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Delito de Opinião

Decifre se quiser

Pedro Correia, 07.02.14

Escrever bem, de acordo com a técnica jornalística, é adoptar a regra dos três C: de forma clara, concisa e compreensível.

O leitor não tem tempo nem paciência para voltar atrás porque não entendeu o significado daquilo que acabou de ler nem paga um jornal para decifrar charadas que lhe são servidas em forma de notícia.

Um excelente exemplo surgiu esta segunda-feira, no diário espanhol El Mundo, em texto assinado pela correspondente do jornal em Nova Iorque, María Ramírez, a propósito da súbita morte de um dos mais célebres nomes popularizados por Hollywood.

O primeiro parágrafo da notícia é um modelo de concisão e limpidez: "O actor Philip Seymour Hoffman, de 46 anos, foi encontrado morto este domingo no seu apartamento de Manhattan com uma seringa espetada no braço."

 

Pelo contrário, são cada vez mais frequentes as frases incompreensíveis na nossa imprensa - até em títulos. Frases codificadas, oriundas de um jargão tecnicista ou empresarial e polvilhadas de estrangeirismos que certos jornalistas pretendem à viva força incorporar no vocabulário comum. Esquecendo que devem ser eles a descodificar a mensagem e não o leitor a esforçar-se por tentar decifrar aquilo que se pretende comunicar.

 

 

Deparo todos os dias com frases em que prevalece o tom charadístico, numa espécie de caricatura involuntária do que não deve ser a escrita usada em jornalismo: opaca, inexpressiva, indecifrável.

Ao falar-se na crise do jornalismo contemporâneo omite-se com frequência este aspecto: a falta de capacidade para comunicar. Quando iniciei a actividade jornalística, na década de 80, os velhos tarimbeiros da redacção costumavam dizer aos novatos como eu: "Escreve de maneira a que possas ser entendido não pelo físico nuclear mas pela empregada doméstica." Utilizando, desde logo, um vocabulário acessível a todos. Precisamente ao contrário daquilo em que que tantas vezes reparo agora. Como se o mais difícil fosse escrever de forma simples.

 

Às vezes dou por mim a pensar que fazem falta esses tarimbeiros nas redacções actuais - pessoas dotadas não com títulos académicos mas com o bom senso que deriva da sabedoria comum.

Muitos dos erros que costumo anotar seriam evitados pelo olhar atento e experiente de um bom editor. Mas como evitar a propagação do erro se quem tantas vezes o comete são profissionais do jornalismo investidos das funções de direcção ou editoria?

Voltarei a este assunto, raras vezes ou nunca debatido no espaço público. Para já, ficam 50 exemplos que fui colhendo da nossa imprensa:

 

 

"falta cada vez menos para o kick-off deste jogo"

"alternar entre o aceleramento, o giroscópio e os dois joysticks"

"a proposta tem vários regimes e vários períodos de phasing out"

"o processo devia ter sido muito mais friendly user para os utilizadores"

"o event designer conta como gere a profissão"

"podia ser um storyboard"

"temos de buscar clusters de desenvolvimento"

"não se consegue compreender porque é que há este delay"

"as teorias de agenda-setting"

"criámos todo um sistema de back up"

 "downgrade sobre a dívida portuguesa"

 "o presidente fez o takeover"

"ele estaria a causar twitter storms constantemente"

"o mercado de credit default swaps atribui a Portugal uma possibilidade de default"

"case study na habitação"

"retalhistas omnichannel"

"hotel em Armação de Pêra é All inclusive"

"reestruturação de programas do daytime da SIC"

"se o governo quiser fazer um restyling, tudo bem"

"acessórios must have da estação"

"ficámos a saber o breakdown dos chumbos"

economic adviser do Governo"

"este país adora quick fixes"

"seria um trabalho de accountabillity útil"

"os estúdios a olharem ao espelho num blacklot em Hollywood"

"os respectivos artwork e streaming

"Portugal tem de descer os salários em relação ao core da zona euro"

"o partido funciona por key words"

"livrarias queer migram para a Net"

"a última filosofia para superar crises conjugais é o coaching familiar"

"sou uma fashion victim"

"vai ser criada uma safe house em Lisboa"

"poderá utilizar o crowdfunding"

"o governo não pode ceder nos valores core"

"tentativa de criação de um catch-all party"

"Ucrânia e Polónia preparam-se para o seu close-up"

"as contas são o nosso bottom line"

"Bolsa alvo de ataque de short-selling"

"ao Chelsea sai quase sempre bem o papel de underdog"

"um daft punk em pose de artes marciais"

"receio de ficar fora do loop"

"ex-ministro recomenda a criação de um imposto one shot"

"o percurso foi feito para ser TV-friendly"

"o investidor segue uma estratégia passiva de buy-and-hold"

"a dialéctica entre believers e haters"

"o cinema teve outros provocadores e outros pranksters"

"há muito ganhou o gosto do gimmick"

"anunciada por uma espécie de cliffhanger"

"este projecto é um wake up call fenomenal"

"o back-to-basics está para ficar"

 

Decifre quem quiser. E quem puder.

Das ironias

Rui Rocha, 23.11.12

Há, pelo menos, duas formas de ironia. A primeira socorre-se da linguagem, embora a tome muito para lá do seu valor facial. Quando Aníbal pede na cerimónia de entrega dos prémios Gazeta que digam que esteve mas não falou, o que propõe é um jogo que pressupõe o desvio do sentido literal das palavras que profere. É um tipo de ironia em que o proponente está aos comandos. Para que a ironia funcione é indispensável, é claro, que os destinatários participem. Que desviem o olhar interpretativo do valor facial das palavras para inquirir sobre aquilo que se quis dizer. Neste tipo de ironia há sempre algum risco. Se o proponente não tiver habilidade ou se os destinatários apresentarem uma qualquer barreira ao processo de comunicação (conhecimento deficiente da língua, desconhecimento do contexto ou segundas intenções, por exemplo) o efeito pretendido pode não verificar-se ou acontecer mesmo que a ironia acabe por residir no facto de esta se virar contra quem pretendia ser irónico. Em todo o caso, quando alguém utiliza a linguagem para produzir um significado oposto ou diferente do que decorre do sentido literal das palavras utilizadas temos sempre um proponente que aspira a controlar a informação transmitida, ainda que na prática as coisas possam, como vimos, descontrolar-se. Outras vezes, todavia, a ironia revela-se na descontinuidade entre um efeito e aquilo que seria de esperar que determinada acção viesse a desencadear. Aqui, a ironia não tem nada de voluntário. Surge sem que exista um proposta irónica inicial e intencional. A estas costumamos designá-las ironias do destino, expressão que traduz com a proximidade possível a irrupção de uma situação irónica inesperada e não controlada. Na entrega dos prémios Gazeta, a ironia que Aníbal quis produzir funcionou enquanto tal (outra coisa é saber se beneficia ou não o proponente). O sentido literal de estou calado foi transformado, remetendo para a interpretação do significado dos silêncios de Aníbal. Não deixa de ser irónico, todavia, que o Presidente tenha nesta mesma semana sido protagonista do outro tipo de ironia de que aqui se falou. Quando Aníbal refere a necessidade de regressar ao mar, à agricultura e à indústria, sendo ele quem foi, parece não se dar conta de que foi apanhado a jeito por uma ironia que surge de forma não provocada. É por essas e por outras que, mais do que ironias do destino, prefiro chamar-lhes supremas ironias.

Que se lixem as eleições

Rui Rocha, 25.07.12

Pedro Passos Coelho tem utilizado uma linguagem colorida em diversas ocasiões. Desde a referência ao pote ainda em campanha eleitoral, passando pelos piegas ou pela porcaria na ventoinha e acabando no mais recente que se lixem as eleições. Em geral, não parece um tipo de discurso apropriado à responsabilidade que lhe cabe. Não existe qualquer necessidade de acrescentar a erosão do nível da linguagem à evidente degradação da imagem das instituições. E a linguagem própria da conversa de café é absolutamente de evitar quando existe o risco de ser interpretada como um rótulo negativo que se cola à generalidade dos portugueses. É provável que nenhum erro governativo tenha afectado tanto a imagem de Pedro Passos Coelho como o célebre episódio dos piegas. Isto dito, há momentos em que a utilização de linguagem não institucional faz todo o sentido. Em situações em que o país ou os governantes se encontram extremamente pressionados e perante escolhas fundamentais, não tem o mesmo efeito utilizar termos redondos como o país está acima dos interesses particulares ou encher o peito para dizer que se lixem as eleições. No primeiro caso, trata-se de uma fórmula estafada, utilizada por todos, a propósito de tudo e de coisa nenhuma. No segundo, a coloquidalidade da linguagem introduz uma nota de novidade e tem o efeito de um murro na mesa. Aqui, a linguagem é o contexto de um subtexto que incorpora uma intenção de ruptura, um corte com práticas e políticas cansadas. Daí que o problema dessas declarações de Passos Coelho não esteja no tipo de linguagem utilizada. Pelo contrário, desaconselhável noutras circunstâncias, esta apresenta-se como totalmente adequada à crise que vivemos, à necessidade de profunda mudança e de corte com o passado. A questão está por isso na vinculação à mensagem.  A expressividade das palavras confere-lhe a natureza de um grito. Que todos ouvimos. Gritada como foi, a mensagem vincula Passos Coelho a cumpri-la nas suas acções. E vincula-nos a nós como juízes do seu cumprimento. Não há decisão que Passos Coelho venha a tomar que possa escapar do pano de fundo desse que se lixem as eleições. E não há juízo que possamos formular que não deva tê-lo em conta. Em caso de incumprimento, Passos Coelho está bem lixado.

Houaiss te pego

José Navarro de Andrade, 01.03.12

 

Acabei de ler através do site blogtailors, que recolhe a notícia no Correio da Manhã e no Diário Digital (tudo muito em rede, portanto) que o digníssimo (será este o tratamento protocolar?) procurador regional Cléber Eustáquio Neves (contém-te Zé, os nomes no Brasil são diferentes…) deu entrada no Ministério Público Federal de Uberlândia (MG) uma acção em que solicita a imediata retirada de circulação, venda e distribuição do Dicionário Houaiss.

Sendo eu possuidor de um exemplar em 7 tomos da referida obra, dei atenção à noticia, até por razões assaz egoístas e perversas, com vista ao lucro fácil, pois podia ser que os calhamaços se pudessem valorizar nos alfarrabistas.

De que se queixa o dr. Neves? Do verbete relativo a “ciganos” cujo §5 reza: “que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e §6: “que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina.”

Após arrumar o tomo II "Bat-Cza", onde recolhi a citação supra, corri a verificar no tomo IV "Fre-Mer" se à apoquentação do dr. Neves não teria escapado o verbete relativo a “judeu” e “judiaria”, tendo constatado – e não vos maço mais com citações – que a ira dele poderia ir muito mais além, tendo matéria de sobra para reforçar a queixa de que o Houaiss colabora para “semear a intolerância étnica”. Será que o dr. Neves, ele próprio, sofre de preconceito, saindo em defesa dos ciganos mas negligenciando a proteção linguística dos hebreus?

Ora aqui está um caso chapado desta espécie de fascismo linguístico, que no seu puritanismo e nas suas certezas ideais, intende rasurar a utilização mundana da língua, em nome de uma adequação perfeita aos supinos conceitos que a deve informar. A minha avó, na sua profunda e rústica ignorância teológica, apodava-me de judeu cada vez que eu atirava pedras aos gatos, o que era, no dizer dela, cheia de piedade pelos felinos, uma "judiaria”. Para o procurador de Uberlândia este linguajar eticamente errado (digo eu hoje, ignorava ela, coitada, então), como não deveria ter existido, não deve ser cientificamente registado.

Pior do que o soneto do causídico é a emenda do Instituto Huaiss, que embora lá vá explicando que o dicionário deve ser o “espelho” das “ocorrências da fala”, acaba prostrando-se em desculpas e jurando que na próxima edição da obra tudo estará conforme.

Pobre avó, nunca disseste o que te ouvi dizer, e do teu desaparecido mundo rural não ficará uma vírgula que seja.

Da importância das palavras

Pedro Correia, 20.08.11

 

Um grupo de manifestantes que protestasse nas ruas de Madrid ou de qualquer outra capital europeia contra a visita de um dirigente espiritual islâmico seria logo rotulado de "antimuçulmano". Os participantes nessa manifestação ganhariam de imediato o epíteto de "islamófobos" e não faltaria quem sublinhasse a necessidade de combater ódios religiosos em nome da liberdade de crença e do respeito pela fé alheia.

Tudo muda quando esse dirigente espiritual é o Papa. Os manifestantes passam a ser "laicos", nenhum deles é descrito como anticatólico e muito menos como vaticanófobo. Os gritos de "Papa nazi", "assassinos", "ignorantes", "pedófilos" e "filhos da puta" com que nestes dias alguns destes "laicos" têm brindado centenas de milhares de jovens católicos inserem-se na naturalíssima liberdade de manifestação que justifica aplauso dos mesmos que se indignariam com uma ruidosa reunião de "islamófobos".

Isto deve fazer-nos reflectir sobre a importância das palavras no espaço comunicacional. Nenhuma delas é neutra, nenhuma delas é irrelevante: todas nos chegam carregadas de ideologia. Compete ao bom jornalismo evitar as armadilhas da linguagem que estabelecem dois pesos e duas medidas para situações similares. Porque o preconceito ataca quando menos se espera. Sobretudo o preconceito daqueles que se proclamam livres de preconceitos.