Onde começa o artifício e termina a realidade? É irrelevante.
Nem mais, Pedro. O que importa é que o imaginário é também uma forma de realidade que nos condiciona e nos faz como somos, tanto ou mais do que o prosaico dia a dia. O que o filme de Woody Allen tem de genuíno é mostrar Paris como ela é, exactamente: a calçada que pisamos, com os pés bem assentes na terra; e a permanente passagem à estratosfera, através da viagem mental, dos laços culturais (literários, artísticos e lúdicos, sobretudo lúdicos) que nos impelem até à ilusão da proximidade física com os nossos anjos ou os nossos agradáveis demónios, conforme preferirem.
Woody Allen conseguiu isso muito bem, porque transmitiu metaforicamente o que realmente acontece.
Quando nos sentamos em Montmartre e penetramos no fundo dos cafés, estamos com Modigliani ou Soutine. Quando passeamos no Boul' Mich', encontramos ainda, e comovemo-nos, com a poeira do Mai 68 a sujar-nos a ponta dos jeans, ou o murmúrio incendiado da resistência estudantil dos anos 40, insurgida contra a ocupação alemã.
Quando vamos aos Puces, lembramos a Sagan, que também nos leva ao cenário oposto, o Maxim’s, para revermos Proust em carne e osso.
Se nos sentamos no La Paix, é para respirar o mesmo ar que Tchaïkovski, Zola ou Maupassant. E no Boulevard des Capucines, refastelados nas cadeiras de verga diante de um normalíssimo café-crème, reencontramos Victor Hugo e os irmãos Lumière.
Paris vive carregada da história de todas as idades e de uma cultura que a minha geração ainda entende na perfeição.
O filme Midnight in Paris captou isso com uma substância que só talvez quem viveu esse sortilégio consegue perceber. Nós, os parisienses de empréstimo na tenra idade, reconhecemos tudo como se descobríssemos uma alma gémea. Partilhamos os mesmos demónios em cada trecho da cidade, num atalho para nós próprios, numa armadilha do tempo, num elo transitivo para o que nos é familiar. Por isso, Woody, o teu mix não é uma fantasia, mas sim uma realidade acutilante.
Na verdade, eu já o tinha dito: o meu lugar ideal é o Quartier Latin, sentada, ao som de Brel, à conversa com Joyce que rabisca o Finnegans Wake e promete convencer Modigliani a pintar-me. Uma impossível sincronia.
Depois de ambos termos percebido isto (a irrelevância da diacronia e a fusibilidade das gerações) como é que não nos cruzámos por ali?
Por mero acaso. Ou talvez porque tu vivesses no Plaza, nos Champs Elysées, e eu algures no Marais, quando o 7.ème era o sítio sonhado por Malraux. E talvez porque tu comesses no Chez Regine, enquanto eu debicava camemberts acompanhados de bordeaux no inesquecível La Bière, em plena Rue Saint Paul.
Mesmo assim, como poderias tu não concordar comigo?
Leste-me os pensamentos, para não dizer que mos roubaste.