e think tanks de direita. Friedrich Hayek dedicou, sintomaticamente, a sua histórica obra The Road to Serfdom «aos socialistas de todos os partidos». Não o fez por acaso, mas porque boa parte da direita – a do seu tempo, a do tempo anterior ao seu e a do tempo que se lhe seguiu – acredita que os valores sociais mais elevados da liberdade e da justiça social são inatingíveis pela interacção e cooperação humanas.
Conservadores e pessimistas, estruturalmente hobbesianos no seu DNA, os que assim pensam descreem nas virtudes do individualismo e olham para cada homem, em relação com os outros, como um perigo e não um aliado e um parceiro natural. Para eles, a ordem espontânea social e de mercado – a catalaxia – é uma falácia literária, inexequível no mundo dos homens, sendo necessário que o estado intervenha para dar sentido às coisas. Mas se muita direita ainda pensa assim, onde só existem socialistas, que assim pensam, é, inquestionavelmente, na esquerda. E Paulo Trigo Pereira, com elevação e honestidade intelectual, disse-o claramente naquela sua frase: a direita (alguma direita) pugna pelo desagravamento fiscal, mas a esquerda não deve fazê-lo, porque defende a virtude do imposto como mecanismo necessário para uma melhor distribuição da riqueza, a fim de alcançar a tal justiça social, de outra forma considerada inatingível.
III
Ora esta é, precisamente, a fronteira que deve fixar a distinção entre esses dois pólos da histórica dicotomia. Não se trata de querer manter a divisão geográfica que vem da velha Assembleia Nacional francesa e que depois se transmitiu, embora com importantes nuances, para a Convenção parlamentar que lhe sucedeu, tão pouco pretender preservar blocos ideologicamente homogéneos, entre si higienicamente separados.
Repetimos: à direita multiplicam-se os socialistas; mas o território natural do socialismo é a esquerda, como Paulo Pinto Pereira bem frisou, e este é o ponto significativo. Do que se trata, portanto, é que existem valores que alguma direita ainda defende e que nenhuma esquerda jamais reclamará como seus. Esses valores são os que estruturam o pensamento liberal. Vejamos quais são.
IV
Em primeiro lugar, a crença no indivíduo possuidor de direitos naturais, inerentes à sua condição humana, e não no indivíduo apenas detentor desses direitos se e enquanto cidadão, isto é, como integrante de uma comunidade política estruturada num estado que lhos reconhecerá e conferirá. De modo algum encontraremos no pensamento socialista a convicção de um direito natural inerente ao indivíduo, que o estado tem de respeitar, mas, quando muito, a de direitos individuais que o estado promoverá e deverá garantir.
O direito natural é uma crença liberal, mas não de todo o liberalismo, e uma convicção da direita, mas não de toda a direita. À esquerda, nunca o será.
V
Daqui decorre, em segundo lugar, a convicção de que o liberalismo tem a liberdade como um resultado da interação estabelecida entre todos quantos compõem uma comunidade, acreditando que eles são capazes de comporem os seus interesses e de criarem as instituições que os assegurem ou reponham quando ameaçados ou postos em causa, ao passo que, à esquerda, a liberdade é somente assegurada pela comunidade transformada em status político, no fim de contas, pelo direito à coerção de alguns sobre todos os outros.
Falamos, no fim de contas, nas duas ideias basilares do liberalismo e do socialismo: o mercado e o estado; a ordem social espontânea e a ordem social intervencionada por insuficiência própria. Alguma direita acredita na primeira. Nenhuma esquerda será capaz de fazer o mesmo.
VI
Depois, corolário necessário dos dois anteriores postulados, a solene certeza de que existe sempre uma elite dirigente que zela por todos nós, que intervém para corrigir o que de mal fazemos e que cuida da nossa felicidade. A esquerda e o socialismo partem sempre da necessidade, muito platónica, de um «governo de sábios», a confiar com algumas restrições, enquanto que a direita prefere a máxima popperiana de um «governo de homens», a manter sob absoluta reserva. A esquerda confia aos «sábios» a felicidade dos povos, porque considera que os homens não a conseguem, por si mesmos, atingir, enquanto a direita desconfia dessas boas intenções e, por isso, prefere que os «sábios» sejam vistos apenas homens comuns, sujeitos às tentações e fraquezas de todos os outros.
VII
Em consequência de tão grande convicção nas virtudes do governo, e avancemos para mais uma diferença substantiva, a esquerda considera o Direito e a Lei como instrumentos iluminados de ordenação social vertical, que devem ser apenas por si mesmos limitados: «Quod placuit principi, legis habet vigorem», assim se citava Ulpiano nas Institutas de Justiniano, máxima sempre invocada por quem defendeu a estatização dos países da Europa Continental. Primeiro como direito divino dos soberanos, depois como direito racional de déspotas iluminados, por fim, com a Revolução Francesa, como direito das assembleias representativas da volonté générale.
À esquerda, o direito e a lei serão, assim, sempre vistos como instrumentos de governação, para atingirem os elevados fins da res-publica, enquanto que, nalguma direita, o direito deverá ser a ordenação natural da coisa comum, a revelação das normas de convivência pacífica na Grande Sociedade e os meios para a contenção do grande Leviathan.
VIII
Deste conjunto de convicções distintas e separadas resultará, para os socialistas de esquerda e de direita, que todos os direitos individuais são necessariamente limitados por aquilo que, momento a momento, o legislador e o poder soberano entenderem ser o bem público, isto é, o interesse geral, exceptuando-se algumas normas constitucionais de rigidez cada vez mais atenuada. Em contrapartida, para todos os verdadeiros liberais, que, quanto mais não seja, por exclusão de partes, só poderão estar à direita, a propriedade de cada um sobre si mesmo, os resultados que cada indivíduo atingir por si próprio, ao longo da vida, são sagrados e devem ser intocáveis, porque incorporam a sua personalidade e representam a dignidade do esforço e do trabalho individual, noutras palavras, a própria vida humana. Por conseguinte, a esquerda vê no imposto, tão mais alto quanto as necessidades declaradas pelo soberano assim o exigirem, o seu instrumento principal de justiça social. A direita liberal considera o imposto um mal, quase sempre inevitável, porque sempre reduzirá o incentivo à produção e porque é sempre uma severa limitação ao direito de cada um dispor de si mesmo, embora o possa admitir em certas e limitadas circunstâncias, se obedecendo a limites rigorosos, limites esses que, desde a Magna Carta de 1215, os povos civilizados vêm impondo aos seus governantes.
IX
Fica aqui por esclarecer o que distingue a ideia de justiça social à esquerda e à direita. Deixando enfaticamente de lado aquela nefasta treta de que «o coração está à esquerda e a carteira à direita» - como se o socialismo tivesse o monopólio dos bons sentimentos e das boas intenções -, assentemos num princípio: todos queremos o melhor para os nossos concidadãos e para as comunidades onde vivemos.
X
Assim sendo, o que nos distingue, então? Mais uma vez, a crença no indivíduo: a esquerda entende que só com um intermediário soberano – o estado – se pode redistribuir a riqueza, indo buscá-la a quem a produz e entregando-a a quem a não tem; a direita liberal afirma que só se pode distribuir o que existe e que para produzir a riqueza e bem-estar o sistema capitalista de livre-mercado é o mais eficaz, porque incentiva a produção, distribui melhor e mais igualitariamente os bens e serviços produzidos, gerando, desse modo, mais prosperidade para um número maior de seres humanos.
Porquê? Por muitas e diversas razões. Mas, essencialmente, porque a estrutura da economia capitalista exige o crescimento da riqueza e a sua distribuição por aqueles que serão os consumidores que a vão manter e fazer crescer. Porque a falácia da «concentração capitalista» de Marx é um disparate que nem nas economias estáticas seria possível conceber, quanto mais em economias de mercado, onde a competição pelas escolhas dos consumidores leva necessariamente ao aprimoramento dos produtos e da produção, à inovação e à criatividade, obrigando a investimentos sucessivos e constantes no sector produtivo, isto é, à redistribuição do capital. Porque a concorrência não manipulada por governos e políticos, pelo «capitalismo» de compadres dos amigos do BES, faz necessariamente baixar preços e elevar a qualidade. Porque só o incentivo geral do lucro legítimo, isto é, o obtido no livre-mercado – o lucro de quem produz, que quer ganhar mais, e de quem compra e consome, que quer pagar menos e ter melhor – pode fazer crescer uma economia, uma sociedade e, consequentemente, um país.
XI
Em contrapartida, a célebre economia de tributos altos, na qual Paulo Trigo Pereira acredita, desincentiva quem investe, afeta recursos a quem nada contribuiu para criar riqueza – políticos, burocratas e clientelas partidárias, principalmente -, entrega-os a governos que os utilizam, inúmeras vezes, em destinos de que as pessoas não carecem ou, pelo menos, não têm necessidade naquele momento, mas que eles imaginam que lhes rendem simpatias e votos.
A racionalidade da decisão política, não o esqueçamos, é o poder, não é o crescimento. De resto, bastará olharmos para a realidade nacional, para concluirmos que a subida de impostos dos últimos anos, ao contrário das intenções sempre declaradas, se fez acompanhar, não de um aumento geral do bem-estar, mas do aumento da pobreza, do desemprego, de precariedade laboral e de salários de miséria. Um país que cativa uma tão elevada percentagem da riqueza nacional produzida anualmente teria que ter melhor destino, a cumprirem-se os vaticínios das políticas económicas socialistas.
Isto, obviamente, para já não falarmos na apropriação indevida das riquezas cobradas aos portugueses, pela via tributária, por políticos e banqueiros desonestos, que lhe têm acesso fácil. Infelizmente, também aqui não têm faltado, nos últimos anos, exemplos flagrantes.
XII
Poderíamos prosseguir, mas estes são já bons argumentos para mantermos a dicotomia «esquerda-direita» e para dizermos que o liberalismo se deve situar na segunda e nunca na primeira.
Não nos referimos, entenda-se, ao liberalismo histórico francês e afrancesado ou ao actual «liberalismo» americano, que eram e são manifestações de estatismo pueril, no primeiro caso, e de social-democracia moderna, no segundo. Referimo-nos a um liberalismo que se projecta no indivíduo, na propriedade, na cooperação, na criação e distribuição de riqueza sempre à margem ou para além do intervencionismo do estado, na justiça e numa igualdade social que advêm de uma sociedade mais próspera, mais rica e com mais oportunidades para um cada vez maior número de pessoas.
À esquerda nunca encontraremos quem defenda o conjunto destes valores. À direita ainda encontramos. Pensem nisso.
António Costa - o governo que merecemos
Aquelas duas entrevistas a Ferro Rodrigues em que, pressurosamente, ele alertava para o calendário pós-eleitoral e lembrava «primeiro se escolheria o presidente da AR», já diziam tudo. Costa, depois da sua tribunícia punhalada em Seguro, ou subia ao Poder ou, em definitivo, morria para a política.
Depois foi a pobreza dos debates, semanas a fio, confundindo a legitimidade política com a legitimidade jurídica (como antes a revolucionária ccom a democrática), e Costa a negociar os seus acordos à esquerda, enquanto ordenava às suas milícias pelejassem e calassem os argumentos contestatários da Direita.
E a Direita, incapaz de se reconhecer na Oposição, lamurienta, premonitória – qual Velho do Restelo – invocando até a vinda próxima do Diabo, tornava-se alvo fácil da chacota da Esquerda e do eleitorado em geral.
Tudo porque António Costa é o maior político português. No mais biltre sentido que ao termo se possa atribuir, claro. Não lhe foi dificil, portanto, congeminar o esquema pelo qual se colocou à cabeceira do Conselho de Ministros.
Costa sabe que a Esquerda leninista-trotskista não transige na sua missão dialéctica de votar o oposto da Direita. Por muito pouco, assim, consegue um qualquer desaguisado parlamentar para, em permanência, ter contra si o PSD/CDS e, a favor, a CDU/BE. Palhaçadas e encenações à parte – incondicionalmente.
Sabe também que somos um País virado para o futebol (e, entretanto, até para o Eurofestival), muito mais do que para a política. Ama-se Pinto da Costa, Bruno Carvalho, Luis Filipe Vieira, como se acredita piamente na inocência de Sócrates. É tudo uma questão clubística... Algo muito importante do ponto de vista eleitoral, tão importante que Costa não teme a desconfiança de quem vota, eventuais comparações com o seu antecessor, de quem, aliás, foi ministro.
Não há de que nos queixarmos, pois.
A política portuguesa já se fez de meritocratas, geralmente recrutados no sector privado, que partiam para a governação no mais puro espírito de missão. Agora ela é monopólio dos funcionários dos partidos, desses que faltavam às aulas para dactilografar comunicados lá na sede, a rapaziada das comissões e dos relatórios e do “aparelho”. Uns incontornáveis desempregados se afastados da burocracia e das tricas intestinas.
Costa nasceu assim. Alguém o imaginará a advogar, por exemplo?
É tal a sua percepção e o seu à-vontade neste estranho mundo português que Costa jamais perde o sorriso, por muito comprometedora que seja a situação. Nem uma faúlha o tocou na mortandade e no braseiro florestal deste Verão.
Não há, realmente, de que nos queixarmos.
Até porque – e Costa está atento a isso – metade dos eleitores sequer vota. E se passar a votar fá-lo-á em Costa e na Esquerda Unida, nas poucas patacas que supostamente auferem a mais, por troca com uma subida da tributação indirecta – que não sabem, nem pretendem saber, o que é.
O mesmo se diga do agravamento da dívida pública (que foi uma das principais armas de arremesso de Costa conra a PaF nas pretéritas eleições) e das famigeradas “cativações”. A Saúde e o Ensino em Portugal deterioraram-se por completo. Mas quantos perceberão porquê? Não fora a insegurança que corre os tradicionais paraísos de lazer, não fora o ocasional boom turístico com que a sorte nos contemplou, por que baixos andariam as optimistas contas públicas do Governo?
Mas tudo são conexões que a maioria dos portugueses não alcança. Por isso Costa permanece, e permanecerá, no seu estado de graça. O tempo cavalga, as próximas eleições já não tardam, e ele é o provável vencedor.
Merecêmo-lo.
Merecêmo-lo ainda porque a Direita não sabe fazer oposição. Ocorrem-me Eça e Ramalho e o seu contributo para a desmistificação do caduco Rotativismo. E, no passado recente e no presente, Medina Carreira, Pulido Valente, Caiado Guerreiro, António Barreto... Portugal necessita urgentemente de uma IV República (a antecâmara da Monarquia, mas isso é uma história a guardar para outro dia) e ela só é possível mediante a análise crítica destes e doutros e de uma seta – a ironia - apontada ao calcanhar do Aquiles Costa – o próprio Costa, ele e a sua atrapalhação quando é enfrentado a sério. Tudo a deixar bem exposto o ridículo em que vivemos sob o comando dos partidocratas e o paternal encorajamento da Europa rica.
A pauta, as pautas
As ligações de sangue, outrora, como agora, constituem ainda a maior, não necessariamente a melhor, de todas as pautas, que é de relações humanas que aqui se trata. Crescemos com bases de referência, algumas das quais perdurarão para sempre, mesmo que manchadas por episódios de falta de diálogo, de tolerância, de excesso de exigência. Existe a solidez, a liquidez e a parte gasosa, aquela que cedo aprendemos a remeter ao limbo por, definitivamente, se ter cedo revelado o zero absoluto (uma pedra sem a forma de coração baleia ou nuvem ou aquela prima, enfim, diferença alguma).
Depois, crescemos, etc., vocês sabem, o mundo todo começa a envolver-nos, mas desse mundo não estão excluídas as relações de sangue, não todas. Tem início o prazer de reconhecermos com clareza que existe a empatia, as afinidades, mais ou menos cultivadas, regadas ou não, diariamente, mas que persistem, as irritações, nem sempre capazmente explicadas (era o que faltava, ter que explicar tudo!), a indiferença, a percepção das traições, mas quase sempre optamos pelo afastamento, a excessiva generosidade de alguém que, afinal, quer retirar-te tudo para que, esvaziado, olhes naquela direcção, onde tudo se assemelha à traição, ao roubo perpetrado com falta de requinte.
Um dia, tens então/também aquele tio crente, um tio referência durante toda a tua infância, o tio dos chocolates suíços, que gasta € 3,000.00 numa campa de granito, onde a infância das flores é colocada todas as semanas, colorida, sobre as raízes de osso da tia, sabendo tu que se enamorou por um anjo loiro com menos três décadas que ele, que se torna naquilo que sempre foi, o gabarolas de serviço, agora com vestígios alarmantes de Parkinson, mas ainda capaz de movimentar, pelo menos, a conta milionária, dando abrigo ao anjo loiro e tornando-a sua herdeira universal, coberta d’oiros, um guarda-roupa exuberante, uma altivez camuflada de amabilidade em figura de garrafas de vinho do Porto e um meio bolo caseiro, comprando-te a atenção, cativando-te como se foras o ramo de flores sobre a campa da tia Flor de Ossos.
A(s) pauta(s) que rege(m) as relações humanas evolui para auto, autos, coisa séria, dos mais diversos, quando sentes que uma pessoa, aos 85 anos, mesmo considerado todo o dever de respeito que lhe deves, e à sua liberdade, que a tem, se tornou no cachorrinho de abanar a tola colocado sobre o tampo do porta-bagagens do Ford Cortina da tua infância, lembras-te, aquelas idas à praia, os passeios à terra das tias velhas?, e sentes, não pena, mas desprezo, pelo ridículo inconsequente, o interior do porta-bagagens perdendo nas curvas o conteúdo, a música da tua infância transformada na queda rolante das memórias que nunca pensaste poder perder.
E começas a apreciar o silêncio.
Alexandra G.
(blogue IMPRECISÕES)
Merkel, a esfinge
Gobbledygook é um neologismo que descreve linguagem obscura ou difícil de compreender. A palavra, inspirada pelo grugulhar do peru, foi criada em 1944 pelo congressista norte-americano Maury Maverick, que estava farto da linguagem indecifrável usada pelo governo e pelos políticos.
Quem tem estado minimamente atento à política alemã sabe que um dos pontos fortes da chanceler, que há doze anos comanda os desígnios da Alemanha, é a ausência de gobbledygook no seu discurso. Angela Dorothea Merkel é uma mulher não dada a complicações, terra-a-terra, a quem coube em sorte alguns dos desafios mais complexos da história contemporânea teutónica e europeia. Quando o Muro caiu, a 9 de Novembro de 1989, a física era uma desconhecida, sem ambição política. Ninguém ousaria prever que se tornaria na mulher mais poderosa do mundo e na Mutti, mãezinha, dos alemães.
Pode pensar-se nela como uma maratonista que não desperdiça esforços em sprintes para impressionar a bancada. O que exaspera membros do seu governo, da oposição e alguns líderes europeus. Angela Merkel não é movida pela ideologia, toma as suas decisões baseada em dados, estatísticas e factos. Convém acentuar a palavra factos. “O meu pai [o pastor luterano luterano Horst Kasner] atribuia muita importância à lógica e à clareza dos argumentos."
Se hoje ela é uma pessoa extraordinariamente controlada e discreta, características que a tornam para muitos estranha, pouco previsível, esfíngica, isso é resultante de uma vida entre dois mundos, duas Alemanhas. Conhecendo-se a história da divisão alemã entende-se: nada é simples, nada é linear, não há lugar para maniqueísmos. “É muito difícil do ponto de vista actual compreender e tornar compreensível como nós vivíamos. Onde se situavam as fronteiras do compromisso que cada um devia encontrar para si próprio?”
Porque não conhecemos Angela Merkel?
Muito da vida de Angela Merkel no lado oriental do Muro de Berlim continua a ser uma incógnita. Já em 1991 o diário Süddeutsche Zeitung perguntava “porque não conhecemos Angela Merkel?”. “Sim, foi uma grande vantagem ter aprendido a manter-me calada nos tempos da RDA. À época foi uma das estratégias de sobrevivência e continua a sê-lo hoje."
Rainer Eppelmann, dissidente do regime da República Democrática Alemã (RDA), conheceu Merkel nos dias seguintes à queda do Muro e recusa apontar-lhe o dedo. “As pessoas, na sua maioria, apenas sussurravam. Nunca diziam o que pensavam, o que sentiam, do que tinham medo. Até hoje, não temos plena consciência do efeito sobre os indivíduos.” Acrescenta: “para ser fiel às suas esperanças, ambições, crenças e sonhos, era preciso ser-se herói 24 horas por dia. Ninguém consegue.”
A vida da futura chanceler numa ditadura foi tão “normal” quanto possível. Nunca usou roupa da RDA, mas sempre da Alemanha ocidental, por uma razão bem prosaica. “O meu pai tinha um salário baixo. Seiscentos marcos por mês. Não era muito para vestir todos os filhos (…) e a nossa família em Hamburgo enviava-nos roupa.”
“Nunca senti a RDA como meu país natal”, afirmou à fotógrafa alemã Herlinde Koelbl em 1991. “Tenho um espírito relativamente ensolarado e sempre tive a expectativa de que a minha trajectória de vida seria também relativamente ensolarada, a despeito do que acontecesse. Nunca me permiti ser amarga. Sempre me vali da margem de liberdade que a RDA me permitia. […] Não havia sombra sobre a minha infância. E, mais tarde, agi de maneira tal a não me colocar em permanente conflito com o Estado.”
Com um perfil o mais distante possivel do típico político alemão – visite-se a Haus der Geschichte e a galeria dos retratos de presidentes e chanceleres no pós-guerra, todos homens, apenas uma mulher: Angela Merkel – fez uma carreira vertiginosa, sem paralelo na Alemanha, tornando-se na líder incontestada da Nação e na chefe de Governo mais antiga da União Europeia. Isto na tripla qualidade de mulher, do Leste, divorciada e sem filhos.
Ter coragem no momento certo
Recuemos no tempo. Durante uma aula de natação, quando tinha 12 anos, Angela Merkel ficou parada na extremidade da prancha de mergulho cerca de 45 minutos antes de reunir a coragem necessária para saltar para a piscina. “Tenho coragem no momento certo. Mas preciso de um considerável tempo de preparação e de pesar todos os riscos.”
Na escola, na universidade, nem colegas, nem professores, apesar da excepcional inteligência, alguma vez viram na recatada Merkel um potencial de liderança. Foi o destino que lhe pregou uma partida ou foi ela que traçou o seu destino?
Contrariamente à maioria dos políticos de primeira linha dos democratas-cristãos, ela não seguiu o caminho tradicional – a filiação na juventude democrata-cristã, envolvimento na política local, construção de redes e contactos. Estava do outro lado do Muro. Como se explica a ascensão do “nada político”, de alguém com um perfil o mais distante possível do clássico, a mulher mais poderosa da Alemanha? Por uma conjugação de qualidades pessoais e de acasos biográficos e de uma constelação histórica ímpar.
O dia determinante para a carreira política de Angela Merkel é 30 de Setembro de 1990, quatro dias antes da reunificação alemã, o dia em que conheceu Helmut Kohl, que seria o seu ídolo, mestre e com quem aprendeu aquilo que os alemães denominam “Willen zur Macht”, o desejo de poder, a mola inicial, o princípio do salto.
Kohl, o historiador, considerava que o Gabinete Federal devia reflectir a nova realidade política alemã. Por isso uma mulher do Leste, jovem, ainda para mais protestante, encaixava-se no puzzle do poder. Por outro lado, o chanceler da reunificação queria rodear-se de pessoas que lhe fossem absolutamente reconhecidas.
O encontro entre Merkel e Kohl não foi obra do acaso, mas aconteceu por iniciativa de Merkel. Dias antes das comemorações da unificação alemã, decorreu em Hamburgo o congresso de “reunificação” da União Democrata Cristã (CDU) com os movimentos democráticos de raízes cristãs da antiga RDA. Nesse congresso, Merkel era um dos delegados do Demokratischen Aufbruch. Aproveitando a ocasião, a política pediu a um conhecido para a apresentar a Kohl. Tiveram uma longa conversa, que impressionou positivamente o chanceler. Voltariam a encontrar-se em Bona, nos finais de Novembro, em vésperas das primeiras legislativas da Alemanha reunificada, que se realizaram a 2 de Dezembro. Depois de ler as actas da Stasi relativas a Angela Merkel, limpas, Helmut Kohl convenceu-se de que ela deveria integrar o Governo. Que o novo ministério da Juventude e Condição Feminina fosse quase esvaziado de competências fazia parte dos cálculos do presidente da CDU. O animal político Kohl farejou a substância de que Merkel era feita e queria que ela amadurecesse para outros voos. O que ele não poderia imaginar é que nove anos mais tarde a dama faria xeque-mate ao rei.
Num artigo publicado no Frankfurter Allgemeine Zeitung, a 22 de Dezembro de 1999, com o partido mergulhado na maior profunda crise da sua história em virtude do escândalo em torno do financiamento partidário, Angela Merkel comete “parricídio”.
Sem estados de alma, a então secretária-geral do partido acusa Kohl de prejudicar a CDU ao silenciar o nome dos doadores que alimentaram a contabilidade paralela dos democratas cristãos. “A credibilidade de Kohl, a credibilidade da CDU e dos partidos políticos estão em jogo”, escreveu na altura. O artigo levaria o ex-chanceler a renunciar à presidência honorária do partido. Os doadores, esses, continuam incógnitos. Wolfgang Schäuble, o eterno príncipe herdeiro de Helmut Kohl, vê-se envolvido no escândalo e a escapar-se-lhe entre os dedos a possibilidade de um dia se tornar chanceler.
Merkel publicou o artigo sem avisar Schäuble, o então presidente da CDU. Num gesto que combinava virtude protestante com crueldade, a “Mädchen” (menina) de Kohl cortava o cordão umbilical do seu pai político. “Ela espetou a faca nas costas dele e girou duas vezes”, afirma Karl Feldmeyer, jornalista do Frankfurter Allgemeine Zeitung . Foi o momento em, que pela primeira vez, muitos alemães se deram conta da existência de Angela Merkel.
Alguns anos mais tarde, Michael Naumann – que ocupou a pasta da cultura no gabinete do social-democrata Gerhard Schröder – questionou Helmut Kohl: “O que é ela quer de facto?” “Poder”, terá a resposta cortante. A um outro amigo, o chanceler da reunificação contou que seu apoio à jovem Angela Merkel tinha sido o maior erro da sua vida: “enrolei a cobra no braço.”
A jogada de Angela Merkel deu certo. Mergulhados na maior crise da sua história, os democratas-cristãos precisam de alguém imaculado, fora do “sistema Kohl”, alguém insuspeito, alguém de Leste. Empurrada pelas bases como uma Joana d”Arc, Merkel é eleita presidente da CDU, em Abril de 2000, no congresso de Essen, com uma votação “soviética”: 96 por cento.
Seria a primeira mulher a ocupar este cargo num dos dois grandes partidos alemães, como também já havia sido pioneira no de secretária-geral. Na sequência dos remoques do cardeal de Colónia, Joachim Meisner, que considerava pouco edificante a líder de um partido cristão viver em união de facto, casaria, em Dezembro de 2000, na intimidade, com o químico e professor universitário Joachim Saeuer. Ninguém fora informado. Nem os pais de Merkel. Há poucas fotos do casal: as das visitas anuais ao festival de Bayreuth e em algumas cerimónias oficiais. Para ela, a esfera privada é inviolável. Joachim Sauer nunca será um “primeiro-marido”.
Da crise a líder do mundo livre
Reforça a imagem de ser feita de gelo com a resposta à crise financeira global e à crise do euro, após o colapso do Lehman Brothers. Torna-se numa figura odiada por um largo sector da opinião pública europeia. Ao seu ritmo de pequenos passos acabaria por ultrapassar as hesitações. “Merkel, que duvidou durante longos meses de que a Grécia conseguisse algum dia assumir a disciplina inerente à participação numa moeda única, acabou por reconhecer que os custos para os outros países da sua saída do euro – resultantes do efeito de contágio – seriam muitíssimo superiores aos benefícios”.
“Se o euro fracassar, fracassa a Europa”, dirá em Outubro de 2011. Enquanto ia acumulando derrotas nas eleições regionais, a chanceler foi somando vitórias nos palcos da crise do euro. Mantendo um discurso pró-Europa, Angela Merkel não abdicou da austeridade e impôs aos seus pares um caderno de encargos da sua lavra. Por momentos, receou-se que a sua paciência com Atenas se esgotasse. Mas não, até aí se manteve firme na convicção europeia. De resto, Merkel não sucumbiu aos que pediam flexibilidade e tempo no combate à crise.
O ano de 2012 será lembrado como o ano em que a moeda única foi salva da implosão a que parecia condenada pela crise da dívida europeia. Foi a decisão da chanceler de manter a Grécia no euro e, mais ainda, de assumir os custos associados que o permitiu fazer.
Ganhou entre os alemães a aura da salvadora do euro a custos mínimos e o cognome de Mutti. O ano de 2012 seria também o ano da afirmação do poder incontornável da Alemanha, da fragilidade da França e da mais evidente e perigosa deriva do Reino Unido em relação à Europa.
Mesmo tendo em consideração todos os riscos políticos que a decisão acarretava, decidiu abrir, a 4 Setembro de 2015, as fronteiras alemãs a todos os refugiados sírios que queiram procurar refúgio em solo alemão. No dia seguinte chegariam a Munique, de hora a hora, comboios cheios de refugiados. As centenas depressa se tornaram milhares e nos cais vivem-se momentos comoventes. Milhares de alemães trazem brinquedos, vestuário, água, guloseimas. Dão, eufóricos, as boas vindas. As cenas repetem-se nas estações ferroviárias de Frankfurt am Main e Dortmund.
A maior emergência humanitária desde 1945, a crise dos refugiados transformou aos olhos da opinião pública e publicada a vilã impiedosa numa heroína global. E transformou para sempre a Alemanha. “A chanceler alemã está do lado certo da história. Num mundo global a solução não é construir muros”, sublinhou Barack Obama.
Em 2015 a revista Time elegeu-a como a personalidade do ano. “Por pedir mais do seu país do que a maioria dos políticos ousaria, por enfrentar de forma firme a tirania, bem como o oportunismo e por oferecer uma liderança moral firme num mundo onde esta é escassa, Angela Merkel é a pessoa do ano da Time”.
No Guardian, o historiador britânico Titmothy Garton Ash, profundo conhecedor da Alemanha, dizia: “A expressão ‘líder do mundo livre’ é normalmente aplicada ao Presidente dos Estados Unidos, e raramente sem ironia. Estou tentado a dizer que a líder do mundo livre é agora Angela Merkel.”
Quem é a chanceler? De onde veio a dama que fez xeque-mate a todos os reis no seu caminho? Como cresceu? De que gosta? Como é a pessoa para além da política? O que a faz mover?
Perguntas que, desde 1991, altura em que Merkel se tornou pela primeira vez ministra, ocupam jornalistas, analistas e biógrafos. Talvez uma das melhores respostas que encontrei foi a de Bernd Ulrich, no Die Zeit. “Wer ist Merkel? Die Kanzlerin. Was will sie wirklich? Kanzelerin sein.”(Quem é Merkel? A chanceler. O que pretende realmente? Ser chanceler).
Tântalos
Uma das histórias (“Will-o’the-Whisp”) de Sum: Tales from the Afterlives (uma compilação de contos breves sobre possíveis vidas depois da morte escritos pelo neurocientista David Eagleman) descreve um Paraíso que inclui uma sala repleta de monitores. Aí, o recém-morto descobre, para seu grande espanto e euforia, que poderá seguir tudo, rigorosamente tudo o que vai acontecendo aos vivos. Vai saltando de câmara em câmara e acompanhando o que sucede ao seu legado: as alegrias e infortúnios dos filhos e netos, de que modo é evocado por quem o conheceu, a evolução dos projectos que criou ou de que fez parte, as crianças que trepam à árvore que plantou, os novos habitantes da casa que foi sua, etc.
Rapidamente fica viciado nessa actividade. Corre todas as manhãs para os monitores e aí passa o dia até ao encerramento da sala. Quer sempre ver mais, saber mais, sofre e alegra-se com quanto vê mas nunca fica saciado. É como se a vida, a sua vida, ainda lhe pertencesse. A visão que possui agora da complexa rede de acontecimentos e suas consequências é múltipla, profunda, total; mas está impossibilitado de qualquer tipo de intervenção. Não há mensagens sussurradas em sessões de mesas de pé-de-galo, nem aparições fantasmagóricas, nem sinais de espécie alguma. Tudo verá e nada poderá fazer. Apesar disso, o morto – cada vez menos recente – regressa todos os dias à sala com igual sofreguidão.
O acesso à sala dos monitores, porém, tem um prazo de validade. Em algum momento, o cartão de acesso deixará de funcionar e o morto ficará de fora, a olhar os portões que outros transpõem mas ele não, e reparará que do lado de fora há outros como ele, a rondar, à espera de uma oportunidade para iludir a segurança e regressar à sala, coisa que nunca mais ocorrerá.
O prazo de validade do cartão de acesso não é aleatório. Cada recém-chegado tem a sua vida escrutinada. Os que fizeram sobretudo boas acções são os que primeiro perdem o acesso à sala dos monitores. A esses, como recompensa, é poupado o conhecimento de um futuro que não viverão.
Tendo por certo que a memória tem os seus caprichos, ninguém estranhará que me tenha lembrado deste conto, assim como da história de Tântalo, quando me vi frente à fonte de Trevi, em certa tarde de Verão. É que Tântalo, filho de Zeus, foi condenado a nunca saciar a fome e a sede, apesar de permanentemente mergulhado em água até ao queixo e à sombra de ramos carregados de frutos. Quando tenta alcançá-los, a água escapa-se e os ramos afastam-se. E a Tântalo, garanto-vos, assemelham-se os polícias que vigiam a fonte. Quando, saídos de umas quantas voltas por ruelas pouco prometedoras, se nos depara a luminosa Trevi, insolitamente ali, como se acabada de materializar-se, o primeiro que ouvimos são os frenéticos apitos. Em seguida, as vozes e risos da multidão. E só depois, muito depois, quando os ouvidos se habituam a tanta dissonância, a água.
Tardamos em descobri-los entre a multidão, mas aí estão, os polícias das fontes, acalorados, reluzentes de suor, muito morenos, a camisa demasiado justa para tão ampla curva da barriga, visivelmente irritados, ei-los, os guardiões do património, zelando para que nenhum turista com delírios de Ekberg se lance aos pés de Neptuno.
Não, enquanto eles aqui estiverem não haverá mergulhos, nem rabos sentados no mármore, nem pés nus a chapinhar, nem se lavarão rostos, cabelos, mãos, chapéus ou bandanas, nenhum gesto de desrespeito pelo património que constituem agora as fontes, ordem da presidente da Câmara. E aqui estamos, 42 graus à sombra, sedentos, sem poder avançar por entre uma multidão de turistas com câmaras, tantos são os paus de selfies ao alto que mais parece a rendição de Breda, aqui estamos frente à miragem luminosa da fonte onde Mastroianni, cheio de frio, já um pouco bêbedo, porque a produção tentou aquecê-lo com whisky, mergulhou atrás de uma deusa nórdica a quem as águas pareceram cálidas. O sensual quadro que guardávamos na memória transformou-se em cena absurda, ainda que italianíssima. O estrépito dos três, nada menos que três apitos – do lado esquerdo, no centro e do lado direito – enerva, mas a energia repreendedora dos agentes tem uma comicidade irresistível. Gesticulam, zangam-se, sopram o apito, mandam desencostar da fonte com gestos exagerados, vigiam o ritual do lançamento das três moedas por cima do ombro, um costume que um guia imaginativo garante provir do general Agripa, como se não soubéssemos que o devemos a Frank Sinatra.
Neptuno, a Abundância, a Fertilidade, a Colheita, cavalos alados resfolegantes, tritões ensandecidos – frente a nós está a vida, caótica, aos borbotões, mas não devemos tocar-lhe. Tampouco o farão os três homens. Quanto dariam os guardiões para poder cometer o delito que têm por missão prevenir…
E então, estourados, lábios a arder, pernas doridas, sandálias empoeiradas, voltamos costas a Trevi, com pena, e anunciamos bem alto que não, não desejaremos uma eternidade contemplativa com vista para o que não podemos provar.
Apitam os três em uníssono, como quem diz ámen, e cai o pano na tarde romana.
O respeito pelo direito à diferença obriga-nos a todos a pensar igual?
Os temas são lançados, a grande velocidade, na nossa sociedade: poucas vezes debatidos onde devem ser; muitas vezes falados, com alguma leviandade até, nos cafés do mundo digital, onde se tornam virais.
Ao longo dos últimos anos, temos vindo a abordar assuntos muito relevantes, alguns deles quase fracturantes, numa sociedade tida como tradicional e conservadora, que permaneceu, durante muitos e muitos anos, fechada sobre si mesma e que se viu, de um momento para o outro, com um mundo inteiro de questões pela frente.
Temas como o aborto, o casamento e a adopção por casais do mesmo sexo, temas como a eutanásia, como as barrigas de aluguer, são apenas alguns exemplos das muitas questões que devem ser debatidas de forma séria.
Há quem concorde, há quem coloque dúvidas, há quem não disponha de toda a informação ou de todo o conhecimento necessário para poder opinar com conhecimento de causa mas há também quem, apesar de ter toda a informação do seu lado, simplesmente, não concorde. E estas pessoas, aquelas que não concordam, são, muitas vezes, mal tratadas e perseguidas.
Nos cafés virtuais, mas também na vida de todos os dias, ninguém se dedica a perceber a origem dos seus receios, quando é precisamente nessas interrogações que uma sociedade - que ainda está a aprender como funciona isto de ser democrata - evolui.
Qualquer de nós, para qualquer assunto, pode ser a excepção para determinada regra. É, por isso, importante dar voz a todos e a todos dar a oportunidade de pensar e dizer o que, concretamente, pretendem transmitir, sem qualquer tipo de represália, sem qualquer tipo de receio, sem qualquer tipo de censura.
Hoje, se quisermos pertencer ao grupo dos fixes, os tais que, nos cafés virtuais, se sentam na mesa do fundo a fumar cigarros e a beber café, a nossa opinião tem que ser a favor do ciclo da sociedade. Caso contrário, somos recambiados para o galão fraquinho e para a torrada com pouca manteiga.
Estamos muito sensibilizados quanto às questões das minorias e, de repente, toda e qualquer opinião passou a ser imposta às maiorias. Impingimos as nossas crenças e os nossos valores, forçamos a igualdade na forma de ser e na forma de estar e, pior, caminhamos para impor a igualdade de pensamento!
No final do dia, a perseguição é feita ao homem pelas suas ideias e eu concluo sempre: tanto queremos respeitar o direito à diferença que obrigamos todos a pensar igual.
Três poemas
O que tenta ensaiar esta beleza
na sua violência prematura, nas linhas do seu submundo.
Observo-a como um guarda nocturno
numa fábrica de relógios, procuro-a
com uma fome que me isola de mim. E os vidros e as vidas
desta fábrica tornam-se um sequestro da mesma realidade
que entre o futuro e o futuro do futuro
espreita o cruzamento de todo o tempo.
Sob a estrela cadente o céu atravessa todos os nomes,
não sei se faz vento interior ou sobram átomos
de matérias que procuram a inutilidade das coisas.
Escuto uma lua de açúcar pela garganta das nuvens,
não estou do lado de fora da memorização da espera
e do eco soterrado de um pó evanescente.
Que membros húmidos recebem o hálito do caminho,
que vertigens sobre o torpor das janelas.
Sinto a eficácia mecânica das emoções,
cada sintonizador absorvendo os limites
de uma fissura de luz.
....................................................
O que se descreve é como cotovelos no parapeito,
pode ser tão sombrio
quanto uma interrogação em círculo,
tão viril quanto este caminho mau,
tão minucioso quanto esta perspectiva não infinita.
E onde começa o esquecimento
termina o que a ilha de sono denuncia,
o que o intervalo do vento alcança
quando descende do infindável
onde tudo é calmo e sereno.
E então, que te administrem menos memória,
a ti cujos olhos abrangem
um botão que te desperta do que pensas ver em voz alta,
do que se transforma como um eco
exactamente igual a ti.
....................................................
Talvez tenha faltado ao meu próprio encontro,
e na dor que persiste sinto naturalmente
os últimos suspiros do crepúsculo nos primeiros arrepios da madrugada,
um cutelo na memória, a porta que bate com estrondo,
um relógio com tentáculos,
por vezes estranhas figuras que nascem e desaparecem,
deixando as metamorfoses da sua ilusão e realidade.
Pois nesta dor que persiste sinto naturalmente
todos os cheiros do céu e dos astros, o canto de um galo,
apertos de mão numa fogueira extinta,
eixos de uma dúvida incapacitante.
Mas não me coibo de pensar o que seria de mim
se não tivesse faltado ao meu próprio encontro,
se não seria agora uma retórica feliz na praia,
uma estrela em movimento sobre o mar,
os pulmões de milhões de seres,
um rio escondido na extensão dos cabelos.
A primazia do individual sobre o colectivo
A esquerda encontra no Estado resposta para todos os problemas, aumentando sucessivamente a carga fiscal em nome do chamado Estado social, deixando os cidadãos sem metade do salário supostamente para garantir serviços de saúde e educação tendencialmente gratuitos, mas os portugueses continuam a gastar boa parte da outra metade do salário, precisamente em despesas com saúde e educação. Pelo meio vão atendendo aos interesses corporativos instalados, garantindo a chamada paz social, que não serve a todos, mas satisfaz os que têm capacidade de encher as ruas, berrando de megafone em punho.
Alguns radicais culpam o capitalismo e reclamam ainda mais Estado, para colmatar as insuficiências do sistema. Outros mais cínicos afirmam ser possível reformar, mas se cortam um imposto para efeitos propagandísticos ou satisfação da clientela, logo em seguida sobem outro, enquanto aumentam alguns cêntimos pensões e salários, procurando conquistar votos, mas no final o resultado líquido é sempre o mesmo, dívida e carga fiscal não param de crescer. Como se não bastasse, o Estado ainda serve para albergar familiares, amigos e correligionários políticos, auferindo salários acima da média e boa parte deles com emprego para a vida garantido. Enquanto o contribuinte tiver alguma disponibilidade no bolso, imaginação não faltará aos parasitas.
Seria suposto o Estado garantir segurança aos cidadãos, mas sobre isso estamos à partida conversados, viu-se agora no Verão o resultado dos incêndios, deixando a nu as ineficiências do Estado.
Em matéria de segurança criminal e justiça ainda é pior. Vários complexos típicos da esquerda tendem a desculpabilizar ou mesmo justificar comportamentos criminosos individuais. Acresce a tudo isto um sistema judicial moroso que ninguém ousa reformar, tornando Portugal um case-study. A memória do Estado Novo ainda não se apagou e há quem pretenda confundir autoridade das forças policiais com repressão. Falam em combater a corrupção, mas comparem o tempo que os EUA precisaram para julgar e condenar Madoff com o tempo que Portugal precisa para sentar um banqueiro ou político no banco dos réus. Apenas infracções de trânsito e evasões fiscais são tratadas de forma célere, muitas vezes demasiado céleres, sem garantir os direitos de defesa, tudo o resto é moroso.
Todos concordam na necessidade de descentralizar, aproximar os centros de decisão política dos cidadãos, mas ninguém ousa reformar de forma séria o mapa autárquico. A redução do número de freguesias foi imposta pela troika, ou não teria avançado, o número de municípios permanece intocável e se forem mexer será para aumentar. A não ser talvez, que num futuro não muito distante, Portugal seja obrigado a solicitar novo resgate. Porque há nos partidos militantes a precisarem de emprego como presidentes de câmara, vereadores ou assessores e mais alguns ainda para trabalhar nos diferentes serviços municipais.
Tenho para mim que num país da dimensão de Portugal bastariam cem municípios e talvez umas mil freguesias. Mas alguém acredita que será possível reformar profunda e eficazmente o Estado sem enfrentar uma contestação brutal? Basta encerrar um Tribunal, serviço de hospital, estação de correios ou balcão da CGD para se instalar a berraria.
À direita, em bom rigor poucos se assumem como direita, a maior parte dos políticos nessa área dizem-se sociais-democratas ou democratas-cristãos, para atrair votos da esquerda moderada, o que até não está mal de todo, uma vez que instalados no poder fazem exactamente o mesmo que os socialistas, mas sem contarem com a benevolência de boa parte das redacções nos media ou das corporações. No fundo são versões light do socialismo.
Liberal na economia, conservador nos costumes, ultimamente em Portugal alguma direita traça este auto-retrato. Alguém que pretenda para si Liberdade mas não a conceda aos outros será seguramente um hipócrita, sabendo à partida que da esquerda não se pode esperar muito nesta matéria. É triste constatar que da direita também não.
O nazismo é proibido ou tendencialmente silenciado ao contrário do comunismo. Num contexto de atentados terroristas de inspiração islâmica, não falta à direita quem pretenda colocar barreiras à imigração. Quanto a mim todas as ideologias e religiões devem ser permitidas e toleradas. Pouco me importa que defendam Hitler, Estaline ou Mao. Que adorem Alá, Jesus Cristo ou até o Diabo se preferirem. São os comportamentos criminosos, individuais ou de grupo que devem ser perseguidos e reprimidos, nunca a convicção ou pensamento. A Liberdade tem essa superioridade moral: quem verdadeiramente a ama e pratica, defende-a até dos que pretendem suprimi-la.
Também não me revejo nos que à direita se dizem liberais na economia, mas defendem subsídios para a tourada em nome da tradição. Não gosto dos anti-tourada, aliás, não gosto dos anti seja o que for, a tourada existe e deve existir enquanto existirem espectadores. Qual a moral de criticar um subsídio para o cinema, teatro ou qualquer actividade que a esquerda habitualmente considera de interesse público, mesmo que não interesse ao público, forçando que todos a paguem e depois fazer exactamente o mesmo? Não se pode defender o mercado e apregoar suas virtudes apenas às segundas, quartas e sextas.
Se a Liberdade é virtuosa, porque terei que continuar aceitando que o Estado defina as substâncias que posso ou não consumir? Os efeitos do álcool são assim tão diferentes da cannabis ou mesmo cocaína? Conduzir sob efeitos que limitam o comportamento será diferente, porque não somos da via, apenas a partilhamos com outros, fora disso cada um tem o direito de fazer o que quer. Até porque já o faz. Hipocritamente os governos combatem e proíbem a droga, mas alguém que pretende consumir determinada substância não a consegue adquirir?
O comportamento sexual de cada um é com cada um. Não quero saber da conversa da esquerda reivindicando direitos para grupos específicos, gostaria sim de ver os que se dizem liberais defendendo a Liberdade plena de todos os indivíduos. Porque a questão de fundo é a primazia do individual sobre o colectivo. A esquerda funciona numa lógica grupal, colectiva, por isso amarra pessoas a rótulos, os conservadores fazem o mesmo, apenas consideram existir grupos bons e grupos maus, oferecendo à esquerda os votos da causa. Esquecem ambos que os direitos não são colectivos, mas individuais.
O insuportável politicamente correcto deve ser combatido porque configura a perda da Liberdade, da individualidade, pretende impor à sociedade uma normalização que por vezes até a faz parecer um rebanho. Nada de novo, o velho socialismo sempre colocou o colectivo acima do indivíduo, obtendo o desastroso resultado que todos conhecemos.
A esquerda não pode ser combatida apontando os seus erros e incompetências, mas defendendo a Liberdade em todas as suas vertentes. Ao contrário do que alguma direita defende, não se podem abrir excepções: a Liberdade precisa ser total e não condicional.
Religações
Tenho um cinto de couro que comprei há anos, e tenciono usá-lo até que se gaste e morra de morte natural. Tenho um único cinto; tal como só tenho um par de óculos de sol, um relógio (que não uso), uma gabardine, um guarda-chuva, uma carteira, uma mochila, umas havaianas, um cartão de telemóvel e um carregador de bateria. Não vejo necessidade de acumular acessórios de difícil arrumação e utilidade duvidosa. A ideia de «ir às compras» aborrece-me. Se quiserem torturar-me, convidem-me a passear num centro comercial, em demanda de roupas ou sapatos, e peçam-me opinião sobre a matéria. Em menos de cinco minutos, simularei um ataque de hipoglicemia e sairei da terceira loja com ar desvairado.
No último inverno, a presilha soltou-se. Deixei a coisa andar, até que o cinto se começou a parecer com a orelha caída de um basset hound, e achei por bem impor limites à minha preguiça. Procurei um sapateiro e perguntei-lhe se o paciente tinha conserto. O homem, já velhote, disse que sim, que não era grave. Pegou em agulha e linha e pôs-se a coser a presilha, cheio de paciência e vagar.
Fazia frio. Começámos a falar sobre comida, para aquecer a alma. Ele contou-me do bife que dava para quatro pessoas, e que a mãe dele desfiava num arroz malandrinho, apaladado com salsa picada e cenoura às rodelas. Eu contei-lhe do rancho que se fazia em casa da minha avó materna, um rancho como nunca mais provei, com bofes e tudo. Então, ele levantou os olhos e perguntou:
— A menina é do norte?
— Sou. Como é que sabe? Não tenho sotaque.
— É que só lá é que se diz «bofes»...
— ... e se tratam as senhoras por «menina».
Continuámos a conversa, agora estreitada por laços geográficos. Ao nosso lado, as pessoas entravam e saíam, na voracidade das manhãs urbanas, inquirindo os preços das palmilhas, duplicados de chaves, tacões e meias-solas. Aconcheguei-me no conforto de uma certa invisibilidade temporária.
Quando acabou o trabalho, entregou-me o cinto: «Está pronto.» Não aceitou dinheiro. Insisti, sem sucesso. Despedimo-nos com um sorriso, desejei-lhe um bom dia e agradeci-lhe outra vez.
Saí para a rua e atirei-me ao frio como gato a bofe, corajosamente. Tenho a certeza de que o resto do dia me correu bem. Sentia-me animada, grata, ligada ao mundo por um encontro generoso. Registei tudo no meu caderninho preto, cujo título é: «Primeiro a bota, depois a meia» (um dia, também vos conto esta história).
O cinto ainda vai durar mais uns anos, aposto. A memória deste encontro durará muito mais. Não é uma opinião, é um sentimento.
Rosas do abismo
Parece que a nova moda entre uma certa inteligência nacional é espalhar a ideia, não só de que Portugal é um país racista, mas também que toda a sua História é uma expressão antiga, intemporal, desse racismo.
Este ataque ao carácter da Nação e ao seu legado é uma forma de revisionismo, de falsificação histórica e ocultação, que pretende apagar da memória colectiva, principalmente da que servirá as novas gerações, o verdadeiro sentido do projecto Português no mundo e os pilares da sua identidade. Pretende, no fundo, armadilhar o futuro, esvaziando o céu de uma terra que há muito perdeu o chão.
Nenhuma das grandes nações da História está isenta de erro e a evolução da Humanidade sobre o planeta tem sido feita à custa de conquistas, de desastres, de luta pela sobrevivência ou pelo poder, de busca da Paz ou da guerra. Mas o contributo dado por Portugal, ao longo de toda a sua História, para a aproximação dos povos, para o conhecimento do Homem pela descoberta do Outro, ficou bem expresso na saga dos Descobrimentos, quando o nosso país liderou um movimento civilizacional de amplitude global, que permitiu a expansão do mundo sobre si mesmo e a abertura de horizontes com os quais a humanidade não sonhava.
O Projecto Áureo português foi bem mais do que a construção de um simples império colonial. Ele representou a expressão plena de um universalismo afectivo e de uma Alma infinita que se contemplava a si própria em qualquer lugar da Terra, do Brasil à Índia, do Tibete a Timor. E ainda que a força do poder e o poder da força tenham muitas vezes sido usados nos diferentes alhures onde chegou a ânsia de conquista - que mais do que do outro, foi a ânsia de conquista de si próprio - o que nesses lugares deixámos de mais importante, porque mais vivo e vivificante, foi a marca indelével de uma comunidade de afectos reunida em torno de uma utopia espiritual. Por isso há hoje portugueses espalhados por todo o mundo. Portugueses de todas as cores, de todas as raças e línguas, de todos os credos e nações. Por isso hoje a Esfera Armilar permanece na bandeira que nos representa, como símbolo de uma vocação fraternal perene e tradução oculta de um lema que fez de Portugal e dos portugueses dignos capitães de uma saga maior, em busca da Verdade, da Justiça e da Paz (Aleph, Daleth, Shin).
Por isso também resiste nos atlânticos Açores a Ave encimando a esfera do Mundo, sobre a Coroa do seu Imperador - a Criança ou o Pobre - trazidos como luz eterna à noite escura do século pela Rainha da Rosa e pelo Rei que nos lavrou na Alma um destino tanto mais belo quanto incompreensível e sofrido. Sabeis novas do meu amigo? Ai Deus e o é?
Vive em todos os povos, porque é constitutivo do humano, a chaga do preconceito, da ignorância e do temor ao outro. Mas poucos foram esses povos, ao longo de séculos e séculos de desventuras, que como os portugueses buscaram nesse outro a razão de si próprios, vendo neles, reflectida como num espelho, a inocência de um Império intraduzível, sem espaço nem tempo, cujo monarca único é o Amor.
Não. Portugal não foi, não é e não será, por muito que os seus detractores o tentem impor, um país racista. Dorme, é verdade, um sono de morte. Um sono fundo, comatoso, povoado de sonhos lúgubres e dantescos, onde ladrões e necromantes dançam e riem em torno dos círculos infernais. É verdade que Portugal é hoje um espectro, uma sombra, um esquecimento. Mas brilha teimosamente no peito desse espectro "uma pequenina luz bruxuleante", um vestígio tenaz da sua Alma Eterna que será, se assim Deus o quiser, quem iluminará o caminho da noite e encherá de rosas o abismo.
Em Setembro...
O que diria Raul Brandão, se voltasse a este mundo, e visse os queridos lisboetas incomodados com tantos turistas?
São euros, senhores, são "euro milhões"...
Foi este escritor tão realista como lírico que me ajudou há alguns anos a descobrir o significado da expressão "vai-te embora ó mês de Agosto".
Era uma expressão lá muito de casa, dita pelo meu pai, quando havia alguma contrariedade ou alguém o aborrecia.
Estamos situados na Figueira da Foz, cidade-mãe da que foi considerada, até fins dos anos 70 do século passado, Rainha das Praias de Portugal, praia da Claridade.
Raul Brandão mostrou-me o caminho. Escreveu que considerava os figueirenses pouco hospitaleiros e arrogantes para com os veraneantes, por lhes ocuparem os espaços de casa, pois ao alugar iam viver para anexos, a ocupação de ruas, cafés e esplanadas e tudo o mais que alimenta uma estância balnear e os levava a expressarem-se dessa maneira.
Junho, Julho e Agosto eram plenos, Setembro trazia os banhistas de alforge, que pela sua simplicidade não traziam mal ao seu "mundinho". (Conhecer a Figueira do século passado é uma riqueza no maravilhoso livro de Jorge de Sena "Sinais de Fogo").
O ADN dos habitantes de uma região é para a vida... Não deixa de ser estranho que os figueirenses, ainda hoje, continuem a pensar da mesma forma, mas em escala menor, na proporção dos banhistas que recebem, que são muito menos, oriundos de Coimbra e Beira Interior, nostálgicos de um passado que também foi meu, mas não pratico e resumido ao mês de Agosto.
Outrora, alugar casas três meses seguidos era a verdadeira "almofada de conforto" numa cidade de turismo e pesca.
As boas vias de comunicação permitem que as pessoas façam praia e voltem a casa. Mais baratinho...
Bom, este é um "delito de opinião"... que faz de mim uma filha esconjurada pelos detractores da cidade.
Eu continuo a dizer "vai-te embora ó mês de Agosto", mas porque gosto muito de Setembro.
Não é feliz? Ai que horror!
Vivemos numa espécie de Síndrome de Felicidade, em que o êxtase com o que somos tem de estar sempre num qualquer pináculo de satisfação que pouco se entende.
Quando era miúda não havia redes sociais. Quando só tínhamos quatro canais e a TV por cabo era um privilégio de muito poucos, nesse tempo não se falava de felicidade. Não havia questionários com o nível de felicidade. A publicidade não vendia a bendita de forma tão explicita e nós também não nos preocupávamos tanto com ela.
A vida vivia-se com o que existia. Todos sabiam que havia momentos do “tem de ser”, em que a felicidade está tudo menos presente; os momentos de castigo, os de insatisfação, os de inveja, os de ciúme, os de levar uma lambada na cara e engolir o choro acompanhado de lágrimas fingindo não ter sentido nada. Depois existiam os momentos em que estávamos contentes.
Hoje a felicidade é um objectivo, um projecto, um “goal” (para os que preferem em inglês). Ser feliz é para alguns uma opção, uma escolha. A mim parece-me que aquilo que me tentam fazer assimilar se parece cada vez mais uma obrigação. Sorrir, mesmo em dor.
Parece que todos temos de estar sempre a encontrar motivos para esfregar felicidade em face alheia. Sobrando-nos os momentos do sofrimento colectivo, aqueles em que se colocam sinais de luto no Facebook por conta de uma tragédia nacional. Ou aqueles em que mostramos enraivecidos porque um país alheio escolheu mal o seu presidente.
De resto, tudo no nosso pequeno mundo corre na perfeição, afinal de contas depende apenas das nossas escolhas e da nossa vontade. As restantes frustrações são apenas histórias mal resolvidas.
Jamais no tempo de minha mãezinha alguém se lembraria de querer validar a qualidade do valor do leite que vendia pelo nível de felicidade das vacas. Hoje, uma conhecida marca de lacticínios usa exactamente esse rótulo para garantir que o seu produto é o melhor do mercado.
Pergunto-me quem terá feito o questionário às vacas. Penso cá com os meus botões se alguém enviou por e-mail um questionário, ao estilo Marktest, daqueles com mais de 50 perguntas, para que as vacas fizessem uma avaliação ao seu nível de felicidade. Mais uma vez, para quem prefere estrangeirismos, a vaca faria um “assessment”.
A vaca, depois de um dia a dar leite a troco de um fardo de palha, abre o e-mail e depara-se com cinco dezenas de perguntas às quais deve responder de: “mu” a “muuuuuuuuuuuuuuu”, sendo que “mu” corresponde a “discordo completamente” e “muuuuuuuuuuuuuuu” corresponde a “concordo completamente”.
A felicidade serve para vender tudo, até correntes banhadas a ouro com uma pedra pendurada na ponta.
Quando ouço alguém afirmar que a felicidade é uma escolha dou comigo a ruminar: “como será a vida desta pessoa? Que raio de obstáculos terá encontrado?”, é provável que poucos, é possível que nenhuns, ficando no fim da linha a hipótese de ter encontrado uma qualquer espécie de life coach (que são aquelas pessoas que para aí andam a ensinar os outros a viver) que lhe deu a receita mágica.
Mas não há nada como olhar para um caso prático. Concordam?
Olhemos então com atenção para a Clotilde Maria.
A Clotilde Maria levanta-se às 5:30 da manhã, come qualquer coisa sem lacticínios e sem glúten. Tira o pijama apesar do frio e veste o equipamento de corrida. Quando saí à rua está um frio de rachar, sente-se tentada a voltar para a cama, mas ontem, sob o sentimento de “motivada” tinha já dito no Facebook que hoje corria logo pela manhã. No fim do seu texto inspiracional estava um #noexcuses.
Ao fim de 3 km já estava arrumada mas castigou o corpo mais um pouco, afinal de contas não se tinha esquecido de ligar a aplicação e podia publicar na sua conta os quilómetros percorridos. No fim, sem estar certa se desmaiaria ou não, publicou o feito. Uma foto do seu relógio xpto para acompanhar. Tirou várias selfies, mas desistiu, em todas estava capaz de vomitar. Assim não seria motivadora. Publicou tudo com um “a sentir-se feliz”, concluindo com um simples #nopainnogain e uma frase “vale tanto a pena começar o dia assim”. Até chegar a casa recebe pelo menos 10 gostos das amigas que a invejam no trabalho, as mesmas que lhe passam o dia a dizer “quem me dera ter coragem”. As que ainda estarão na cama a esta hora.
O dia passa sem nada de bom para contar. Mal viu o filho pequeno que entretanto o marido já deixou no colégio. Não falou com o marido porque este tinha uma reunião cedo e correu para os transportes. O autocarro atrasou-se, o barco esteve em greve e a fila para pedir um café interminável.
Mas chegou ao emprego, ligou o computador, fez 20 gostos nas páginas das amigas e, apesar de estar passada dos carretos, publicou uma imagem retirada do Google onde dizia “a vida é feita de pequenas coisas, aproveita e sê feliz”. Recebeu 100 gostos.
O chefe disse mal do seu trabalho, perdeu dois ficheiros de Excel importantes porque o PC ficou passado, a mãe ligou-lhe a dizer que o pai estava pior, saiu fora de horas do escritório, mais greves, mais autocarros atrasados. Chegou a casa, deu um beijo no filho e foi fazer o jantar. Quando acabou de arranjar tudo para o dia seguinte o filho já tinha adormecido no sofá. Deitou-o e antes de dormir publicou novamente no Facebook: “Ser feliz é a minha escolha, qual é a tua? Boa noite”.
Adormeceu a chorar.
Alcançar um momento de júbilo, daqueles que recordamos em velhos, nos serões com amigos, ou já caquéticos no lar, deixou de ser algo que sentimos porque um conjunto de variáveis da vida assim o proporciona. Passou a ser algo que depende inteiramente de nós, independentemente do que a vida nos oferece. Transformou-se num estilo de vida. Uns são budistas, outros são católicos, mil outras religiões e crenças, e depois há os felizes.
Às vezes imagino que quando adormecemos um qualquer neurónio, chefe do gabinete da felicidade, manda chamar todos os outros e, enquanto vira as páginas do seu flipchart, demonstra a evolução que estão a fazer. Ameaça de despedimento os neurónios insatisfeitos e promete promover os que a procuram com verdadeiro empenho.
Há uns meses ouvi uma citação fantástica que sou incapaz de reproduzir mas que, em suma, pretendia transmitir o seguinte: quanto mais perseguimos a felicidade, menos a encontramos. E eu, que escrevo neste blog com nome choninhas, cada vez mais compreendo esta realidade.
A felicidade é um lugar que encontramos a espaços, são momentos, episódios, circunstâncias. A felicidade é a primeira palavra de um filho, uma manhã sem preocupações, uma tarde de sol na praia enquanto os miúdos correm na areia. São coisas pequenas, comuns, que de tão banais parecem poder ser orquestradas, planeadas, mas não podem. A felicidade nasce da espontaneidade do momento e fica gravada na nossa memória.
Antes de ir pregar de volta para a minha freguesia, deixo ainda a entrevista feita por um programa alegre à Cláudia Marisa, uma eterna infeliz, só Deus sabe porquê! Já que a apresentadora não entende.
Boa tarde a todos, estamos aqui esta tarde para falar com a Dona Cláudia Marisa que nos vem falar um pouco sobre si a propósito de nada, tínhamos de encher o programa com conteúdos.
(risos forçados)
- Boa tarde Cláudia Marisa.
- Boa tarde.
- Então conte-nos um pouco sobre si. É uma mulher feliz?
- Não. Por acaso não sou.
- Não é feliz? Aí que estranho! Mas então porquê?
- Bom, perdi toda a minha família. Os meus pais morreram num acidente de viação e eu fui entregue num orfanato. Quando fiz 18 anos saí e fui trabalhar para ter dinheiro para alugar uma casa. Conheci o meu marido nessa empresa. Casámos. Estávamos felizes...
- Então quer dizer que já foi feliz? Porque não está agora?
- Porque o meu marido teve um acidente de trabalho e morreu.
- Como assim? Conte-nos tudo.
- Deixaram que lhe caíssem em cima várias paletes de latas de salsichas.
- Que horror. Essa empresa funcionava mal em termos de logística.
- Por acaso não. O meu marido não devia estar lá. Descobri depois de ele morrer que me traía com a Jacinta da charcutaria. Estavam a encontrar-se escondidos nesse momento quando as paletes lhes caíram em cima. Ficaram juntos para sempre.
- E depois?
- Depois descobri que estava grávida. Mas perdi o bebé com o stress. Voltei a estar sozinha.
- Mas tem amigos e amigas certamente...
- Não, as pessoas tendem a afastar-se de quem tem muito azar. Gostam mais de pessoas felizes e que atingem objectivos.
- Se calhar a Cláudia Marisa tem pensamentos negativos. Tem, Cláudia, pensamentos negativos? Ou consegue olhar para a frente e ver um futuro brilhante?
- Choro muitas vezes a pensar no que me aconteceu.
- Pois é isso. É isso que impede a sua felicidade. Está tudo na sua mente. Já experimentou mindfullness?
- Não sei o que é. É algum tratamento?
- É um estilo de vida.
- Certo.
- Vai ver que se se encher de força de vontade vai ser feliz.
- Descobri que tenho só tenho seis meses de vida.
- Ora que chatice. E o que é que fez em relação a isso?
- Estou a ser acompanhada por um excelente médico num hospital público.
- Publico, disse?
- Sim.
- Hummm. Já experimentou deixar o glúten e os lacticínios?
- Não.
- Pois. Olhe que pode ser isso.
Entretanto alguém fez sinal, o tempo estava a acabar. Terminaram o programa com um “até a amanhã e não se esqueçam de ser felizes”.
As luzes apagaram-se, a Cláudia Marisa voltou para a sua miséria, sobre a qual havia de optar ser feliz. A apresentadora seguiu com os seus compromissos e as suas publicações nas redes sociais; aquelas cujas fotos foram tiradas – sem querer – por um fotógrafo profissional, num momento de profundo júbilo, enquanto corria à beira-mar, ainda maquilhada e com roupa sem um pingo de suor.
O momento certo
Há cerca de um ano tive um contratempo com alguém da blogosfera, a propósito de um e-mail que me enviou, e a que não respondi porque a minha frequência no Sapo Mail era praticamente zero. Desde então tento ler, diariamente, a correspondência que recebo. São, maioritariamente, comentários/respostas aos posts.
Hoje, final da tarde, dei uma vista de olhos ao correio e, de repente, um nome que conheço da blogosfera chamou-me a atenção. Reparo no assunto.
Se os meus olhos ficaram petrificados, o meu coração bateu forte com a surpresa do conteúdo.
«Porquê eu?»
«E agora?! O que vou fazer?»
Sem a miníma ideia sobre a volta a dar ao assunto, sem conseguir perceber o que levou tão distinta pessoa a fazer-me um convite destes, estava a minha cabeça confusa e os meus olhos liam e reliam o pequeno texto.
Não tinha palavras nem dedos que me levassem ao teclado para dar-lhe uma resposta.
Pensei procurar textos no meu blog que me dessem ideias. Não queria decepcionar este senhor.
Foi então que me lembrei de cumprir o desafio que eu própria lançara a alguém, há algum tempo, e que não cumprira porque estava sem ideias.
No ambiente de trabalho do computador, procurei o documento que guardara para o reler e retribuir no momento certo.
Abri-o e li.
Num desabafo (assim o interpretei), o autor do texto transmitia alguma nostalgia de escrever no papel, à moda antiga, de corrigir os erros manualmente, o que a tecnologia agora faz por si.
E fazia a comparação entre o texto publicado, escrito no teclado, sem erros e perceptível, com o original, manuscrito, que vai “esgalhando”, de modo a chegar assim ao leitor.
Os puristas vêem a escrita no teclado como um retrocesso, porque assim não se tem consciência da passagem das ideias do papel para o monitor. Isto levou-me a verificar de que modo a minha escrita no computador e a manuscrita seriam diferentes também.
Peguei no papel e na caneta. Escrevinhei o que me veio à mente.
Risquei, rabisquei, rasguei folhas.
Confesso que senti alguma dificuldade em escrever uma frase.
No teclado, os dedos chegam lá com destreza e os olhos detectam os erros. Percebemos que as ideias estão mal definidas, apagamos, corrigimos, acrescentamos, copiamos, colamos. Perdemos consciência do valor que as rasuras, os rabiscos, o pensamento e as emoções que transmitimos ao papel têm tanto na escrita como na nossa vida.
Isto fez-me voltar atrás no tempo. Foram muitos os manuscritos que guardei nas gavetas físicas das minhas memórias: os de amor, os de família, os de amigos, os do simples prazer de escrever.
No teclado do nosso computador escrevinhamos uma frase, um sentimento, uma opinião, um conceito. E esquecemos.
É como as fotografias. Com as novas tecnologias, deixámos de gravar no papel, de pôr na moldura que decoraria o móvel da sala aquele momento especial. Ficam arquivadas nas muitas pastas do computador até ao dia em que nos lembramos de reviver aquela viagem, aquele dia, aquele momento.
Acabo este este texto com a mesma frase/pensamento que o autor “esgalhou” no seu: “Com os actuais processadores de texto, deixei de ter passado."
Pequeno devaneio outonal em pleno Verão
Embora partilhem a mesma melancólica serenidade, gosto mais de pensar num cemitério como uma espécie de alfarrabista do que num alfarrabista como uma espécie de cemitério, preferindo assim, em ambos, vestígios de vida onde tudo está feito para que prevaleça a morte. É verdade que as prateleiras do alfarrabista mais parecem campas de autores, de títulos, de editoras, ou mesmo de aristocráticos jazigos do que foram outrora valiosas e luxuosas colecções, e que hoje, quando só há tempo para a mais fugaz novidade (dizer “escaparates” nunca foi tão apropriado), jazem, ignotas, na mais desconceituada escuridão, da qual apenas uns bibliófilos ousam resgatar. Mas por muito anémicas, tísicas ou aneurismadas que estejam pelo tempo, basta um par de olhos que saibam ler para os ressuscitar, ainda que como mera curiosidade histórica ou estética. Ora, o mesmo pode acontecer num cemitério. Não com os seus moradores, que dormem o seu tranquilo sono eterno, mas com toda uma retórica fúnebre que, embalada pelo tempo, também por lá foi adormecendo.
Calhando ir a passar ali perto, resolvi entrar no cemitério da Lapa, mesmo ao lado da igreja onde repousa o liberal coração de D. Pedro IV, para um segundo abraço ao venerável Camilo, durante o qual pressenti de novo o seu lamento por ter aquele ignóbil músculo como vizinho, em vez do irmão inteiro, cuja companhia preferiria. Ter, em pleno mês de Agosto, e num dia em que outras zonas do país iam ardendo sob um Sol impenitente, manhã tão fresca, ainda para mais coberta por um romântico nevoeiro e salpicada por uns inofensivos pingos de chuva, é um luxo meteorológico que não iria desprezar, aproveitando-o para um higiénico e não menos pedagógico passeio de moderno flâneur por aquela ilha de pedra transformada em alfarrabista para quem o procurar.
Só a título de exemplo, veja-se a frase inscrita no túmulo do pintor Silva Porto. Por muito que seja o respeito perante uma ilustre figura que hoje parte, já não é possível uma dedicatória como esta, sendo por isso, letra morta:
Como será impossível, num tempo em que muitos alunos nem sabem os nomes dos professores (são o stôr de Matemática, a stôra de Inglês) esta dedicatória ao antigo professor:
Ou ainda esta informação prestada pelos filhos da baronesa de Fornelos sobre o pedido da mãe relativamente à sua última morada:
Como tantos livros que jazem nas prateleiras dos alfarrabistas, também já ninguém escreve sobre a pedra textos como estes para homenagear os mortos. Não porque não se queira, em virtude do nosso livre-arbítrio, mas porque não se pode. Tal como na Literatura. Sendo a língua a mesma, a portuguesa, poderíamos escrever romances como Herculano ou Camilo, lado a lado com os de Lobo Antunes ou Saramago, ou poesia como a de Maria Browne, João de Lemos ou Bulhão Pato com a mesma naturalidade com que o fazem Ana Luísa Amaral, Nuno Júdice ou José Miguel Silva. Mas não o fazemos pela mesma razão que não vestimos as suas roupas, não partilhamos a sua sensibilidade moral, não usamos as mesmas expressões ou gestos quotidianos: o tempo, essa camisa de forças que nos prende a uma época, não o permite.
Mas uma coisa é escrever, outra será ler. Se os museus continuam cheios de pintura que já ninguém pinta, se continuamos a ver filmes antigos que já ninguém realiza, se podemos apreciar vestuário antigo que já ninguém veste ou gostar de conhecer usos e costumes que ninguém segue, por que razão temos mais dificuldade com textos velhos? Talvez por falarmos ou escrevermos diariamente com a mesma naturalidade com que respiramos, acabamos por sentir mais o peso da sua antiguidade, a qual, instintivamente, rejeitamos no nosso quotidiano. Olhamos para uma pintura do século XVI ou para um filme mudo dos anos 20, e apesar de já não fazerem parte do nosso quotidiano, não relutamos em aceitá-los, sem que isso cause a menor estranheza. Porquê? Cá está, precisamente por já não fazerem parte desse quotidiano, permitindo uma margem de segurança que nos dá liberdade para gostar deles, sem medo de cairmos no ridículo.
Com a palavra, é muito mais difícil. Mas isso não é justo e nem sequer faz sentido. Gostar de ler Camilo ou Maria Browne não significa ser como eles do mesmo modo que gostar de ver dedicatórias antigas não quer dizer que um dia as façamos iguais. Acontece apenas que não há melhor porta para entrar num espírito antigo do que a palavra. A palavra não tem matéria, forma ou cor como a que vemos num vaso grego, num vestido renascentista ou numa escrivaninha do século XVIII, sendo também por isso que é através dela, seja num alfarrabista de papel ou de pedra, que as almas ainda vivas melhor entram na textura espiritual das que já o foram, resgatando-as mais uma vez da morte.
José Ricardo Costa
(blogue PONTEIROS PARADOS)