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Delito de Opinião

À Humanidade

Bandeira, 26.03.16

Porque John Donne está a morrer, ele escreve algumas Lamentações; nelas se queixa inclusive de que as dores o impedem de gozar na sua plenitude a experiência da morte. Escreve que "nenhum homem é uma ilha" e outras coisas lindas, quase sempre porém melancólicas e tristes.
Séculos depois, Hemingway usa em prefácio um trecho da 17a Lamentação, algo como: "Não perguntes por quem dobram os sinos; eles dobram por ti". Com isto queria Donne dizer que partilhava da Humanidade, e que morrendo um qualquer homem morria Donne um pouco também (já Terêncio, por outras palavras, sugerira algo assim).
Em Hollywood fez-se um filme e o trecho prosaico da Lamentação de Donne ficou na memória que hoje sói chamar-se colectiva, muitas vezes tomado por verso, porque Donne era, antes de prosador morrendo, um poeta; e os poetas, não sendo ilhas, serão talvez penínsulas.
À Humanidade, uma Páscoa feliz.

Deus feito homem da gruta à cruz

Pedro Correia, 25.03.16

Gauguin_Il_Cristo_giallo[1].jpg

 O Cristo Amarelo, de Paul Gauguin (1889)

 

«Jesus chorou.»

João, 11-35 (o versículo mais curto da Bíblia)

 

A mensagem arrebatadora do Evangelho - e aquela que resume toda a essência do cristianismo - é a de um Deus que assume a plenitude da condição humana. Com os seus luminosos momentos de alegria, os seus lampejos de júbilo, as suas inevitáveis dores, a sua irrenunciável agonia. Como se a missão do criador ficasse incompleta sem esta experiência radical de abraçar por inteiro o ser débil, indeciso e angustiado que o barro divino moldou.

Até ao fim dos séculos, Jesus será inseparável da circunstância deste percurso terreno em que voluntariamente se irmana ao mais comum dos homens. Nasce pobre, numa gruta. Enaltece os humildes. Elege simples trabalhadores como discípulos. Rejeita sem vacilar o ilusório fulgor dos bens materiais. Perdoa os pecadores: «Eu não vim para condenar o mundo, mas para o salvar.» (João, 12-47). Enfrenta os fariseus com palavras tão actuais na manhã de hoje como há dois mil anos: «Vós, os fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e de maldade.» (Lucas, 11-39). E não hesita em dar a mais humana das interpretações à pétrea Lei de Moisés: «O sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.» (Marcos, 2-27).

Condenado sem apelo nem recurso, renegado pelos seus, vilipendiado pela multidão que aclama Barrabás, confrontado perante a prepotência de Caifás e a cobardia moral de Pilatos, crucificado entre dois salteadores como um delinquente pelo crime de blasfémia. Deus feito homem num mundo de homens que sonham ser deuses.

Pouco antes confessara aos discípulos em Getsemani que sentia «uma tristeza de morte». E ali mesmo implora numa prece que poderia brotar da voz interior de qualquer de nós: «Pai, tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice!» (Marcos, 14-36).

Um cálice que, no entanto, beberá até ao fim. Imerso na condição humana da gruta à cruz.

 

Texto reeditado

 

Férias da Páscoa

Teresa Ribeiro, 06.04.15

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"Pai! Pai! Pai!" Era uma urgência, um clamor, mas sobretudo uma disputa com a irmã, pouco mais velha, talvez com uns nove anos. De temperamento menos nervoso, ataviada com a roupa de sair com o pai, a menina falava baixinho. Tão baixinho que o pai tinha de se curvar até quase roçar a cabeça dela. "Hã? Repete lá!" Em volta o miúdo sitiava-os, inventando números de circo. "Não te pendures aí, podes cair!" A voz do adulto saía controlada. Era a voz de passear os filhos em público.

"Pai! Pai! Pai!" E agora abanava-o, para o desviar dos sussurros da irmã. Mas a menina ignorava-o, prosseguindo a sua história interminável em surdina. Sem nunca perder a consciência de que estava a ser observado por estranhos, o homem tentava partir-se em dois, evitando acusar sinais de impaciência. Os garotos, também sem perder a consciência de que estavam a ser observados por estranhos, tentavam tirar o máximo partido da situação, esticando-o como se fosse uma corda. Cada um a puxá-lo pela sua ponta e um risco ao meio do terreno.

- Pai! Pai! Pai!

- Não grites, não vês que incomodas as pessoas?

Sempre em tom civilizado, desta vez com a menina a prender-lhe a cintura, tentava acalmar o filho, mas este continuava num desatino, a lutar contra o tempo, porque o comboio estava a chegar e antes que viesse ele queria, mais que tudo no mundo, ele queria, queria, queria que o pai o visse.

Deus feito homem da gruta à cruz

Pedro Correia, 03.04.15

Gauguin_Il_Cristo_giallo[1].jpg

 O Cristo Amarelo, de Paul Gauguin (1889)

 

«Jesus chorou.»

João, 11-35 (o versículo mais curto da Bíblia)

 

A mensagem arrebatadora do Evangelho - e aquela que resume toda a essência do cristianismo - é a de um Deus que assume a plenitude da condição humana. Com os seus luminosos momentos de alegria, os seus lampejos de júbilo, as suas inevitáveis dores, a sua irrenunciável agonia. Como se a missão do criador ficasse incompleta sem esta experiência radical de abraçar por inteiro o ser débil, indeciso e angustiado que o barro divino moldou.

Até ao fim dos séculos, Jesus será inseparável da circunstância deste percurso terreno em que voluntariamente se irmana ao mais comum dos homens. Nasce pobre, numa gruta. Enaltece os humildes. Elege simples trabalhadores como discípulos. Rejeita sem vacilar o ilusório fulgor dos bens materiais. Perdoa os pecadores: «Eu não vim para condenar o mundo, mas para o salvar.» (João, 12-47). Enfrenta os fariseus com palavras tão actuais na manhã de hoje como há dois mil anos: «Vós, os fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e de maldade.» (Lucas, 11-39). E não hesita em dar a mais humana das interpretações à pétrea Lei de Moisés: «O sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.» (Marcos, 2-27).

Condenado sem apelo nem recurso, renegado pelos seus, vilipendiado pela multidão que aclama Barrabás, confrontado perante a prepotência de Caifás e a cobardia moral de Pilatos, crucificado entre dois salteadores como um delinquente pelo crime de blasfémia. Deus feito homem num mundo de homens que sonham ser deuses.

Pouco antes confessara aos discípulos em Getsemani que sentia «uma tristeza de morte». E ali mesmo implora numa prece que poderia brotar da voz interior de qualquer de nós: «Pai, tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice!» (Marcos, 14-36).

Um cálice que, no entanto, beberá até ao fim. Imerso na condição humana da gruta à cruz.

 

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

José Gomes André, 02.04.15

 

Não me interessa o folclore do Natal. Esta é a noite mais solene do cristianismo, talvez mesmo a mais solene da história. Quando Cristo, sabendo do seu destino fatal, exprime a sua dor humana, demasiado humana, em revolta contra o trágico evento que o espera. Há muitas coisas admiráveis sobre a Última Ceia, a lavagem dos pés, a instituição da Eucaristia e o beijo de Judas, mas nenhuma me parece tão importante quanto a dúvida que assola Jesus (“Pai, afasta de mim esse cálice!”), Deus feito homem – e portanto apaixonado pela vida dos homens e pelos homens. Sob a aparente serenidade do que se seguirá, habita em Cristo um desejo de resistência contra o absurdo da morte, que culminará, horas mais tarde, na mais desesperada e brutal das frases bíblicas: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Citando um salmo do Antigo Testamento, opera-se a ligação entre o antigo e o novo, mas é de um homem dilacerado que se trata ainda, face a uma morte que não quer aceitar, mas da qual não pode fugir, em nome da causa que defende. Em todas as Páscoas penso na luta desse homem – e do que ela tem para nos ensinar sobre as nossas próprias lutas. 

Crucificações

José Navarro de Andrade, 18.04.14
Marc Chagal, "Golgotha", 1912 
Fragment of a Crucifixion.jpg
 Francis Bacon, "Fragment of a crucifixion", 1950 
 Léon Ferrari, "Western-Christian Civilization", 1965 
 Chris Burden, "Trans fixed", 1974 
Hughie O'Donoghue, "Blue crucifixion", 1993-2002
 Bernard Pras, "Christ", 2002
Andrés Garcia Ibanez, "El Cristo de la Muerte", 2003
David Mach, "Die harder", 2010

Da liberdade

Laura Ramos, 31.03.13

«Se eu falasse todas as línguas, as dos homens e as dos anjos, mas não tivesse amor, seria como um bronze que soa ou um címbalo que retine.

Se eu tivesse o dom da profecia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a ponto de remover montanhas, mas não tivesse amor, nada seria.

Se eu gastasse todos os meus bens no sustento dos pobres e até me fizesse escravo, para me gloriar, mas não tivesse amor, de nada me aproveitaria.

O amor é paciente, é benfazejo; não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade. Ele desculpa tudo, crê tudo, espera tudo, suporta tudo.

O amor jamais acabará.As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência desaparecerá.

Com efeito, o nosso conhecimento é limitado, como também é limitado nosso profetizar.

Mas quando vier o que é perfeito, desaparecerá o que é imperfeito.

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança.

Agora nós vemos num espelho, confusamente, mas, então veremos face a face. Agora, conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido».

 

Carta de S. Paulo aos Coríntios

Páscoa

Pedro Correia, 31.03.13

 

«E era com grande poder que os Apóstolos davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus, gozando todos de grande simpatia. Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, conforme a necessidade que tivesse.» (Actos dos Apóstolos, 4: 34-35)

 

O dia que hoje celebramos no mundo de matriz cristã tem um significado que ultrapassa a letra da liturgia, podendo ser assimilado por todos os seres humanos de boa vontade. Simboliza desde logo a supremacia absoluta da espiritualidade sobre o materialismo. Simboliza o resgate de todos os injustiçados à face da terra - aqueles que, como Jesus, também sobrevivem à traição, à calúnia, à humilhação e à tortura. Simboliza enfim o triunfo dos justos contra a iniquidade política (personificada em Pôncio Pilatos, que sabia estar a permitir a condenação de um inocente) ou religiosa (personificada em Caifás, sumo sacerdote da Judeia). Cristo, ao transcender o plano da morte física após sucumbir sob intenso sofrimento, demonstra que todos os filhos de Deus são revestidos da mesma dignidade essencial. "Nenhum poder terias sobre mim se do Alto te não fosse dado", diz a um perplexo Pilatos, segundo relata o Evangelho de João.

O cristianismo, para não trair a sua raiz nem o seu destino, jamais deve omitir a face humana de Jesus, que nasce numa gruta obscura e morre crucificado entre dois salteadores. Alheado de toda a glória mundana, despojado de todos os bens terrenos, proclama para a eternidade que nem a morte é capaz de travar a indomável essência do espírito.

Reflexão para esta Páscoa. Reflexão para qualquer Páscoa que vier.

 

Texto reeditado

 

Quadro: Ressurreição, de Marc Chagall (1937)

Uma Páscoa de esperança

Ana Vidal, 08.04.12

                      

 

Com flores de rodoendro cor de fogo
Anuncio aos sentidos
O milagre

Da ressurreição.
E o Cristo vivo, em que se transfigura
A mais vil criatura
Que atravessa a praça,
É como uma graça
A mais da primavera.
Ah, quem pudera
Todos os dias

Olhar o mundo assim, repovoado
De fraternidade,
Quente de um sol desabrochado
Em cada pétala da realidade!

(Miguel Torga)

Para que tenham Vida

Laura Ramos, 08.04.12

 

Com flores de rododendro cor de fogo
anuncio aos sentidos
o milagre
da Ressurreição.
E o Cristo vivo,
em que se transfigura
a mais vil criatura
que atravessa a praça,
é como que uma graça
a mais da Primavera.
Ah, quem pudera
todos os dias
olhar o mundo assim,
repovoado de fraternidade,
quente dum sol desabrochado
em cada pétala da realidade.

Aleluia, Miguel Torga

Páscoa

Pedro Correia, 08.04.12

 

«E era com grande poder que os Apóstolos davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus, gozando todos de grande simpatia. Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, conforme a necessidade que tivesse.» (Actos dos Apóstolos, 4: 34-35)

 

O dia que hoje celebramos no mundo de matriz cristã tem um significado que ultrapassa a letra da liturgia, podendo ser assimilado por todos os seres humanos de boa vontade. Simboliza desde logo a supremacia absoluta da espiritualidade sobre o materialismo. Simboliza o resgate de todos os injustiçados à face da terra - aqueles que, como Jesus, também sobrevivem à traição, à calúnia, à humilhação e à tortura. Simboliza enfim o triunfo dos justos contra a iniquidade política (personificada em Pôncio Pilatos, que sabia estar a permitir a condenação de um inocente) ou religiosa (personificada em Caifás, sumo sacerdote da Judeia). Cristo, ao transcender o plano da morte física após sucumbir sob intenso sofrimento, demonstra que todos os filhos de Deus são revestidos da mesma dignidade essencial. "Nenhum poder terias sobre mim se do Alto te não fosse dado", diz a um perplexo Pilatos, segundo relata o Evangelho de João.

O cristianismo, para não trair a sua raiz nem o seu destino, jamais deve omitir a face humana de Jesus, que nasce numa gruta obscura e morre crucificado entre dois salteadores. Alheado de toda a glória mundana, despojado de todos os bens terrenos, proclama para a eternidade que nem a morte é capaz de travar a indomável essência do espírito.

Reflexão para esta Páscoa. Reflexão para qualquer Páscoa que vier.

 

Quadro: Ressurreição, de Marc Chagall (1937)

Últimas Ceias #7

Ana Vidal, 07.04.12

Finalmente, a utilização simbólica da Última Ceia na divulgação de CAUSAS ou para promoção própria. É irresistível, convenhamos: a imagem de uma figura central, rodeada da elite que constitui a sua esfera de influência (real ou desejada) permite uma leitura tão directa quanto eficaz da mensagem, pessoal ou colectiva, que se quer transmitir. Eis alguns exemplos, bem significativos.

 

 

1. Na defesa dos direitos das mulheres, aqui numa interpretação dos criadores de moda Marithé e François Girbaud. A ironia é bem explícita: o único homem presente (colocado no mesmo lugar da figura no fresco de DaVinci cujo género tem gerado polémica) está de costas, numa posição de submissão e subalternidade.    

 

 

 

2. Na luta contra o consumismo e o desperdício alimentar. Desconheço a autoria da primeira imagem, a segunda é do fotógrafo David LaChapelle e faz parte de uma série denominada "Jesus is my Homeboy". LaChapelle usou grupos multi-étnicos de jovens como modelos, oriundos das culturas rap e hip-hop e vestidos com roupas underground.

 

 

3. Na defesa e protecção dos animais, um cartaz para a Organização Internacional para a Protecção dos Animais. Repare-se no slogan (em cima, ao centro), que diz  "Um de vós vai trair-nos 150.000 vezes por ano". Curiosamente, a única figura com feições humanas é a de Judas.
 

 

4. Gordon Ramsay, um dos mais famosos chefs da actualidade e estrela do programa de televisão Hell's Kitchen (Cozinha do Inferno), rodeado de outros chefs ingleses cujo denominador comum é terem todos, pelo menos, uma estrela Michelin no curriculum. Sobre as suas cabeças, uma fatia voadora de queijo Brie. A fotografia foi feita para a revista Guardian.

 

 

5. Em 1985, o pintor Nate Giorgio assinou um contrato com Michael Jackson para pintar 50 quadros do cantor, que seriam usados para fins pessoais e comerciais. Esta Última Ceia, em que o Rei da Pop está rodeado de figuras célebres, está sobre a sua cama, em Neverland. (Os "apóstolos" são Abraham Lincoln, John. F. Kennedy, Thomas Edison, Albert Einstein, Walt Disney, Charlie Chaplin, Elvis Presley and Little Richard).

 


 

Não se escandalize quem vê nestas imagens, por vezes provocatórias, uma ofensa à sua fé. Se a Última Ceia - o encontro por excelência, fulcral na história da humanidade - não tivesse tanta força e tanto poder simbólico, passaria despercebida e ninguém quereria imitá-la ou apoderar-se dela. Tanto interesse só pode significar admiração, logo, elogio. Afinal, Jesus Cristo pode ser visto como o maior de todos os super-heróis do nosso imaginário. Tem todas as características que os fazem ser seres superiores - coragem, altruísmo extremo, disponibilidade total para os mais desprotegidos, despojamento pessoal, prática exclusiva do Bem - e ainda duas a mais, que fazem toda a diferença do mundo: a sua realidade (está historicamente provado que existiu) e, ao contrário dos heróis da ficção, a sua vulnerabilidade à dor física e até à morte, o que torna ainda muito mais admirável a sua história de vida.

Boa Páscoa a todos.