Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (3)

Cristina Torrão, 17.01.25

A Cavalo Tag 13 3.jpg

Chegada a Krefeld, depois de vinte e um dias de viagem e quase 570 km percorridos, Jette deixou a Pinou bem entregue e descansou três dias, alojada em casa de um tio. O namorado foi ter com ela. Na bagagem, trazia uma ração especial para a Pinou, própria para cavalos sujeitos a maiores esforços.

Jette e Pinou bem precisaram de todos os confortos proporcionados por esta estadia. Ao retomarem a viagem, a 1 de Outubro, tinham a Eifel pela frente, uma cordilheira montanhosa, na Renânia-Palatinado, que se estende por 5300 km², entrando na Bélgica e no Luxemburgo e atingindo, no seu ponto mais alto, à volta de 750 m.

A Cavalo Tag 35 3.jpg

Não eram apenas os montes a tornarem custosas as etapas. Os dias eram já curtos e o tempo mudou, tornando-se frio e chuvoso. Por vezes, chovia um dia inteiro. Nas pausas, para comer a merenda, Jette abrigava-se debaixo de uma árvore. E nem sempre encontrava quem lhe cedesse um quarto para dormir.

A Cavalo Tag 33 1.jpg

Pernoitando na tenda, com temperaturas entre os 0ºC e os 4ºC, Jette tinha frio, apesar de se deitar vestida com calças de ski e de cobrir o saco-cama com uma manta da Pinou, feita de pêlo de ovelha. Por vezes, tinha de montar a tenda em relvados totalmente alagados. Deste modo se apresentavam igualmente muitos caminhos, obrigando-as a fazer grandes desvios.

A Cavalo Tag 36 1.jpg

Havia dias em que só avançavam 18 ou 20 km. Cheia de andar à chuva, Jette começava a procurar alojamento pelas duas e meia da tarde. E, caso só lhe restasse dormir na tenda, a preparação da viagem, no dia seguinte, era penosa, debaixo da chuva. Jette sentia pouca motivação para continuar e demorava uma eternidade até ter tudo pronto, só arrancando pelas 11 horas.

A Cavalo Tag 33 2.jpg

A jovem começou a duvidar se devia prosseguir. Sempre soube que ia deparar com dificuldades, mas seriam estes desafios extremos boas lições de vida, ou contribuíam apenas para a deprimir? Sentia muita falta do namorado, da família e de uma rotina caseira. Não saber, dia após dia, onde e como ia passar a noite, era psicologicamente exaustivo. E parecia-lhe que as mudanças constantes esgotavam também a Pinou. A todo o momento, poderia solicitar ao pai que a fosse buscar de carro, trazendo um atrelado para a égua. Acabaria por o fazer?

A Cavalo Tag 36 2.jpg

Depois de dez dias de canseiras e extremo desconforto, encontrou uma pequena quinta com gente muito simpática. A Pinou teve direito a um estábulo coberto e, apesar de a família não ter um quarto disponível para a Jette, ela pôde dormir numa divisão aquecida, deitada no seu colchão de ar.

No dia seguinte, talvez notando que ela estava realmente esgotada, sugeriram-lhe que ficasse mais uma noite. Num primeiro momento, ela recusou, queria avançar. Mas mudou de ideias. Era Domingo e, se ela e a Pinou estavam tão bem instaladas, porque não aproveitar aquele dia para descansar?

A Cavalo Tag 32 1.jpg

A primeira coisa que fez, depois do pequeno-almoço, foi tornar-se a deitar. Aquela possibilidade de poder descansar, a qualquer momento, sem preocupações, fez-lhe sentir a familiaridade típica de um Domingo. Convidaram-na para almoçar e, em seguida, como não chovia, resolveu ir dar um passeio com a Pinou. Poder cavalgar, sem sujeitar a égua ao peso da bagagem, trouxe-lhe uma sensação de verdadeira felicidade.

Na segunda-feira, fizeram-se novamente à estrada. Os montes continuaram a cansá-las, mas o tempo melhorara e Jette notava que a Pinou, entretanto treinada, vencia melhor as subidas. Passado uns dias, numa outra aldeia, a jovem teve de escolher entre a tenda, ou levar o saco-cama para um antigo curral de vitelos, o abrigo da Pinou, guarnecido com feno fresco.

A Cavalo Tag 32 4.jpg

Escolheu ficar com a égua, o que se revelou a melhor solução. Durante a noite, Pinou deitou-se duas vezes ao lado dela, algo que, naquela situação, lhe deu conforto e felicidade imensos. Estabelecia-se uma verdadeira cumplicidade entre as duas, baseada, como sempre acontece numa relação entre um humano e um animal, numa total confiança mútua.

A Cavalo Tag 31 1.jpg

O saco-cama de Jette, no curral onde ela dormiu ao lado da Pinou

A jornada prosseguiu, novamente com alguma chuva. Por vezes, tinham sorte e encontravam um lugar agradável para dormir, com gente que a convidava para jantar. Outras vezes, tinham de se contentar com mais um terreno alagado, onde a moça montava a tenda, enquanto a noite se aproximava fria.

A Cavalo Tag 34 1.jpg

Jette ia resistindo, deixando a Eifel e as suas montanhas para trás, à medida que se aproximava do Saarland, onde o pai surgiria, a fim de as transportar até Espanha. Isso dava-lhe naturalmente motivação extra.

A Cavalo Tag 41 1.jpg

O pai e ela encontraram-se a 20 de Outubro, perto da fronteira francesa. A moça e a égua tinham percorrido quase 1000 km, em quarenta dias.

A Cavalo Tag 32 3.jpg

 

Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Facto nacional de 2024

Pedro Correia, 15.01.25

sns.jpg

 

CRISE NO SNS

Podia ter sido noutro ano, pois já vem de longe. A crise no Serviço Nacional de Saúde foi destacada, pelos autores do DELITO DE OPINIÃO, como Acontecimento Nacional de 2024 pelo impacto que teve junto de um número crescente de portugueses - e até de cidadãos estrangeiros residentes no nosso país. Num ano em que o Instituto Nacional de Emergência Médica teve três presidentes sucessivos.

Houve demissões em cascata de conselhos de administração de unidades locais de saúde. O Conselho de Administração do Hospital Garcia de Orta foi exonerado em Setembro. No mês seguinte, demitiram-se o director de cirurgia e outros dez cirurgiões do Hospital Amadora-Sintra. Em Dezembro, o director do serviço de urgência do Hospital São Francisco Xavier saiu a seu pedido. Já em Abril, havia saído o próprio director-executivo do SNS, Fernando Araújo.

«Se não foi fácil erguer o SNS, mantê-lo e geri-lo condignamente está a pôr à prova não apenas os governos, mas diferentes níveis de administração, grupos profissionais e  autarquias.» Observação certeira de alguém que assumiu esta opção de voto.

Outro membro do DELITO foi mais longe: aludiu a crise endémica dos serviços estatais. Especificando: «Não é só o SNS que recebemos minado: são também os muitos meses de espera por uma junta médica; os meses de espera para quem se pretende reformar; os serviços do Ministério da Educação que são incapazes de fornecer números fiáveis; os transportes públicos que continuam pouco dignos de confiança (o jornalismo não parece interessado em investigar seriamente o estado actual do Metro e da Transtejo, tendo mesmo de ser um presidente da Câmara a reportar aos jornais a bandalheira dos barcos eléctricos); as forças policiais em conflito entre si; etc.»

 

Com sete votos, apenas menos um do que o acontecimento mais destacado, foi mencionado o novo ciclo político ocorrido com as eleições legislativas de 10 de Março e a formação do executivo minoritário da AD liderado por Luís Montenegro.

«Pela primeira vez em muitos anos a esquerda é minoritária na Assembleia da República, o que coincidiu com o fim do ciclo de mais de oito anos de governação PS», observou alguém.

 

Outros factos ou percepções, cada qual com um voto. Passo a enunciá-los para ficarem lavrados em acta como sempre sucede, ano após ano, no nosso blogue:

- Aprovação do Orçamento do Estado, em 29 de Novembro, contrariando muitas previsões que davam como garantido o chumbo parlamentar deste instrumento essencial à governação do País.

- A contínua emigração de jovens, que vai adquirindo «contornos de calamidade».

- Os distúrbios nas imediações de Lisboa, na sequência da morte do caboverdiano Odair Moniz, a 21 de Outubro, por revelarem «tensões sociais e de inspiração racista que devem merecer toda a atenção».

- A queda de Pinto da Costa, «com as consequências desportivas e penais que isso implica», após 42 anos de poder absoluto no comando do FC Porto.

- A confirmação da mediocridade da elite política, «o que só agrava a resolução dos problemas nacionais».

 

Participaram na votação 18 membros do DELITO. Como sempre acontece, cada um pode votar em mais de um tema ou em nenhum, se assim o entender.

 

Facto nacional de 2010: crise financeira

Facto nacional de 2011: chegada da troika a Portugal

Facto nacional de 2013: crise política de Julho

Facto nacional de 2014: derrocada do Grupo Espírito Santo

Facto nacional de 2015: acordos parlamentares à esquerda

Facto nacional de 2016: Portugal conquista Europeu de Futebol

Facto nacional de 2017: Portugal a arder de Junho a Outubro

Facto nacional de 2018: incúria do Estado

Facto nacional de 2019: novos partidos no Parlamento

Facto nacional de 2020: o vírus que nos mudou a vida

Facto nacional de 2021: vacinação em massa

Facto nacional de 2022: o regresso da inflação

Facto nacional de 2023: queda do governo de maioria absoluta

Um exemplo que não seguimos *

Paulo Sousa, 15.01.25

Quando nos comparamos com os EUA ou os países desenvolvidos da Europa Central, encontramos vários aspectos que explicam o nosso, já antigo, atraso económico e social. Desde a Revolução Industrial que quem liderou a criação de riqueza foram os países onde existiam minas de carvão e outros recursos naturais a partir dos quais isso aconteceu. Ali, havia também uma relação diferente com o trabalho, pois as sociedades protestantes sempre colocaram mais energia na prevenção dos azares, do que as católicas que se focam mais na explicação do que não nos é favorável. O “se trabalharmos arduamente as coisas correrão bem” dessas paragens, contrasta com o nosso “se as coisas não correrem bem, é porque fizemos por o merecer”. Perante um ponto de partida tão diferente teríamos mesmo de aceitar o nosso atraso. Lá está. As coisas são como são, e por isso teríamos de as aceitar.

E é então que nos deparamos com um caso que abala esta visão que só serve para nos anestesiar na nossa resignação. A Irlanda, tal como nós, um país de matriz católica, periférico e sem recursos naturais, tem conseguido resultados económicos que, pelo menos, nos devem fazer pensar sobre as nossas decisões das últimas décadas. Em 1986, quando entramos na CEE, a riqueza criada per capita na Irlanda era cerca de 4.000 dólares superior à nossa, mas desde então, essa diferença aumentou para os 75.000 dólares. E digo, 75.000 dólares a mais, por pessoa, em cada ano.

Então, não é a Irlanda um país igualmente católico? Não é a Irlanda um país igualmente periférico? Não é a Irlanda um país igualmente sem recursos naturais? Em que é que ficamos nas comparações tradicionais? O que é que os irlandeses fizeram de maneira diferente dos portugueses? Sem mergulhar em grandes detalhes técnicos, podemos simplificar a explicação dizendo que eles foram muito melhores que nós, mesmo muito melhores, a atrair empresas e negócios. Quando o bolo é maior, há mais para distribuir e perante um bolo pequeno, é normal que se lute por migalhas. A riqueza criada numa economia funciona da mesma forma.

Por falta de espaço neste texto não irei aqui elaborar sobre a comparação das taxas de imposto cobrado a particulares e a empresas nestes dois países, mas a diferença é realmente enorme. Quem quer atrair negócios e riqueza, não deve complicar a vida às empresas, tal e qual como não é com vinagre que se atraem moscas. E a diferença na riqueza produzida permitiu que o salário mínimo irlandês seja de 2.146 euros, o que contrasta com os nossos 956 euros. No salário médio a diferença ainda nos é mais desfavorável.

As consequências destas diferenças de rendimento na qualidade de vida dos dois povos são óbvias. O nosso melhor clima, gastronomia e exposição solar não são suficientes para nos dar a liberdade de escolha que os irlandeses têm, pois no fim das contas é óbvio que os pobres são menos livres. Alcançar uma vida melhor teria sido possível, e ainda será, mas nestes anos consumimos mais uma geração a preferir almoçar e jantar ideologia. Tudo isto é muito irritante e há uma outra consequência com que, ao contrário dos irlandeses, hoje temos de lidar. Refiro-me ao peso eleitoral de um partido que na sua essência se pode descrever como um partido que atrai pessoas irritadas. O Chega irlandês nunca singrou, pois os irlandeses não querem mudar a Irlanda. Desejam apenas manter a trajectória que os trouxe até aqui.

 

* Texto publicado no jornal O Portomosense

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (2)

Cristina Torrão, 10.01.25

A Cavalo Tag 01 2.jpg

A viagem de Jette (Iéta), que se propôs ir da Alemanha até Portugal a cavalo, começou da melhor maneira, a 8 de Setembro do ano passado. Teve sorte com o tempo. Houve mais sol do que o costume e as temperaturas mantiveram-se amenas durante todo esse mês. Além disso, o Norte da Alemanha é plano, facilitando o avanço, e o alojamento estava planeado para a primeira semana.

A Cavalo Tag 05 2.jpg

A fim de não cansar demasiado a Pinou, que carregava com a bagagem, Jette não passava os dias num galope desenfreado, como gostamos de imaginar. Na maior parte das vezes, limitava-se a uma marcha lenta e descontraída. E, não raro, desmontava e caminhava ao lado do animal, guiando-o pela rédea. Fazia também muitas pausas, a fim de que as duas pudessem descansar e alimentar-se.

A Cavalo Tag 11 1.jpg

Passado uma semana, Jette tinha vencido cerca de 160 km por terrenos aprazíveis, cheios de erva fresca para a Pinou. Encontrava-se na pequena localidade de Wunstorf, no dia 15 de Setembro, e os pais e o namorado foram passar o fim-de-semana com ela.

Jette encetou a viagem na segunda-feira, mas, apesar do tempo continuar bom, caiu numa onda de tristeza, depois de ter estado com os entes queridos. Sentia, todos os dias, faltar-lhe a motivação para continuar.

A Cavalo Tag 11 2.jpg

O facto de já não ter alojamentos reservados, tornou-se, porém, vantajoso. Livrara-se da obrigação de vencer determinada distância, a fim de alcançar um destino marcado. E encontrar um local para dormir revelou-se mais fácil do que o esperado. As pessoas que Jette ia encontrando pelo caminho faziam-lhe perguntas e, inteirando-se da sua história, gostavam, geralmente, de a ajudar. Logo lhe indicavam um local, em determinada aldeia, onde ela poderia pernoitar, com estábulo para a Pinou. Essas casas de lavradores nem sempre tinham um quarto à disposição para ela, mas autorizavam-na a montar a sua tenda nalgum relvado, ou a dormir numa roulotte, caso a tivessem. Por vezes, convidavam-na para jantar.

A Cavalo Tag 16 1.jpg

A Cavalo Tag 07 2.jpg

Havia outras surpresas agradáveis. Num dia, estavam ela e a Pinou a fazer uma pausa, quando um carro parou à sua frente. Depois das perguntas habituais, Jette foi convidada a deslocar-se à quinta dessas pessoas, onde lhe ofereceram maçãs e água para a continuação da viagem. Num outro dia, passando por uma pequena localidade, viu uma gelataria e resolveu comer um gelado. Um homem abordou-a, ao vê-la acompanhada de um cavalo, e, ao saber dos seus planos, fez questão de lhe pagar o gelado, surdo às tentativas de recusa da moça.

A Cavalo Tag 12 1.jpg

Ir às compras, de vez em quando, era inevitável e, à boa maneira western, Jette amarrava a Pinou à entrada dos estabelecimentos, suscitando olhares estupefactos. Normalmente, porém, as pessoas eram simpáticas. Pediam-lhe autorização para as fotografar e algumas até se atreviam a fazer festas à égua. Nestes, como noutros casos, não lhe era possível evitar passar pelo meio das localidades. A sua presença suscitava sempre grande surpresa e interesse. Nem toda a gente a encarava satisfeita, mas não a molestavam.

A Cavalo Tag 11 3.jpg

A Cavalo Tag 20 2.jpg

A Cavalo Tag 21 1.jpg

Depois de duas semanas de jornada, e ainda na sequência da ressaca provocada pelo encontro com os pais e o namorado, Jette confessou, no seu diário de viagem (Tag 14), estar a ser extremamente cansativo. Todos os dias se tinha de adaptar a novos locais e responder às mesmas perguntas, além de se lhe depararem constantes desafios. Depois de encontrado alojamento, tinha de cumprir muitas tarefas, até poder descansar: livrar a Pinou de toda a bagagem, tratar da alimentação da égua e, por vezes, limpá-la, antes de se tratar a ela própria.

A Cavalo Tag 12 3.jpg

Por vezes, tinha ainda de montar a tenda. De manhã, em sentido inverso: desmontar a tenda, tratar da Pinou e dela, reunir toda a bagagem, selar a Pinou e carregá-la. Por outro lado, escreveu ela, era igualmente interessante conhecer locais e pessoas diferentes todos os dias. E aprendia algo a cada desafio. No fundo, era esse o sentido da viagem: amadurecer a cada nova experiência.

A Cavalo Tag 18 2.jpg

Deparava constantemente com obstáculos, obrigando-a a grandes desvios, por vezes, significando voltar vários quilómetros atrás, apenas para os recuperar em seguida. Certa vez, preparava-se para atravessar uma auto-estrada e encontrou a ponte fechada por motivo de obras. Lá lhe indicaram uma alternativa, mas também isso lhe custou vários quilómetros.

A Cavalo Tag 13 1.jpg

Numa zona de ribeiros, deu com várias pontes barradas com um pequeno poste. Tratava-se de um percurso pedonal e de ciclistas e os postes evitavam que as pontes fossem usadas por motorizadas ou outro tipo de veículo a motor. Mas impediam igualmente a sua passagem com a Pinou. E Jette pensou que uma família em passeio com um carrinho de bebé veria o seu avanço igualmente barrado.

A Cavalo Tag 25 1.jpg

Em dias de muita chuva, dava com caminhos impossíveis de serem passados devido à grande quantidade de lama. Jette receava que a égua escorregasse e partisse uma perna. Via-se constantemente obrigada a procurar alternativas à rota planeada, daí esta sua viagem ser bem mais longa do que feita pela auto-estrada, ou mesmo por uma estrada nacional.

A Cavalo Tag 10 1.jpg

Apesar de todas as canseiras e desânimos, Jette prosseguia. E, ao 21º dia de viagem, a 28 de Setembro, chegou a Krefeld, cidade de 240.000 habitantes, na Renânia do Norte-Vestfália. Jette fez quase 570 km para lá chegar. De Hamburgo a Krefeld, pela auto-estrada, são cerca de 400 km.

A Cavalo Tag 20 1.jpg

A atravessar o rio Reno numa barcaça (ferry)

 

Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas se podem encontrar no diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (1)

Cristina Torrão, 03.01.25

A Cavalo - Antes da Partida.jpg

Jette é uma alemã de vinte anos, moradora nos arredores de Hamburgo e cuidadora da égua Pinou.

Muitas meninas alemãs são fascinadas por cavalos, uma fascinação que começa pelos cinco ou seis anos de idade. As escolas de equitação proliferam e o sexo feminino está em clara maioria, tanto a nível de alunos, como de professores. As crianças mais pequenas iniciam a sua aprendizagem com póneis.

Muitas vezes, essa fascinação acaba por desaparecer na adolescência. Caso se mantenha, os pais com mais posses compram cavalos para as filhas e alugam lugares nos estábulos das escolas ou de quintas. As moças pertencentes a famílias, cuja situação financeira não permite tal aquisição, prontificam-se a cuidar dos animais e a limpar os estábulos em troca da prática gratuita de equitação.

A Cavalo Tag 04 1.jpg

Jette (pronuncia-se Iéta) trata da Pinou desde 2023. No ano passado, porém, a dona da égua resolveu mudar-se para Portugal, para os lados da Bemposta, alguns quilómetros a norte de Castelo Branco. Penso que essa senhora terá mais animais e não sei pormenores da mudança. Sei que ela não levou logo a Pinou, deixando-a num estábulo conhecido e aos cuidados de Jette, até organizar o seu transporte.

Depois de completar o liceu, Jette ainda não decidiu como continuar a sua vida. Muitos jovens alemães tiram um ano para viver no estrangeiro, ou exercer alguma actividade relacionada com serviço social, no seu país, antes de prosseguirem os estudos. Jette passou quase três meses na Nova Zelândia, no ano passado, a cuidar de cavalos e a dar aulas de equitação. E tenciona tornar a ir. Entretanto, regressada à Alemanha, no Verão, a mãe sugeriu-lhe, em tom de brincadeira: “porque não levas tu a Pinou, fazendo uma viagem a cavalo até Portugal?”

A Cavalo Tag 05 1.jpg

A ideia não mais saiu da cabeça de Jette. E contactou a dona da Pinou que, depois de reflectir uns dias, lhe respondeu: “Faz isso, então, se é o que queres”.

Decidida a provar a si própria e aos outros de que seria capaz, Jette começou a treinar mais intensamente com a égua e a preparar a viagem. Os pais e o namorado colaboraram, discutindo os planos com ela. Iniciando-se a jornada em Setembro, e como seria irrealista atravessar os Pirenéus no Inverno, o pai prontificou-se a levá-la de carro através da França, até Bilbao, caso ela realmente conseguisse atravessar a Alemanha, de Hamburgo até à fronteira francesa, no Saarland (quase 1000 Km, na rota escolhida por ela; a viagem na auto-estrada é 300 km mais curta).

Reservaram dormidas para a primeira semana, em locais de turismo rural, com distâncias de 30 a 40 km entre eles. Depois, Jette teria de se desenvencilhar sozinha, munida de uma tenda, deixando o destino decidir. Os pais e o namorado comprometeram-se igualmente a ir buscá-la, fosse onde fosse, caso ela se achasse incapaz de prosseguir, ou algo lhes acontecesse (a ela e/ou a Pinou).

A 8 de Setembro de 2024, Jette iniciou a viagem da sua vida.

A Cavalo Tag 01 1.jpg

 

Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas são retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Setúbal, pós-Natal 2024

Pedro Correia, 29.12.24

11.jpg

«Aparentes senhores de um barco abandonado, / nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... / Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado, / se justifica, enflora, a secreta viagem!»

(David Mourão-Ferreira)

444.jpg

«Lá vão os cercos plo Sado abaixo, / Ao mar vizinho, à sua lida. / "Voltem pesados, co’a borda em baixo!" / Gritam gaivotas em despedida

(Luís Cabral Adão)

2222.jpg

«O rio abre um largo e irregular estuário, as águas entram profundamente pela terra dentro.»

(José Saramago)

333.jpg

«Ah seja como for, seja por onde for, partir! / Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo,  pelo mar.»

(Álvaro de Campos)

666.jpg

«Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado, / Mansa corrente deleitos, amena, / Em cuja praia o nome de Filena / Mil vezes tenho escrito e mil beijado.»

(Bocage)

555.jpg

«Todo eu me alevanto e todo eu ardo. / Chego a julgar a Arrábida por Mãe, / quando não serei mais que seu bastardo.»

(Sebastião da Gama)

Fotos minhas

Moçambique pós-Natal

jpt, 26.12.24

brigadista.jpg

Antes do Natal aqui deixei o meu repúdio pelo seguidismo - típico de "deficientes intelectuais" - do governo e do presidente da República às posições do poder de Maputo. É um assunto que pouco interessa aos portugueses. Tal como pouco lhes interessará que nenhum dos nossos países congéneres ou das multilaterais a que pertencemos se aprestaram a fazer comunicados com o mesmo teor acrítico. Bem pelo contrário, todos se vêm distanciando do rumo daquele poder instituído.

Logo então referi que o candidato oposicionista Venâncio Mondlane - actualmente no exílio em parte incerta - fez declarações muito explícitas, criticando a posição portuguesa, sem abordar outras posições internacionais. Mas também alertou os seus seguidores no sentido de salvaguardar os "nossos irmãos portugueses" que no país habitam, irresponsáveis da irresponsabilidade dos seus governantes. (Mas quem acompanha a situação moçambicana também sabe que Mondlane não tem controlo total sobre a contestação. Entenda-se bem: não tem um partido organizado, não tem "milícias" - como especulavam os parcos apoiantes do poder -, tem "apenas" uma enorme influência "moral" / política mas a qual não é espartilho total das massas contestatárias). 

Ou seja, as posições de Montenegro e do nosso Presidente da República - esse Dâmaso Salcede da política nacional -, pressurosos em caucionar o poder Frelimo, não só descuram o processo democrático moçambicano, não só destoam das posições dos nossos aliados. Mas também perigam o bem-estar dos nossos compatriotas no país. E a estes nossos dois próceres some-se o MNE Rangel, cujas actuais contradições sobre Moçambique o recobrem da peçonha da indignidade pessoal.

Nesta alvorada deixava eu no meu blog uma plácida memória, até íntima, sobre este meu Natal. Quanto atentei, via Whatsapp, no massacre ontem acontecido em Maputo - e que talvez hoje continue. Dado o desnorte estatal houve fugas massivas das prisões de Maputo, para as quais as autoridades, já incapazes de susterem as fugas, apontam contraditórias causas: a ministra da Justiça refere que tiveram origem interna às cadeias, o comandante da polícia afirma terem sido promovidas por manifestantes oposicionistas - o que parece desmentido pelas imagens das saídas em barda, portões afora, dos prisioneiros. E figuras oposicionistas clamam que foram organizadas pelo poder, para criar uma situação de insegurança que legitime o recurso à força, para reestabelecer uma "ordem" pública, uma pax frelimica...

Entretanto, a polícia - que nos últimos meses tem vindo a reprimir "sem fé nem lei" os contestatários do poder instaurado - conseguiu recuperar algumas dezenas de fugitivos. Filmes de telemóvel realizados por agentes policiais mostram-no. Congregaram esses fugitivos, transportaram-nos, interrogaram-nos, abateram-nos. Com júbilo! Filmam os cadáveres, para registo e "relatório". "Estes julgavam que as armas não disparam", clamam, apoucando aqueles restos mortais. Deixo acima a imagem de um desses assassinados - em vários filmes aparece detido, entrevistado, transportado: diz-se um "brigadista" (entenda-se, um criminoso de baixo risco, perto de ter cumprido metade da pena e passível de liberdade condicional, já com autorização para saídas diurnas laborais nas imediações da prisão). Passadas horas está cadáver, amontoado entre dezenas de corpos, e dito pelos polícias como "nigeriano" e "agitador"...

Trata-se de um massacre em curso em Maputo. Levado a cabo pelos agentes dos poderes lestamente caucionados por este trio: Rebelo de Sousa, Montenegro, Rangel. Malditos sejam estes. E malvistos, pois execráveis.

Para quem se interesse por este assunto, mas julgue ser imperscrutável em Portugal o actual processo moçambicano, aconselho a que na SIC Notícias recue até ontem, dia 25 de Dezembro, às 21.25 h., quando decorre um desses programas de comentário político - que agora me recomendaram ver... O comentador Miguel Morgado (militante do PSD) tem uma análise informada e totalmente pertinente do que se passa em Moçambique, e uma visão radicalmente crítica das posições havidas sobre o governo e o presidente (que são do seu partido). Ou seja, é possível estar aqui e perceber não só a situação moçambicana como entender o profundo despautério que grassa em Belém, em São Bento e nas Necessidades.

E ouça-se também o que diz sobre o assunto o militante do PS e antigo governante Prata Roque, o outro comentador. Pois é amplamente denotativo do que como o poder português impensa e, em particular! Defende o homem as posições pró-regime de Maputo - cabal defensor das solidariedades internas à Internacional Socialista e, porventura, das ligações privadas entre respectivas elites políticas. Mas atente-se mais ainda na abjecta, obtusa, cavernícola mediocridade dos seus argumentos: o que lhe importa é lamentar que em Moçambique "se fale cada vez menos português" (uma imbecilidade factual), e que a população seja cada vez menos sensível à "lusofonia" e - ainda por cima - à "portugalidade"... Não é apenas uma patetice, trata-se mesmo de um escarro intelectual, para além da imoralidade ululante.

E é isto, esta nulidade, esta esterqueira, que ascende a governos do PS. É  isto que é docente na actual Faculdade de Direito de Lisboa (!). E é isto, já agora, a que as televisões pagam para "informar" e "fazer opinião" as gentes de cá. Enfim, é a tralha imunda que vem grassando, há décadas, no "Bloco Central".

Entenda-se, conhecendo e sentindo Moçambique, vendo na alvorada pós-Natal o que estou a ver a acontecer em Maputo, vomito impropérios, jorram-se-me. Nenhum dos quais tão ordinários, javardos, como dizer "Prata Roque". Sem com isso salvaguardar de desprezo similar os actuais incumbentes.

Santarém, Natal 2024

Pedro Correia, 25.12.24

camões.jpg

«Scabelicastro, cujo campo ameno / Tu, claro Tejo, regas tão sereno...»

(Camões)

torga.jpg

«O Ribatejo deve ser visto das Portas do Sol de Santarém, num dia de cheia.»

(Miguel Torga)

1.jpg

«Mira-te no Tejo Santarém, princesa que foste e rainha que és…»

(Alexandre Herculano)

2.jpg

«Um comboio que partisse / Sem sair da estação / No lado esquerdo da linha / Transporte dum coração.»

(José do Carmo Francisco)

3.jpg

«Santarém, nobre Santarém, a Liberdade não é inimiga da religião do céu nem da religião da terra. Sem ambas não vive, degenera, corrompe-se, e em seus próprios desvarios se suicida.»

(Almeida Garrett) 

4.jpg

«Na minha juventude antes de ter saído / da casa de meus pais disposto a viajar /eu conhecia já o rebentar do mar / das páginas dos livros que já tinha lido.»

(Ruy Belo) 

5.jpg

«Livre, liberta em pedra. / Até onde couber / tudo o que é dor maior, / por dentro da harmonia jacente, / aguda, fria, atroz, / de cada dia

(Natércia Freire)

8.jpg

«Tenho um pátio andaluz no meio de mim. / Todo água, espelhos e pedras preciosas.»

(Rita Tormenta)

7.jpg

«Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.»

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

 

Fotos minhas

O governo português e Moçambique

jpt, 24.12.24

governo.jpg

Em 2024 houve mundo afora um imenso, inusitado, número de eleições nacionais. A reduzir a atenção internacional sobre cada uma delas. Some-se a isso a relevância mundial das eleições americanas, até monopolizadora de interesses alheios,  a continuidade das duas guerras que mais convocam os cuidados da opinião pública e, agora, a queda do velho regime sírio. Tudo isso se congregou para a pouca relevância externa das eleições presidenciais, provinciais e legislativas moçambicanas do último Outubro. Também por cá isso aconteceu.

Nossa desatenção nacional que se reforça pelas características do nosso arco parlamentar politicamente significante. Entre o qual há em relação ao poder daquele país uma atávica solidariedade do PCP. E um desinteresse real do BE - note-se que a única intervenção significante desse partido sobre o assunto foi uma declaração da deputada Matias, a qual, de facto, apenas utilizou o caso moçambicano para criticar a posição portuguesa e europeia face à ditadura venezuelana. Quanto ao PS há uma solidariedade explícita, advinda da comunhão na Internacional Socialista, bem como - e até será mais relevante - existem liames já de décadas entre algumas figuras gradas socialistas e a oligarquia moçambicana, a vera causa do de outro modo inacreditável silêncio do PS sobre este assunto. Quanto ao PSD poder-se-á explicar o silêncio por um trio de influências: o peso de lóbi interno de algumas figuras desse partido, o rumo titubeante neste caso do seu actual Ministro dos Negócios Estrangeiros - o qual, decerto, brandirá um paupérrimo, de mítico, "sentido de Estado" para agora se justificar. E, decerto, a opinião do incompetente e ininteligente presidente da República que desse partido emanou, suas características sempre exponenciadas quando sobre Moçambique se trata. Ficarão os olhares críticos parlamentares sobre a situação moçambicana a cargo da IL, que tem tido posições pertinentes, e do ignaro bolçar revanchista colonialista desse CHEGA que para aqui anda...

Ontem, ao fim de dois meses e meio (muito mais do que ocorreu em vários processos eleitorais deste ano em África), o Conselho Constitucional moçambicano aprovou os resultados finais - como seria de esperar. Fez algumas alterações aos números inicialmente anunciados pela CNE. Grosso modo, atribui mais 4% dos votos ao segundo candidato mais votado - que tem protestado os resultados -, e mais 1% a um outro. Entretanto, ao longo destes dois meses de contestação popular dos resultados anunciados foram vários os relevantes militantes do partido do poder que confirmaram publicamente a longa tradição do seu (do seu, sublinho) partido na manipulação dos processos eleitorais. Corolário dessas más práticas no ano passado decorreram umas eleições autárquicas sob uma enorme, escandalosa, fraude. 

Neste 2024 aconteceu mais uma enorme manipulação eleitoral. Aos protestos generalizados seguiu-se uma brutal repressão policial: o assassinato de figuras do oposicionistas Podemos, mais de uma centena de mortos, pelo menos centenas de feridos. 

Não contesto que o partido Frelimo tenha ganho as eleições, julgo até ser normal que isso tenha acontecido: aconteceu uma grande abstenção, na desmobilização do voto oposicionista devido a uma longa tradição de manipulação eleitoral, na desagregação real do histórico oposicionista Renamo (de facto cooptado pelo poder, e assim compreendido pela população), na tripartição da oposição eleitoralmente significante, para além do peso histórico do partido do poder e de este ter um efectivo aparelho partidário na totalidade do país. Não contesto a sua vitória nem a afianço, pois de facto os processos eleitorais não são credíveis - como deixou explícito a declaração da missão de observação eleitoral da UE, raríssima de tão crítica. 

A toda essa tradição de prática política eleitoral some-se a atroz repressão em curso, da qual houve nos últimos dois meses incontáveis testemunhos fílmicos e fotográficos.

Mas ontem, ao fim dos tais dois meses e meio, o Conselho Constitucional validou o processo eleitoral. Duas horas depois, meras duas horas depois, o nosso governo divulga a sua concordância apoiante ao velho poder de Maputo. Articulando algumas recomendações gerais sobre "boas práticas" com a adopção, explícita, da linguagem que o Frelimo usa para agora se legitimar, como está escarrapachado na utilização de "o novo ciclo" no documento oriundo das "Necessidades", tópico na actualidade sempre propalado pelo partido incumbente. Nesta deriva, decerto que emanada por concordância entre Belém e São Bento (e as Necessidades, decerto), não houve sequer uma pausa, uma ligeira demora - tão típica da linguagem diplomática -, que significasse um desconforto - com o passado recente, com o presente, com o molde de autocracia eleitoral, com o constante viés repressivo.

Resta apenas um frenesim, conivente, de Sousa, Montenegro & Rangel. Precaução, dirão os sacerdotes da "realpolitik". Incompetência e desatenção, direi eu, defensor da "realpolitik".

E se há dias para ter vergonha de ser português este é um deles. A causar um Natal acabrunhado.

Adenda

Ao meu postal criticam-no, por via privada, por "aceitar" a vitória do Frelimo. As pessoas querem - sobre aquilo que "torcem" - proclamações, como se adesões. Não as farei a propósito de partidos estrangeiros. O que digo é que não recuso a hipótese da vitória do Frelimo (e adianto razões plausíveis). Mas adianto que, seja qual for o resultado apurado, nada daquilo é credível. E que a reacção do governo português é execrável. Digamos assim, se por cá volta e meia se pede a demissão (até a cabeça) de um qualquer ministro (da Educação, da Administração Interna, da Justiça, etc) por causa de um qualquer episódio, por maioria de razão se deveria pedir o abate deste ministro Rangel. 

Quanto ao resto dizem-me que hoje - nas suas comunicações audiovisuais - o oposicionista Mondlane zurziu no nosso presidente e no nosso governo, com total pertinência. Tendo também a clarividência de salvaguardar os nossos compatriotas residentes no país. De facto inocentes da incompetência do nosso presidente e deste ministro dos negócios estrangeiros (entenda-se bem, o seu comunicado é inadmissível...).

Mas como é Natal e Rangel é Rangel tudo passará e ninguém por cá ligará.

Óbidos, pré-Natal 2024

Pedro Correia, 19.12.24

22.jpg

«Em qualquer aventura, / O que importa é partir, não é chegar.»

(Miguel Torga)

4444.jpg

«E contudo perdendo-te encontraste. / E nem deuses nem monstros nem tiranos / te puderam deter. A mim os oceanos. / E foste. E aproximaste.»

(Manuel Alegre)

5555.jpg

«Imagem dos gestos que tracei, / irrompe puro e completo. / Por isso, rio foi o nome que lhe dei. / E nele o céu fica mais perto.»

(Eugénio de Andrade)

666.jpg

«Há um nascer do sol no sítio exacto, / À hora que mais conta duma vida, / Um acordar dos olhos e do tacto, / Um ansiar de sede inextinguida.»

(José Saramago)

7777.jpg

«Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, / eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia. / No céu podia tecer uma nuvem toda negra. / E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas, / e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.»

(Herberto Helder)

88888.jpg

«Este céu passará e então / teu riso descerá dos montes pelos rios / até desaguar no nosso coração.»

(Ruy Belo)

9999.jpg

«Como nuvens pelo céu / Passam os sonhos por mim. / Nenhum dos sonhos é meu / Embora eu os sonhe assim.»

(Fernando Pessoa)

111.jpg

«Sinto a terra na força dos meus pulsos: / O mais é mar, que o remo indica, / E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.»

(Vitorino Nemésio)

101010.jpg

«Cada manhã o alvoroço da lua / Me acorda: a luz atravessa a paisagem e a casa! / - A dormir tinha esquecido não as coisas / Mas a sua meticulosa beleza / Múltipla.»

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Fotos minhas

Big Bands e Podcasts

Cristina Torrão, 14.11.24

Longe vão os tempos do emigrante português analfabeto e humilde. Na edição de Agosto passado do jornal português na Alemanha PT-Post, li sobre dois nossos compatriotas, dos quais nunca tinha ouvido falar, mas que atingiram um certo destaque na sociedade alemã.

Marco Matias.jpg

Marco Matias

Marco Matias, filho de portugueses oriundos da Calda das Taipas, Guimarães, nasceu em Junho de 1975 em Solingen, uma cidade conhecida pela sua indústria de cutelaria e onde muitos portugueses encontraram emprego.

Marco Matias é a voz masculina da Big Band do exército alemão (Big Band der Bundeswehr). Inspirado pelo major norte-americano Glenn Miller, fundador de uma banda militar que optava pelo swing em detrimento das habituais marchas, o Ministro da Defesa alemão Helmut Schmidt (mais tarde, chanceler) fomentou, em 1971, a formação de uma banda desse estilo. Além do swing, a Big Band der Bundeswehr toca igualmente rock e pop.

Marco Matias começou a dar nas vistas em 2003, ao participar num programa de casting intitulado “Die Deutsche Stimme”. Embora o título se traduza por “A Voz Alemã”, este programa nada tem a ver com The Voice of Germany, idêntico ao da versão portuguesa e cuja primeira temporada foi para o ar em 2011.

Em 2005, Marco Matias participou no Festival da Canção alemão, em dueto com a cantora Nicole Süßmilch, e ficou em segundo lugar. No ano seguinte, actuou mesmo no Festival Eurovisão da Canção, mas representando a Suíça, integrado no grupo Six4one.

Tornou-se vocalista da Big Band do exército alemão, em 2017. Como, nesta altura, já tinha, porém, uma vasta rede de conhecimentos, continua a colaborar com outros conjuntos, permitindo-lhe actuar em mais de cem eventos por ano.

 

Vitor Gatinho.jpg

Vítor Gatinho (Foto Instagram)

Vítor Gatinho, de quarenta e um anos, filho de portugueses e nascido em Frankfurt, é um médico pediatra com milhares de seguidores nas redes sociais. Além disso, já venceu duas vezes o prémio de melhor podcast, na categoria “Ratgeber” (orientação e aconselhamento), e escreveu três livros, um deles atingindo o primeiro lugar na lista de best-sellers do Spiegel.

Vítor Gatinho era um médico como outro qualquer, até que chegou a pandemia, em 2020. Obrigado a passar os tempos livres em casa, apercebeu-se de médicos, sobretudo americanos, que publicavam vídeos no TikTok e resolveu começar a fazer os seus próprios vídeos. Do TikTok, passou para o Instagram, onde, dos seus 120 seguidores iniciais (familiares e amigos), passou a ter mais de 700.000!

O sucesso levou-o a criar um podcast (o artigo não explica se sozinho, ou sugerido/apoiado por alguém ou alguma entidade), onde explica, de uma forma descomplicada, várias questões à volta da infância e da adolescência. Em Março e Abril deste ano, pisou, pela primeira vez, os palcos, a fim de interagir com o público, numa digressão por Frankfurt, Hamburgo, Estugarda e Munique.

Estas actividades passaram a ocupar tanto espaço na sua vida, que reduziu o tempo de trabalho na clínica, de cinco para três dias por semana. Já pensou em criar conteúdo em português, mas confessa não serem suficientes os seus conhecimentos da nossa língua para fazer vídeos. Além disso, não conhece a realidade da medicina pediátrica, nem da vida de crianças e adolescentes, em Portugal e calcula haver muitas coisas a funcionarem de outra maneira. Alimenta, porém, o desejo de ver os seus livros traduzidos para português.

 

Gedenktafel Armando Rodrigues de Sá.jpg

Kölner Stadt-Anzeiger

Já agora, a propósito dos sessenta anos da presença da comunidade portuguesa na Alemanha, foi renovada a placa comemorativa em memória de Armando Rodrigues de Sá, o milionésimo imigrante (Gastarbeiter). Armando Rodrigues de Sá chegou à estação de Köln-Deutz, a 10 de Setembro de 1964. A placa havia sido inaugurada em 2014, por ocasião dos cinquenta anos da sua chegada, mas estava muito deteriorada. Foi renovada, a pedido do Conselho de Integração da cidade de Colónia, e novamente descerrada, a 3 de Setembro passado.

A placa, embora evocativa da chegada do português, é dedicada a todos os imigrantes, como se lê no título: Den Eingewanderten gewidmet.

Indignações estratégicas

jpt, 26.10.24

TVM.jpg

["A TVM a reportar tumultos em Portugal e não fala do caos nos arredores de Maputo"]

O processo eleitoral moçambicano tem sido complexo. Com assassinatos. A seguir ao anúncio dos resultados houve manifestações de repúdio em várias cidades, fazendo temer a disseminação de violência, o que felizmente não aconteceu, pelo menos em grande escala. Recebi imensas mensagens no frenesim comunicacional destes últimos dias - reduzido desde ontem, pois o Estado bloqueou os "dados móveis" para acesso à internet (fazendo lembrar quando há 14 anos bloqueou as comunicações telefónicas mais populares, aquando de tumultos em Maputo). Entretanto vários amigos, moçambicanos e portugueses, enviaram-me esta mensagem (foto e legenda): no telejornal do canal estatal (TVM) foram noticiados os "desacatos" na Grande Lisboa enquanto se calava qualquer referência à turbulência acontecida nesse dia naquele país. O controlo da imprensa estatal é coisa típica, não monopólio  moçambicano. Mas não deixa de ser notável.

Ontem assinei uma petição pública, avessa aos deputados André Ventura e Pedro Pinto, autores de declarações inadmissíveis sobre estes motins nas cercanias de Lisboa. Não sou adepto, nada mesmo, da criminalização de deputados por declarações de teor político, fazê-lo arrisca ser um destapar da caixa de Pandora. Mas abstenho-me agora desse princípio, associando-me a uma manifestação de repúdio diante de uma verdadeira abjecção - o deputado Pinto chegou a apelar que os agentes "atirem para matar". Em última análise, é a própria polícia que não merece tamanho disparate! E também sabendo, como o disse Sérgio Sousa Pinto, que os deputados nunca abdicarão da imunidade parlamentar.

Sobre a real situação securitária em Portugal nada sei, como escrevi há pouco. Mas sobre estes tumultos actuais concordo com o que ouvi ontem de Ângelo Correia na CNN (num programa de comentariado com Marques de Almeida, Sá Lopes e Sousa Pinto, que ontem descobri aquando em zapping) - o que me provocou um "ó diabo, eu a concordar com o Ângelo Correia?!" Ou seja, esta problemática não é apenas securitária. E não posso discordar mais da jornalista Sá Lopes, a qual reproduz uma ignorância generalizada na auto-reclamada "esquerda", essa que reduz as preocupações securitárias a meras "bandeiras da direita". Denotando como é espantosa e veemente a capacidade de intelectuais e jornalistas em nada aprenderem com as realidades circunvizinhas.

Enfim, apesar de desconfortável com a iniciativa criminalizadora de deputados, tendo recebido de uma queridíssima amiga (cherchez la femme, sempre) a petição, li-a e assinei-a, juntando-me a cerca de 70 000 outros (no momento em que escrevo o postal). É óbvio que a associação a uma iniciativa colectiva implica sempre a suspensão de alguns critérios próprios, o inflamar de alguns pruridos. Mas, e repito-me, o grunhismo dos deputados CHEGA é tamanho que a coceira se justifica.

Explicito dois desses focos de inflamação, para que se perceba o quanto me irritaram as declarações de Pinto e Ventura, pois só tamanha abjecção me faria "juntar", mesmo que modestamente, a tais pessoas num rol de assinaturas. A petição é encimada por um vasto rol de "primeiros signatários". Nele consta o nome do socialista Porfírio Silva, um político de execrável indignidade - foi ele que veio clamar que Passos Coelho usava a doença da sua mulher para colher dividendos políticos. É incompreensível como outros ainda lhe dão crédito para ser "alguém" na vida política e/ou de cidadania. 

O outro caso é mais significativo. Eu defendo que os estrangeiros, residentes ou não, podem manifestar-se sobre a vida política portuguesa. Mas fico a menear a cabeça, com indignação (nada estratégica, friso), quando vejo o angolano José Eduardo Agualusa a surgir como um dos "primeiros signatários" desta petição política sobre Portugal. Sabendo-o sempre em calmaria pública no Moçambique onde reside. E agora surgindo em declarações públicas suportando o bloco social no poder, invectivando o candidato Mondlane - mesmo depois da comitiva deste ter sido baleada pelas forças policiais. Compreendo esse silêncio sobre o país que habita. Grosso modo foi o meu - ainda que não radical -, na modéstia de qualquer repercussão que pudesse ter, pois sempre me dizendo meteco. Mas se isso compreendo também interpreto a sua adesão actual, enquanto segue plácido diante da violência estatal sistémica, de inúmeras declarações abrasivas, do rumo nacional, feito de coisas tao mais graves do que isto que se passa em Lisboa. Sobre as quais nada... assina

Por isso, e independentemente das nacionalidades de cada um, percebo como é necessário um grande desplante para que o autor surja agora com posicionamentos políticos em Portugal. Num rumo - que se quer "premiável" - feito de indignações estratégicas.

Ou, dito de outra forma, Agualusa é tal e qual a TVM.