Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Visitar o agressor e só depois o agredido

Pedro Correia, 03.05.22

image.jpg

 

A imagem não podia ser mais reveladora da impotência e da inutilidade da organização criada em 1945 pelos vencedores da II Guerra Mundial: o ditador russo recebeu o secretário-geral da ONU em Moscovo sem um cumprimento, sem um sorriso protocolar – muito menos sem o afável aperto de mão que dispensou a Marine Le Pen quando a diva da extrema-direita gaulesa o visitou em 2017.

António Manuel de Oliveira Guterres, 73 anos, dialogou com Vladímir Putin – e o verbo dialogar não passa aqui de eufemismo – numa longa mesa que os colocava a mais de seis metros de distância. Lembrando a de Citizen Kane, quando o magnata e a esposa já nada tinham a dizer um ao outro após anos de casamento infeliz.

«Missão humanitária», sublinhou o antigo primeiro-ministro português, que permaneceu dois meses encerrado no palácio de vidro em Nova Iorque enquanto a Ucrânia ardia e a Europa assistia à maior deslocação de gente em fuga no continente ocorrida nas últimas oito décadas. Quando enfim decidiu atravessar o Atlântico, já com dez milhões de ucranianos desalojados dos seus lares, Guterres optou por visitar primeiro a potência agressora e só depois a nação agredida. Insólita ordem de prioridades talvez para salvar a face de Moscovo após as recentes derrotas russas em votações no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral das Nações Unidas.

 

Putin, detentor do maior arsenal atómico do planeta e salvaguardado pelo direito de veto que mantém para travar os efeitos práticos de qualquer resolução hostil na ONU, assumiu pose de czar ao dignar-se receber o português no Kremlin.

Se a intenção da visita era demovê-lo de praticar novas atrocidades, foi perda de tempo. Se visava apenas debitar platitudes, Guterres cumpriu o plano. Mostrou-se «muito preocupado com a situação humanitária na Ucrânia», admitiu que a Federação Russa possa ter acumulado «muitos ressentimentos» em anos precedentes e proclamou-se «mensageiro da paz». Missão em que o Papa Francisco supera sem dificuldade o católico socialista que em 2001 abandonou o «pântano» político português para mergulhar 15 anos depois nas águas pantanosas da diplomacia mundial.

 

A frase mais contundente do secretário-geral da ONU em Moscovo, antes de visitar Kiev, foi proferida após a audiência com Putin. Lembrando que há forças militares russas na Ucrânia e não soldados ucranianos na Rússia. Terminou aí a ousadia verbal de Guterres. Bem diferente de um dos seus antecessores, o ganês Kofi Annan, que em 2004 criticou com dureza a intervenção norte-americana no Iraque, considerando-a «ilegal», e em 2006 acusou Washington de desrespeitar o direito internacional em matéria de direitos humanos durante as campanhas militares e no combate ao terrorismo.

Estilos diferentes, contextos diferentes, alvos diferentes. Putin, leitor de Maquiavel, prefere ser temido a ser amado. Guterres situa-se no extremo oposto: ninguém o receia. Até ganha na comparação, embora não pareça.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Estreia calamitosa como líder parlamentar

Paula Santos

Pedro Correia, 27.04.22

maxresdefault.jpg

O PCP é uma organização de ritmos lentos. Tão lentos que o fazem andar em contramão nos trilhos da História.

No plano interno, utiliza um jargão incompreensível para a grande maioria dos portugueses neste século XXI, num país quase sem indústria e portanto destituído daquilo a que o velho partido insiste em chamar «classe operária».

No plano externo, os comunistas ainda se orientam pelo guião da Guerra Fria, concluída em 1991 com a derrota soviética. Indiferentes aos factos, olham para Moscovo como «o sol da terra», fiéis à frase devota que Álvaro Cunhal consagrou na década de 70. Vladímir Putin, que foi tenente-coronel do KGB mas nada tem hoje de comunista, merece-lhes a mesma veneração beata que noutras épocas lhes mereceu Estaline ou Brejnev.

 

Na sua história centenária, nunca o PCP foi dirigido por uma mulher – aqui também inspirado no «sol da terra», pois desde a imperatriz Catarina a Grande, falecida em 1796, jamais a Rússia voltou a ter comando feminino.

Apesar de tudo, vão ocorrendo inovações entre os espessos muros da sede situada na Rua Soeiro Pereira Gomes: há agora, pela primeira vez, uma deputada à frente do grupo parlamentar comunista, circunscrito a seis elementos desde as legislativas de 30 de Janeiro. A escolha recaiu em Paula Alexandra Sobral Guerreiro Santos Barbosa, setubalense de 41 anos e apresentada como «química» de profissão embora seja funcionária do partido, como ali é regra.

No parlamento desde 2009, Paula Santos teve calamitosa estreia como dirigente da sua bancada. Coube-lhe a ingrata missão de dar a cara em defesa do indefensável, tarefa que lhe foi confiada pela cúpula do Comité Central, guardiã dos dogmas, atenta ao menor indício de heresia.

Anunciou ela, lendo um papel nos Passos Perdidos, que os seis comunistas recusariam escutar a mensagem dirigida pelo Presidente da Ucrânia ao parlamento português. Pretexto invocado: Volódimir Zelenski «personifica um poder xenófobo e belicista rodeado e sustentado por forças de cariz fascista e neonazi». Argumento decalcado da narrativa oficial russa, tornando o PCP cúmplice moral do Kremlin, que pratica crimes de guerra na Ucrânia desde 24 de Fevereiro.

 

Que sentido faz isto? Nenhum. Excepto reforçar a coerência dos comunistas portugueses. Convém recordar que este é o mesmo partido que em Dezembro de 2011 rejeitou associar-se a um voto de pesar na Assembleia da República pelo falecimento de Vaclav Havel, primeiro presidente da República Checa democrática. Que em Fevereiro de 2014 recusou condenar os crimes contra a humanidade cometidos pelo regime totalitário da Coreia do Norte. Que em Novembro de 2014 não subscreveu um voto de congratulação pelo 25.º aniversário da queda do Muro de Berlim. E que em Abril de 2017 votou contra uma resolução que condenava o uso de armas químicas na Síria, onde a Rússia protege o ditador Bachar Assad.

Fiéis à cartilha ideológica, alinham com o carrasco contra a vítima. O sol de Moscovo cega quem se fixa em excesso nele.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Flores de retórica em celebração da Primavera

António Costa Silva

Pedro Correia, 21.04.22

transferir.jpg

 

Um bom teórico não tem necessariamente de ser um bom político. Na maior parte das vezes, aliás, os teóricos só entram na política para atrapalhar e não para ajudar. Quando aterram no Governo, a coisa complica-se.

Parece ser o caso do recém-empossado ministro da Economia e do Mar, que vinha aureolado de ser o autor do plano de recuperação económica do país após a grave crise provocada pela pandemia. O esforço intelectual valeu-lhe entusiásticos adjectivos de certos comentadores com lugar cativo na imprensa económica que nunca se cansam de praticar a lisonja para agradar aos poderes de turno.

Tanto o elogiaram que ele chegou ao ministério com sede na Rua da Horta Seca, substituindo o ponderado Pedro Siza Vieira, afastado sem justificação plausível. E há que dizer sem rodeios: a estreia de António José da Costa Silva, aos 69 anos, em debates parlamentares não passou despercebida. Desde logo por ter escorregado na primeira casca de banana que o Bloco de Esquerda lhe pôs à frente. Em resposta ao repto que dali lhe foi lançado na sessão de apresentação do programa do XXIII Governo Constitucional, apressou-se a anunciar a criação de um novo imposto. Para que o Estado possa arrecadar parte dos «lucros aleatórios e inesperados» das empresas.

 

Foi um momento extraordinário, este em que vimos o titular da Economia transfigurar-se em directo. Recusando ser o primeiro aliado do tecido empresarial para se assumir como porta-voz aleatório e inesperado do Ministério das Finanças enquanto o seu colega desta pasta se remetia ao silêncio.

Quase tão memorável foi o perfume das flores de retórica que Costa Silva espalhou no plenário, talvez em louvor e celebração da Primavera. Algumas pareciam decalcadas de cursos por correspondência de auto-ajuda. Eis um exemplo: «Nós podemos sempre sonhar e temos um país que permite sonhar. E a minha função aqui não é puxar o país para baixo, é puxar o país para cima.» Outro: «Muita gente diz que aquilo que estamos a propor é impossível. Mas viver é tornar possível o impossível.»

 

As paredes do vetusto hemiciclo, habituadas a linguagem mais prosaica, até vibraram. Na bancada socialista e até em certos parlamentares sociais-democratas muito próximos de Rui Rio viam-se rostos embevecidos com esta homilia inaugural do ministro, espécie de cruzamento de Boaventura Sousa Santos com Paulo Coelho. Só lhe faltava envergar túnica em vez do fato.

No dia seguinte, o encantamento quebrou-se. Certamente por sugestão do chefe do Governo, mais vocacionado para gerir o possível do que para sonhar o impossível, Costa Silva comunicou à nação que o tal imposto extraordinário não fora sequer abordado no Conselho de Ministros. Decepcionando decerto Catarina Martins e Mariana Mortágua, para quem uma empresa ter lucro é imperdoável pecado. Mas aliviando quem produz riqueza, estimula a inovação e gera postos de trabalho. Falta saber até quando. É só aguardar pela próxima prédica ministerial.

                                               

Texto publicado no semanário Novo.

Primeiro a avançar num combate nada fácil

Luís Montenegro

Pedro Correia, 14.04.22

transferir.jpg

 

À terceira será de vez? Os apoiantes de Luís Montenegro devem fazer esta pergunta na semana em que o antigo líder parlamentar social-democrata confirmou a candidatura às eleições directas para a presidência do PSD, marcadas para 28 de Maio. Avança com a convicção de que «Portugal precisa de uma oposição implacável com os desvios do Governo» e na certeza de que é necessária uma alternativa política a António Costa que «devolva ambição e esperança» num país empurrado para os lugares de baixo no campeonato europeu da prosperidade.

Nada é fácil neste combate. Luís Filipe Montenegro Cardoso de Morais Esteves, 49 anos, advogado de profissão, ambiciona suceder a Rui Rio numa das piores fases da história do partido fundado em 1974 por Francisco Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão.

A última vez que os sociais-democratas passaram a barreira dos 40%, concorrendo isoladamente numa eleição para a Assembleia da República, foi há 20 anos. O errático consulado de Rio favoreceu a recente expansão de forças alternativas no espectro político português, à custa dos sociais-democratas, enquanto o PS celebrava a segunda maioria absoluta da sua história. Pior: o ainda líder laranja, único que registou dois fracassos eleitorais consecutivos em escrutínios parlamentares, tudo tem feito para retardar o processo de sucessão. Na melhor das hipóteses, só haverá nova direcção em plenas funções daqui a três meses, já em Julho. Com meio país de férias.

Montenegro parte para esta corrida com a vantagem de ser o primeiro a declarar-se candidato. Mas também com o estigma de haver sido derrotado duas vezes por Rio em anteriores tentativas de liderar o partido. Além disso, não tendo integrado as listas de deputados, permanece ausente do palco parlamentar. As incógnitas no processo de sucessão acentuam-se com a perspectiva de enfrentar Jorge Moreira da Silva, antigo ministro de Passos Coelho, nesta corrida interna.

Ganhe quem ganhar, espera-o uma tarefa pouco invejável. A bancada laranja está reduzida a 77 parlamentares (menos dois do que os eleitos em 2019), contra os 120 socialistas. E o partido, batido nas urnas a 30 de Janeiro, vive há mais de dois meses numa espécie de vácuo, com uma liderança demissionária em câmara lenta. Vácuo preenchido por ocasionais declarações de Rio que roçam o patético, como quando se apressou a declarar que subscrevia quase por inteiro o discurso inaugural do socialista Augusto Santos Silva enquanto presidente da Assembleia da República, ou até o inaceitável, como quando alertou para possíveis efeitos perversos das sanções europeias à Rússia de Putin, responsável por crimes de guerra na Ucrânia.

Se olharmos para Espanha, percebemos que tudo podia ser diferente. Ali o líder do Partido Popular, Pablo Casado, anunciou a demissão a 22 de Fevereiro e no dia 2 de Abril já estava eleito o sucessor, Alberto Núñez Feijóo. O PSD, parceiro do PP nas fileiras do Partido Popular Europeu, devia aprender alguma coisa com os vizinhos espanhóis.

 

Texto publicado no semanário Novo

Não há paz sem liberdade

Pedro Correia, 18.03.22

9884469_0pbL5.jpeg

Martin Luther King no Memorial de Lincoln, em Washington (1963)

 

Não há paz sem liberdade. E não há liberdade sem esperança. Um político de excepção vislumbra motivos de esperança mesmo entres os clarins da guerra. Um desses políticos foi Abraham Lincoln, autor da mais memorável mensagem de esperança, proferida em plena Guerra Civil norte-americana, a 19 de Novembro de 1863.

Foi o chamado Discurso de Gettysburg: demorou apenas cerca de três minutos. Três parágrafos, 255 palavras - não era necessária nenhuma mais. As forças da União haviam ali derrotado quatro meses antes o insurgente exército confederado do Sul que se batia contra a abolição do esclavagismo, cortando amarras com a política humanista do Norte. Mas Lincoln, embora galvanizado por essa vitória militar recente, pôs de lado a retórica triunfalista e deixou no cemitério local um apelo digno de um estadista: «Compete-nos a nós, os sobreviventes, garantir que aqueles que caíram no campo de batalha não morreram em vão e que nesta nação, sob os auspícios de Deus, renasça a liberdade - e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não desapareça da face da Terra.»

Cem anos mais tarde, este discurso teria sequência num outro, proferido junto ao Memorial Lincoln, em Washington, por Martin Luther King. «Tenho o sonho de que um dia esta nação se erguerá e viverá o significado autêntico do seu credo -- termos por verdade evidente que todos os homens foram criados iguais. Tenho um sonho -- o sonho de que um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de escravos se sentarão juntos à mesa da fraternidade», declarou o reverendo justamente distinguido em 1964 com o Nobel da Paz.

No tempo de Lincoln ainda não havia Nobel. Mas ele tê-lo-ia merecido, mais do que todos os presidentes americanos que viriam a ser galardoados no século e meio seguinte -- de Theodore Roosevelt a Barack Obama. Pela força inspiradora do seu exemplo. Pela eloquência dos seus vibrantes apelos em defesa da dignidade humana. Pela tenacidade e pela coragem de que deu provas no cumprimento de um ideal: nenhum ser humano merece ser condenado à escravatura.

Um ideal que lhe custou a vida: viria a ser assassinado em 1865. Mas o seu apelo de Gettysburg ainda hoje ecoa -- nos EUA e no mundo.

Fé na ressurreição de um partido quase extinto

Nuno Melo

Pedro Correia, 21.02.22

dambin_1-861838_20211009170455.jpg

 

A cena teve uma triste simbologia, demonstrando aos incautos que também os partidos políticos podem morrer: bastaram poucos segundos para desaparafusar a placa que identificava o espaço reservado ao Centro Democrático Social na Assembleia da República. Uma força partidária que chegou a eleger 42 deputados, nas legislativas de 1976, e teve como líderes Diogo Freitas do Amaral, Francisco Lucas Pires e Adriano Moreira nos 15 anos iniciais parece hoje condenada ao eclipse total. Até o PAN e o Livre, etiquetas passageiras sem qualquer implantação no país, ultrapassaram o histórico CDS nas recentes legislativas. É um sinal dos tempos – em consequência da acumulação de erros primários numa agremiação que andou em busca da pureza identitária, fracturada por ódios tribais, característicos das claques de futebol.

Apesar de tudo, ainda lhe restarão hipóteses de sobrevivência? Nada mais natural que um partido de inspiração católica alimente a fé na ressurreição. Por agora, na vetusta sede do Largo Adelino Amaro da Costa – baptizado em homenagem ao malogrado co-fundador do CDS, um dos mais brilhantes oradores da história parlamentar portuguesa – os dias são de Quaresma antecipada. Com mortificação da carne e expiação dos pecados. Mas já um profeta se recorta no horizonte: João Nuno Lacerda Teixeira de Melo, 55 anos, advogado de profissão e político por paixão, há quase três décadas associado ao partido em que se inscreveu na idade adulta, sem cumprir qualquer peregrinação prévia pelas estruturas juvenis.

Ele anuncia que o CDS renascerá das cinzas, esperando ainda mobilizar uma militância quase extinta. Vai formalizar a candidatura à presidência neste sábado, fazendo-o com dupla legitimidade. Porque é o último deputado democrata-cristão que resta – não em São Bento, mas no Parlamento Europeu, onde tem assento desde 2009. E porque já manifestara essa intenção em Outubro, quando desafiou Francisco Rodrigues dos Santos a convocar de imediato um congresso electivo em que ambos seriam submetidos ao escrutínio das bases, anterior à corrida eleitoral no país. Desafio que lhe foi negado, com as consequências que sabemos.

Nuno Melo, minhoto nascido por acaso no Porto, diz-se «um combatente da direita moderada que luta pelas suas ideias» e não esconde que Paulo Portas é a sua «grande referência política em Portugal». Podia ter sido ele o sucessor de Portas, em 2016, mas optou por apoiar Assunção Cristas sem se envolver nas minudências políticas em Lisboa. Avança agora, no pior momento. Parte com um bom lema: «O CDS faz falta a Portugal.» E revela um desígnio louvável: chegou o «tempo de reconstruir.»

É fácil prever que será eleito por quem se dignar comparecer no congresso. Mais difícil é vaticinar-lhe sucesso nesta missão de nadador-salvador já tão fora de pé e tão longe da praia. Certamente leitor de Maquiavel, o eurodeputado não ignora este aforismo do mestre florentino: «A natureza criou-nos com a faculdade de tudo desejar e a impotência de tudo obter.»

 

Texto publicado no semanário Novo

É mais fácil apascentar animais do que gerir pessoas

Inês Sousa Real

Pedro Correia, 15.02.22

Inês-Sousa-Real.jpg

 

Ambicionava «dar voz aos animais». Por contraste, em apenas sete meses de exercício do cargo, a porta-voz do partido Pessoas Animais Natureza foi silenciando diversos seres humanos que gravitavam em seu redor – começando pelo número 2 da lista por Lisboa, agora seu adversário declarado. E fez recuar o PAN ao modesto patamar de 2015, quando se estreou com um deputado solitário. Pior seria difícil em tão pouco tempo.

Ao assumir o comando, em Junho de 2021, Paula Inês Alves de Sousa Real, 41 anos, passou a gerir uma jovem força partidária que elegera quatro deputados e um eurodeputado nos escrutínios de 2019. É verdade que já existiam problemas: o eurodeputado (Francisco Guerreiro) não tardou a retirar o emblema da lapela e uma das deputadas eleitas na Assembleia da República (Cristina Rodrigues) fez o mesmo, tornando-se «não inscrita», segundo reza o eufemismo da moda. Mas o mais grave aconteceu agora. O PAN perdeu em 30 de Janeiro metade dos eleitores, mais de metade da percentagem anterior e 75% dos deputados. Apenas a porta-voz acabaria eleita por Lisboa, à tangente, no fim da noite eleitoral.

O diagnóstico não tardou: foi «uma catástrofe». O qualificativo veio da boca de André Silva, anterior porta-voz do PAN, ausente nas autárquicas e nas legislativas. Entre duras acusações à sucessora por se ter assumido como «porta-estandarte» do Orçamento socialista entretanto chumbado, «arremessando em direcção a tudo o que mexia contra o PS», para depois admitir trocar António Costa por Rui Rio como parceiro de tango.

A campanha, em que quase só ela apareceu, teve aspectos caricatos. Revelando notória incapacidade de díálogo com o cidadão comum, Inês Real fugiu das pessoas para contemplar couves em quintarolas, calçou galochas junto ao Tejo para exigir que o novo aeroporto de Lisboa vá para Beja e organizou uma vigília com velinhas junto ao jardim zoológico em defesa dos golfinhos. Entre as medidas mais emblemáticas do seu programa, destacaram-se estas: criação de uma rede pública de hospitais veterinários, um «plano nacional de desacorrentamento animal» e o alargamento do Código Penal «aos restantes animais sencientes».

O veredicto das urnas foi o que se previa. E que as palavras críticas de Manuel Alegre prenunciavam pouco antes, ao alertar o PS para não se colocar «na eventual dependência do PAN, partido que subverte o primado da pessoa humana». Agora Inês Real enfrenta a demissão de dez membros do seu núcleo directivo e a exigência de um congresso extraordinário para digerir o péssimo desfecho eleitoral. Sabe que tem o lugar em risco. André Silva elevou o tom ao proclamar que «esta liderança pôs o partido na lama». Acossada, ela chama «dissidentes» aos opositores internos, utilizando uma linguagem própria dos sistemas totalitários.

Moral da história: os novos partidos repetem os piores vícios dos antigos, mas em ritmo ainda mais acelerado. Por esta altura, a porta-voz do PAN já terá concluído que é mais fácil apascentar animais do que liderar pessoas.

 

Texto publicado no semanário Novo

O homem que pintou o País de cor-de-rosa

António Costa

Pedro Correia, 08.02.22

i053930.png

 

Diziam que o rumo da economia iria travar-lhe o passo. Juravam que a gestão errática da pandemia, deixando a descoberto inúmeras fragilidades do Serviço Nacional de Saúde, apressaria a sua remoção de cena. Houve até quem antecipasse que seria ele a principal vítima do fim da geringonça, que afinal só lhe serviu para decapitar os antigos parceiros situados à sua esquerda.

Todos estes vaticínios estavam errados. António Luís Santos da Costa, 60 anos, volta a demonstrar que tem sete vidas políticas e possui o talento de transformar cada aparente obstáculo em nova oportunidade para seguir em frente. Sai muito robustecido da eleição de 30 de Janeiro. Desta vez ninguém dirá que venceu «por poucochinho», para usar a expressão que ele próprio celebrizou, visando António José Seguro após as europeias de 2014, no início daquilo que seria a sua escalada para o poder, primeiro no partido e logo depois no país.

Poder que agora se tornará tendencialmente absoluto. Até nisto Portugal anda de passo trocado com a maioria dos países europeus, em que a existência de governos de coligação é regra dominante. Costa emerge do escrutínio de domingo sem necessidade de satisfazer qualquer exigência fora do reduto socialista. Com mais 350 mil votos do que os obtidos em 2019 e um reforço de 5,4 pontos percentuais nas urnas, vê aumentar o seu grupo parlamentar de 108 para um mínimo de 117 deputados (faltam apurar quatro), dobrando o Cabo das Tormentas dos 115 que fez afundar o seu amigo António Guterres no pântano de 2001. 

Acaba de conquistar a maioria absoluta que nenhuma sondagem previu – muito menos aquelas que batiam na tecla do «empate» ou até anteviam uma hipotética vitória do PSD que nunca pairou no horizonte. Com o mapa nacional hoje pintado de cor-de-rosa, promete um governo «mais enxuto» que terá como meta imediata a gestão da chuva de milhões que Portugal vai receber ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência. Mantém uma galeria de quatro presumíveis sucessores em segundo plano nas fileiras socialistas: todos lhe serão úteis, cada qual à sua maneira. Ei-lo dono e senhor do calendário político. Fiel ao mandamento que o acompanha há quatro décadas: o poder não é para contemplar, mas para exercer.

Colhe os frutos da persistência e das circunstâncias felizes que sempre lhe moldaram o percurso. Nenhuma lhe foi tão útil, nos anos mais recentes, como ter um opositor chamado Rui Rio que se apressou a suprimir os debates quinzenais de fiscalização do Governo na Assembleia da República sob a alegação de que era importante «deixar o primeiro-ministro trabalhar» e afirmava querer chegar ao poder «para dialogar com o PS em nome do interesse nacional».

Parece anedótico, mas é um caso sério. Porque, a prazo, nenhuma democracia sobrevive sem uma oposição sólida e credível. A ausência de alternativa a António Costa não será apenas um problema do PSD, que sai ainda mais fragilizado destas legislativas: pode tornar-se um problema do país.

 

Texto publicado no semanário Novo

O elefante plantado no meio da sala

José Sócrates

Pedro Correia, 30.01.22

image.jpg

 

Numa campanha marcada pelo contínuo desfile de animais, talvez devido à acção pedagógica do PAN, aquele que mais deu nas vistas acabou por ser um elefante. Plantado num local nada cómodo para António Costa: a sala de visitas do PS. Roubando espaço de manobra ao líder socialista e lembrando-lhe um passado que ele queria varrer para debaixo da alcatifa.

José Sócrates ressurgiu faz hoje oito dias, em longa entrevista nocturna à CNN Portugal. Quando Costa ainda batia no peito a pedir maioria absoluta. O conselheiro que o persuadiu a adoptar tal estratégia não podia estar mais equivocado.

Exibindo aquele ar de quem anda sempre de mal com o mundo e sente um desprezo sem fim por quantos não lhe alimentam o ego, o autoproclamado «animal feroz» deu um ralhete público ao seu antigo ministro da Administração Interna, que com ele trabalhou entre 2005 e 2007.

«O único conselho que eu daria a quem quer uma maioria absoluta: talvez devesse começar por não desmerecer a única que o PS teve na sua história, aquela que eu tive em 2005.» Eis Sócrates igual a si próprio: não esquece um agravo, considera-se traído por Costa e consegue usar o pronome “eu” duas vezes na mesma frase.

Como se não bastasse, insistiu: «Talvez fosse melhor começar por não pôr em causa a história do PS, que teve um momento muito importante em 2005.»

José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, 64 anos, conseguiu irritar o secretário-geral socialista ao romper o silêncio em plena campanha eleitoral. Na manhã seguinte, confrontado pelos jornalistas que lhe pediam uma reacção à entrevista, Costa não escondia o desagrado. «Não tive oportunidade de ver», reagiu secamente. E seguiu adiante. Tinha o dia estragado. Nada lhe podia agradar menos, nesta romagem às urnas em que disputa cada voto, do que surgir associado à era socrática.

Felizmente para ele, Sócrates deixou claro não ter hoje «nenhuma relação com a direcção do PS» e lembrou que já devolveu o cartão de militante: «Decidi abandonar o partido para preservar a minha dignidade.» Mas revelou que ainda se sente integrado na família socialista, mantém muita gente amiga nas listas eleitorais e continuará fiel ao emblema quando assinalar a cruz no boletim de voto. E rematou, com um esgar de desdém: «O PS não é António Costa.»

A aparição de Sócrates na campanha, entrando como fantasma hamletiano pela porta das traseiras, não podia ter ocorrido em pior momento para alguém que promete confiança e credibilidade aos portugueses. Costa, político com instinto apurado, percebeu de imediato que devia abandonar a reivindicação da maioria absoluta – associada pelos eleitores àqueles anos em que ele se sentava no Conselho de Ministros presidido pelo mais mediático arguido da Operação Marquês. Assim fez: não voltou a aludir ao tema.

A partir daí apenas Pedro Nuno Santos, integrado na caravana socialista em Espinho, insistiu na tecla reivindicando «a maior maioria absoluta que pudermos». Parecia falar com entoação irónica, mas só ele poderá esclarecer.

 

Texto publicado no semanário Novo

O substituto que acabou substituído

João Ferreira

Pedro Correia, 26.01.22

transferir.jpg

 

Se o PCP não fosse assumidamente materialista, já haveria por lá quem se supusesse vítima de bruxedo ou mau-olhado. Têm sido tempos difíceis para o mais antigo partido português: em poucos dias viu o secretário-geral forçado a sair de cena devido a inesperado problema cardíaco e um dos seus indigitados substitutos, João Ferreira, afastado da recém-iniciada campanha eleitoral por ter contraído covid-19. No momento em que Portugal regista o quarto posto entre os países infectados à escala europeia e o sexto lugar a nível mundial.

Em menos de uma semana, João Oliveira avançou como suplente de Jerónimo de Sousa apenas para os debates entre líderes partidários mas acaba de chegar-se à frente também como substituto de João Ferreira no comando da caravana comunista que percorre as estradas do país. Quando seria mais necessário que nunca apenas em Évora, distrito onde é o cabeça-de-lista da CDU sem garantia prévia de eleição. E ainda houve uma manhã em que foi Bernardino Soares – antecessor de Oliveira como líder parlamentar do PCP – a protagonizar uma acção de campanha, desenrolada em Loures. Quatro homens em foco. Num partido em que as mulheres desempenham papéis secundários.

Por tudo isto, João Ferreira desta vez só é notícia pela negativa. Mas estão-lhe reservados altos voos, ninguém duvida. No reduzido núcleo que toma as decisões de fundo na Rua Soeiro Pereira Gomes é ele o ungido para o posto principal, faltando apenas marcar lugar e data. Talvez na próxima Festa do Avante!, cenário apropriado para a transição suave num partido avesso a qualquer mudança.

Ao ser confrontado pelos jornalistas nos seus dois breves dias de intervenção na campanha, o vereador comunista na Câmara de Lisboa, biólogo de formação, foi parco nas palavras. «Preferia que estivesse Jerónimo de Sousa no meu lugar», declarou, especificando que o mais antigo deputado português, agora em recuperação da delicada operação cirúrgica a que foi submetido, é «apenas o rosto mais visível desse imenso colectivo» que ainda se proclama representante «da classe operária e de todos os trabalhadores».

João Manuel Peixoto Ferreira, 43 anos, não assumirá tarefa fácil como secretário-geral num futuro próximo. O PCP definha de escrutínio em escrutínio, tem um eleitorado muito envelhecido e enfrenta o espectro da pandemia que no próximo dia 30 poderá reter em casa milhares de militantes e simpatizantes, receosos de contraírem infecção por irem às urnas. O que traz um problema adicional ao partido, hoje com a menor representação parlamentar e autárquica de sempre.

O relacionamento com o PS, passados os anos de euforia da geringonça, é outra questão de fundo. António Costa não ilude as sérias divergências com os comunistas e provoca-os até garantindo que o seu programa eleitoral resume-se ao Orçamento do Estado que o PCP chumbou há três meses. Se na sede da Soeiro acreditassem em maus-olhados, Costa seria o suspeito principal.

 

Texto publicado no semanário Novo

Ordem para saltar do banco e substituir o titular

João Oliveira

Pedro Correia, 19.01.22

image.jpg

 

A vida é feita de surpresas. E a política, inseparável da vida, não constitui excepção. Ninguém pensaria, no início desta semana, ver João Oliveira defrontar Rui Rio em representação do PCP num debate a dois integrado na campanha eleitoral para as legislativas. Como se o partido da foice e do martelo já tivesse solucionado um problema que há muito sobressalta os seus opacos centros de decisão interna. O problema da sucessão de Jerónimo de Sousa, decano dos dirigentes partidários nacionais – eleito secretário-geral dos comunistas em Novembro de 2004, quando o Presidente da República era Jorge Sampaio e o primeiro-ministro se chamava Pedro Santana Lopes.

Jerónimo, que andava visivelmente debilitado desde o fim da geringonça, foi internado de urgência no hospital Egas Moniz para uma delicada intervenção cirúrgica, forçando o restrito núcleo dirigente do partido a tomar uma decisão mais cedo do que desejaria. Por enquanto só com carácter transitório. Mas poucos duvidam que um novo ciclo teve início na mais antiga e conservadora força partidária existente em Portugal.

Este é o momento para João Guilherme Ramos Rosa de Oliveira, 42 anos, aparecer com estatuto reforçado: nos debates compete-lhe substituir o titular, como se diz na gíria do futebol. Tem experiência de palco desde 2013, quando ascendeu a presidente da bancada comunista na Assembleia da República rendendo Bernardino Soares, outrora um jovem aspirante à liderança que não passou disso. Exibe um potencial empático superior ao de João Ferreira e pratica um discurso menos dogmático do que o antigo eurodeputado, ex-candidato presidencial e actual vereador na câmara de Lisboa. Faltam-lhe talvez credenciais de rigidez ideológica, critério supremo para atingir o topo num partido que ainda se diz representante da classe operária em pleno capitalismo digital.

A verdade é que foi ele a enfrentar Rio no duelo televisivo de quarta-feira, desenrolado em tom cordato mas assertivo, superando a prova. Visibilidade ao mais alto nível para este alentejano adepto do Sporting que se formou em Direito por Coimbra e é cabeça-de-lista às legislativas por Évora, além de ter assento na Comissão Política do Comité Central. Mas não será ele a substituir Jerónimo à frente da caravana comunista que andará de terra em terra até ao próximo dia 28. Essa missão fica agora confiada a João Ferreira. Dois homens candidatos à sucessão num partido que nunca teve uma mulher no posto máximo.

Oliveira, o mais afável, é também o que tem menos hipóteses de lá chegar. E não apenas por algum défice de dogmatismo, aspecto nunca irrelevante no PCP. É que ele foi um dos principais negociadores da geringonça e um dos maiores defensores desta solução política sepultada com o inédito chumbo do Orçamento do Estado. Para isso contou sempre com total apoio de Jerónimo de Sousa. Mas até em partidos caracterizados pelo imobilismo chega sempre um momento em que se torna imperioso virar a página.

 

Texto publicado no semanário Novo

Figura internacional de 2021

Pedro Correia, 12.01.22

MUNONLGUPOX2WFUYECVPC4W2BI.jpg

 

JOE BIDEN

Neste ano que passou, o Presidente dos Estados Unidos da América foi eleito Figura Internacional do Ano pela tribo "delituosa". Em 22 votos expressos, bastante divididos, o sucessor de Donald Trump na Casa Branca recolheu sete.

Joe Biden esteve em destaque por vários motivos, de ordem muito diversa e nem sempre lisonjeiros. Eleito em Novembro de 2020 pelos norte-americanos com a maior votação popular de sempre, tomou posse a 20 de Janeiro numa capital ainda muito marcada pelo assalto ao Capitólio, ocorrido 14 dias antes, e entre fortíssimas medidas de segurança acrescidas das inevitáveis precauções impostas pela pandemia. 

Nestes onze meses de mandato, com maioria tangencial no Congresso, Biden fez regressar os EUA ao Acordo de Paris sobre alterações climáticas, revogando uma decisão do antecessor, deu impulso ao combate à pandemia - considerado ainda insuficiente - e procurou apaziguar as tensões na sociedade norte-americana. Mas a crise sanitária é ainda evidente e a crise migratória tem-se agravado. No plano internacional, redobra de intensidade a guerra comercial com a China e aumenta a tensão na Europa de Leste devido a reiteradas ameaças russas sobre os vizinhos ocidentais. 

O aspecto mais negativo da presidência Biden ocorreu com a retirada das forças norte-americanas do Afeganistão tomado pelos talibãs sem garantir a defesa de largos milhares de afegãos que colaboraram durante duas décadas com os EUA. Uma retirada humilhante, que fez lembrar a de Saigão em 1975.

Quem escolheu Biden no DELITO justificou a opção de forma mais longa, como esta: «Decente, apaziguador e fonte de esperança. Foi o Presidente dos Estados Unidos eleito com o maior número de votos da história daquela democracia referencial para o Ocidente que, à data da votação, estava ferida de morte pelos crimes, vilanias e atropelos à democracia do antecessor do democrata.»   

Ou mais sintética, como esta: «Os EUA voltaram a ter um Presidente.»

 

A segunda posição, com três votos cada, foi repartida. Por Alexei Navalny, o mais conhecido opositor russo, actual preso político nas masmorras de Putin e galardoado em 2021 com o Prémio Sakharov, do Parlamento Europeu, que todos os anos distingue um defensor dos direitos humanos. E por Angela Merkel, que cessou funções como chanceler alemã após 16 anos neste cargo, em que se assumiu diversas vezes como verdadeira líder da Europa.

Merkel, vale a pena recordar, foi eleita Figura Internacional do Ano pelo DELITO em 2010, 2011 e 2015. Ninguém mereceu aqui tanto destaque como ela.

 

E que mais?

Votos isolados em Gabriel Boric, o recém-eleito Presidente do Chile, com apenas 35 anos. Norm Macdonald, comediante canadiano falecido aos 61 anos, «lembrando-nos que precisamos mais do que nunca de humoristas». Katalin Karikó, a cientista húngara que fez o trabalho essencial para o desenvolvimento das vacinas com base no mRNA e que foram usadas para as vacinas da Pfizer/Biontech e Moderna, «parecendo abrir um campo completamente novo para a medicina». O norte-americano Elon Musk, patrão da Tesla e fundador da SpaceX, um dos visionários do nosso tempo. 

Votos isolados também no secretário-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Ghebreyesus, no recém-eleito chanceler alemão, Olaf Scholtz, e no treinador de futebol Roberto Mancini, que conduziu a sua Itália à conquista do Europeu da modalidade.

Houve ainda quem votasse em todos os envolvidos no combate global à pandemia. E no covid e suas variantes - «sempre presente no ângulo morto da visão dos nossos dias».

 

Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange

Figura internacional de 2011: Angela Merkel 

Figura internacional de 2013: Papa Francisco

Figura internacional de 2014: Papa Francisco

Figuras internacionais de 2015: Angela Merkel e Aung San Suu Kyi

Figura internacional de 2016: Donald Trump

Figura internacional de 2017: Donald Trump

Figura internacional de 2018: Jair Bolsonaro

Figura internacional de 2019: Boris Johnson

Figura internacional de 2020: Ursula von Der Leyen

Figura nacional de 2021

Pedro Correia, 11.01.22

1618449.png

 

HENRIQUE GOUVEIA E MELO

De quase desconhecido da opinião pública, tornou-se figura nacional em 2021 - também aqui, no DELITO DE OPINIÃO. Por mérito próprio. Coube-lhe coordenar a estrutura de vacinação contra a covid-19 numa altura em que este processo estava desacreditado a vários níveis: faltavam vacinas, escasseavam recursos humanos, multiplicavam-se vergonhosos casos de gente a furar filas em diversos recantos do País. Henrique Gouveia e Melo, vice-almirante especializado em navegação submarina, pôr ordem na casa e endireitou o que estava torto - que era quase tudo.

Houve mobilização geral, com sucesso. Num só dia, 6 de Julho, foram ministradas mais de 154 mil vacinas. Entre o início de Fevereiro e o final de Setembro, quando cessou funções, Portugal tornou-se referência internacional no combate à pandemia via vacinação. Em Maio, Maria Filomena Mónica descreveu-o assim, sem ironia: «Temos um novo herói: o militar de olhos verdes.» O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que também não é de elogio fácil, enalteceu-o como «verdadeiro líder».

Empenho e eficiência foram dois qualificativos usados na tribo "delituosa" para eleger Gouveia e Melo, por maioria, como Figura Nacional de 2021.

«O seu maior mérito foi ter-nos demonstrado, em especial aos políticos e burocratas, ainda haver portugueses bons e de valor, apostados em servir os outros. De forma simples, com linguagem clara e directa, profissionalismo, competência e organização, afinal tudo o que nos falta há décadas.» Palavras que acompanharam um dos 15 votos recebidos neste blogue pelo actual almirante, recém-empossado como chefe do Estado Maior da Armada.

 

Em segundo lugar ficou Carlos Moedas, eleito a 26 de Setembro presidente da Câmara de Lisboa - a maior surpresa das autárquicas, que ditaram o fim de 14 anos de hegemonia socialista na capital. A sua vitória tangencial frente a Fernando Medina tornou-o não apenas a figura mais em destaque neste acto eleitoral mas também um possível candidato a prazo à liderança do PSD, o seu partido. 

Moedas recebeu seis votos dos autores do DELITO, renovando-se uma tradição deste blogue que remonta a 2012. O último lugar do pódio - com cinco votos - foi ocupado por Rúben Amorim, o treinador-sensação de 2021, que conduziu o Sporting ao título de campeão nacional de futebol após um penoso jejum de 19 anos. Houve quem sugerisse - e a proposta merece ponderação - que devemos passar a eleger a figura desportiva do ano. É uma hipótese a considerar. Para já, Amorim fica como vencedor "oficioso" desta categoria ainda inexistente em 2021. Sem favor algum.

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

Figura nacional de 2016: António Guterres

  Figura nacional de 2017: Marcelo Rebelo de Sousa

Figura nacional de 2018: Joana Marques Vidal

Figura nacional de 2019: D. José Tolentino Mendonça

Figura nacional de 2020: Marta Temido

O nosso compatriota multimilionário

Roman Abramovich

Pedro Correia, 10.01.22

img_440x274$2019_07_26_11_21_45_358116.jpg

 

Portugal, onde os ricos costumam ser alvo de anátemas, concedeu a nacionalidade a um multimilionário russo sem um sussurro de polémica interna. Aconteceu em Abril mas só houve celeuma a partir das críticas agora feitas pelo mais célebre opositor de Vladimir Putin, recém-galardoado com o Prémio Sakharov, do Parlamento Europeu. Alexei Navalny, preso político em Moscovo, diz que a cidadania portuguesa atribuída a Roman Abramovich, por supostas ligações a judeus sefarditas expulsos por D. Manuel I em 1497, deve-se a «malas cheias de dinheiro» que a pagaram.

O ministro dos Negócios Estrangeiros viu-se forçado a reagir face às acusações de Navalny, que classifica Abramovich como «o oligarca mais próximo de Putin que conseguiu enfim encontrar um país onde fazer pagamentos semi-oficiais para acabar na União Europeia». Em alusão ao facto de o magnata passar a movimentar-se sem restrições no espaço comunitário. Augusto Santos Silva esclareceu que a concessão de nacionalidade «segue os habituais escrutínios que são de lei», sem interferência política.

Roman Arkadievich Abramovich, 55 anos, é celebridade mundial desde 2003, quando adquiriu o Chelsea, decadente clube londrino, logo transformado numa das potências do futebol com a conquista de cinco campeonatos ingleses e três Ligas dos Campeões. Sabe-se que integrou o exército soviético. Em 1992 foi detido na Rússia por alegadas transacções ilegais. Durante o mandato de Boris Ieltsin, acumulou fortuna ligada aos processos de privatizações. Residente há duas décadas no Reino Unido, não possui nacionalidade britânica. Em 2016, a Suíça negou-lhe visto de residência. Além de russo, é israelita desde 2018. A revista Forbes elegeu-o como o 142.º indivíduo mais rico do planeta.

A nossa lei da nacionalidade, revista em 2015, permite considerar portugueses os descendentes dos judeus daqui expulsos no século XVI. Abramovich afirma ter descoberto ancestrais sefarditas. Fez o pedido em Outubro de 2020, recebeu luz verde do Ministério da Justiça seis meses depois. Com parecer favorável da Comunidade Judaica do Porto (CJP).

É duvidoso que cumpra os requisitos da lei: ter apelido português, dominar a língua ladina (falada pelas comunidades hebraicas oriundas da Península Ibérica) ou manter efectiva ligação ao nosso país. O facto é que se tornou num dos 32 mil portugueses naturalizados em seis anos ao abrigo da nova cláusula legal – 88% dos quais, segundo noticiou o Público, têm sido encaminhados pela CJP para a Conservatória dos Registos Centrais.

Eis um coleccionador de iates de luxo e jactos privados subitamente transformado no mais rico dos nossos compatriotas. Sem aqui residir nem falar uma palavra do idioma de Camões. Graças à purga retroactiva de pecados históricos expiados quinze gerações depois.

Passamos o tempo a discutir minudências e quase ninguém fala disto: a nacionalidade portuguesa hoje posta em leilão por factos ocorridos há meio milénio. Dificilmente um país assim é levado a sério. Não só pelos de fora, mas pelos que cá vivem.

 

Texto publicado no semanário Novo

Duplo protesto na hora de largar o leme

Almirante Mendes Calado

Pedro Correia, 04.01.22

transferir.jpg

 

Na véspera da consoada, no último Conselho de Ministros antes da quadra festiva e a um mês de eleições legislativas, o Governo voltou à carga: propôs ao Presidente da República a exoneração do chefe do Estado Maior da Armada, trocando Mendes Calado por Gouveia e Melo, o herói do momento neste ramo militar. Tentara isto em Setembro, mês de autárquicas, mas Marcelo Rebelo de Sousa baralhou o jogo, inviabilizando a iniciativa. Agora já não quis ou não foi capaz de repetir o braço-de-ferro com António Costa: o ex-coordenador do plano de vacinação contra a covid-19 acabou empossado dia 27, no início da semana entre o Natal e o Ano Novo que todos os governos reservam para cumprir actos incómodos. Por saberem que nesta quadra há muito menos escrutínio político e é quase inexistente o escrutínio jornalístico.

De uma assentada, Costa alcança dois objectivos, concretizados ainda antes da conclusão das novas leis orgânicas do Estado Maior General das Forças Armadas e dos três ramos castrenses. Por um lado utiliza o empossado – agora promovido a almirante – como trunfo eleitoral do PS; por outro, consegue silenciá-lo após uma meteórica sucessão de entrevistas em que Gouveia e Melo ia subindo o tom das declarações, já não como vulto militar mas como eventual protagonista político. Confessou a ambição de ser ministro do Mar, admitiu vir a criar um movimento cívico e não rejeitou o cenário de candidatar-se a Presidente da República quando passar à reserva.

António Maria Mendes Calado, 64 anos, recusou ser figurante neste filme. Militar de inatacável prestígio, com cerca de 20 mil horas de navegação no currículo, gravou um vídeo de despedida na página oficial do seu ramo no Facebook tornando inequívoco que não saía por vontade própria. «Os que me conhecem não entenderiam que abandonasse o leme da nossa Marinha depois de resistir ao temporal que nos assolou nos últimos tempos», declarou. Numa alusão à recente reforma das Forças Armadas em que o Governo reforçou os poderes do chefe do Estado Maior-General, em detrimento de quem comanda o Exército, a Marinha e a Força Aérea.

Marcelo, embaraçado, reconheceu que Mendes Calado não solicitou a exoneração das funções desempenhadas desde Março de 2018 e em que fora reconduzido há dez meses. Admitiu que o almirante «quis marcar a sua posição» e acentuou que «cumpriu até ao fim, de forma brilhante», uma carreira de 47 anos de serviço naval. Enfim, anunciou a intenção de lhe atribuir a Grã-Cruz da Ordem de Cristo. Palavras e gestos de circunstância de um comandante supremo apanhado entre dois fogos.

Nada disto parece ter comovido o chefe cessante da Armada, que em 2004 comandou a força naval convocada para apaziguar uma das mais graves crises de sempre na Guiné-Bissau. Mendes Calado redobrou o protesto, decidindo não comparecer à brevíssima sessão de posse do seu sucessor no Palácio de Belém. E assim, primando pela ausência, tornou-se o verdadeiro protagonista daquele dia. Alguns candidatos a políticos deviam aprender com ele.

 

Texto publicado no semanário Novo

Com todas as letras, sem exterminar consoantes

António Feijó

Pedro Correia, 28.12.21

2985346.jpg

 

Em semana natalícia, despolitizemos algum espaço de reflexão. Por isso hoje se destaca um intelectual verdadeiro, daqueles que não precisam de pôr-se em bicos de pés a soltar estridências para se fazerem notar. António Feijó acaba de ser eleito presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. Pelos seus pares, em votação secreta e com efeitos a partir de Maio, mês em que cessa funções a actual titular, Isabel Mota.

Justa consagração para o pró-reitor da Universidade de Lisboa, com um percurso académico e literário que fala por si. Vai gerir a mais rica fundação do país, dotada com fundos próprios que ascendem hoje a 3,2 mil milhões de euros. Não falta quem a considere o verdadeiro Ministério da Cultura português, sendo também referência em áreas tão diversas como a educação, a ciência, a saúde e o ambiente.

António Maria Maciel de Castro Feijó já tinha assento desde 2018 no órgão máximo de gestão da Gulbenkian, como administrador não-executivo. Está habituado a cargos de decisão. Entre 2008 e 2013 dirigiu a Faculdade de Letras de Lisboa, onde é professor catedrático. Em 2014 assumiu a presidência do Conselho Geral Independente, que supervisiona o Conselho de Administração da RTP. Levou até ao fim o mandato de seis anos, deixando inequívoco o seu entendimento do que deve ser esta empresa sempre tão envolta em polémica: «O operador público de rádio e televisão não deve fidelidade a um governo mas deve fidelidade aos contribuintes, àqueles que pagam a chamada contribuição audiovisual.»

Diplomado em Estudos Americanos e doutorado em Literatura Inglesa pela Universidade de Brown, nos EUA, onde viveu durante os mandatos presidenciais de Jimmy Carter e Ronald Reagan, é prefaciador de Agustina Bessa-Luís, especialista na obra de Teixeira de Pascoes, tradutor de Shakespeare e Oscar Wilde. Em 2016 venceu o Prémio Jacinto do Prado Coelho, atribuído pela Associação Portuguesa dos Críticos Literários, distinguindo o seu livro Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes) que mereceu insuspeitas palavras de elogio. Rui Ramos, no Observador, chamou-lhe «um milagre de erudição e subtileza».

O recém-eleito presidente da Fundação Gulbenkian assume-se ainda «absolutamente contra» o acordo ortográfico que visava o impossível: unificar as diversas formas de escrever em português. Objectivo que não foi nem jamais será alcançado.

«Temos uma tradição política iliberal de o Estado se arrogar uma série de decisões que não lhe competem. O Estado abstém-se de entrar em certos domínios da economia porque entende que não tem vocação para o fazer. Então porque há-de entrar nas consoantes mudas?», declarou numa entrevista em 2012. Invocando um exemplo que bem conhece: «O inglês entre os EUA e a Inglaterra tolera grafias diferentes. Seria impensável para eles que a ortografia fosse homogeneizada. Nem num país nem noutro alguém presume que pudesse ser objecto de um acordo.»

O nosso idioma merece: há que salvar todas as consoantes da extinção.

 

Texto publicado no semanário Novo

Pulseira electrónica ou caução de seis milhões

Manuel Pinho

Pedro Correia, 21.12.21

doc2018122025312402cotr94143681a974defaultlarge_10

 

Em Portugal, a instrução judicial em torno de ilícitos criminais, quando estão em causa influentes e poderosos, parece um caminho sinuoso rumo ao inevitável desfecho por prescrição. Só assim se entende que o mais emblemático dos ministros da Economia dos governos Sócrates tenha sido figura desta semana por factos supostamente ocorridos entre 2007 e 2009. Foi necessário mudar o juiz titular do processo que vegetava no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, após um sem-fim de recursos, para o caso dar um passo em frente.

Manuel António Gomes de Almeida de Pinho, 67 anos, é arguido desde 2017 por indícios de corrupção e branqueamento de capitais com verbas oriundas do Grupo Espírito Santo, ao qual esteve ligado durante cerca de duas décadas, quando Ricardo Salgado parecia mesmo o dono disto tudo. Só em 2021 começou a ser ouvido no âmbito desta instrução que avançou a passo de caracol.

O juiz Carlos Alexandre, novo titular do processo, impôs-lhe quarta-feira uma severa medida de coacção: fica sob detenção domiciliária, com pulseira electrónica, salvo se apresentar uma inédita caução de seis milhões de euros. Alega o magistrado que haveria risco de fuga, pois o antigo governante cancelou as contas bancárias em Portugal, reside habitualmente no sul de Espanha e possui residência nos EUA, além de se deslocar com frequência à China – país que visitou em 2007, enquanto ministro, apelando a Pequim para investir em Portugal por haver aqui «mão-de-obra mais barata do que em Espanha». Curioso argumento na boca de um socialista que tutelou a Economia entre 2005 e 2009.

Pinho é suspeito de ter favorecido a EDP neste país que paga hoje uma das facturas de electricidade mais pesadas da Europa. Obtendo como suposta moeda de troca um posto de professor convidado na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, após a eléctrica portuguesa ter atribuído 1,2 milhões de dólares a esta instituição. O ex-governante deverá ainda justificar os mais de 500 mil euros que aparentemente recebeu do “saco azul” do GES enquanto desempenhou funções ministeriais: cerca de 15 mil euros por mês, não declarados ao fisco, que seriam pagos através de uma sociedade offshore.

Parece o enredo de uma vulgar série de corrupção política. Onde não falta a habitual gritaria dos advogados com acesso permanente às tribunas mediáticas clamando contra hipotéticos «abusos do Ministério Público» e daqueles tudólogos que se indignam quando o aparelho judicial desperta da letargia e começa a funcionar. Alguns são os mesmos que há poucos dias ferviam de indignação contra a negligência da justiça por ter deixado escapar João Rendeiro.

Políticos envolvidos nas malhas dos negócios e uma justiça que protela e arquiva em vez de combater os crimes de colarinho branco: eis um explosivo cocktail que favorece a mais despudorada demagogia dos extremistas prontos a apontar o dedo às fragilidades do sistema democrático. Infelizmente, não é filme: são cenas demasiadas vezes repetidas da nossa vida real.

 

Texto publicado no semanário Novo

A ministra que preferia não estar ali

Francisca Van Dunem

Pedro Correia, 14.12.21

francisca-van-dunem-2.jpg

 

A sessão foi curta: decorreram escassos cinco minutos entre a chegada e a partida, no Palácio de Belém. Com a empossada a demonstrar, de modo evidente, que preferia não estar ali. Na altura de prestar o juramento como ministra da Administração Interna foi incapaz de recitar a fórmula consagrada nestas ocasiões, alegou não conseguir ler por se ter esquecido dos óculos e necessitou de ajuda para cumprir essa formalidade. Como os actores que precisavam de ponto nas antigas peças de teatro.

Momento confrangedor, não apenas para ela mas certamente também para o primeiro-ministro que assistia à abreviadíssima cerimónia sem direito a convidados nem declarações finais. Francisca Eugénia da Silva Dias Van Dunem, 66 anos, assumiu na segunda-feira a pasta da Administração Interna, em substituição do exonerado Eduardo Cabrita. Chega a um dos postos mais relevantes do Governo, em acumulação de funções, quando já não queria lá estar pelo menos desde o primeiro semestre deste ano.

Não se trata de segredo de Estado: ela própria o confessou, em entrevista, ao revelar que havia acertado a saída com António Costa mal terminasse a presidência da União Europeia confiada a Portugal até 30 de Junho. Desgastada por seis anos em funções governativas e um coro de críticas à sua actuação como ministra da Justiça. Com destaque para a não-recondução da anterior procuradora-geral, Joana Marques Vidal, e a controversa nomeação de José Guerra para procurador europeu. Num país em que os tribunais administrativos são os segundos mais lentos da União Europeia: cada caso, em média, aguarda mais de 900 dias pela resolução só em primeira instância. Num país em que as custas judiciais afastam o cidadão comum dos tribunais: para recuperar uma dívida de três mil euros, é necessário pagar mais de 200 logo à partida – um dos montantes mais elevados da Europa.

«Era a combinação que tínhamos», declarou a inesperada sucessora de Eduardo Cabrita, magistrada do Ministério Público, em entrevista ao Público no mês passado. Aludia a Costa com palavras que não permitiam dúvidas: «Temos que dar lugar a outras pessoas. O meu lugar não é aqui, a minha profissão não é esta.» Mal imaginava a tarefa acrescida que o primeiro-ministro lhe reservava: dois pelouros governativos em vez de um. Irá manter-se no executivo pelo menos até Fevereiro. E o prazo pode dilatar-se caso as legislativas de 30 de Janeiro não permitam uma alternativa clara e rápida de governo.

Acumulação agora improvisada pelo político que habituou os portugueses a encontrar soluções que afinal agravam os problemas. Numa pasta que tutela a GNR, a PSP, a Autoridade Nacional de Protecção Civil e o SEF que era para extinguir mas afinal não se extinguiu – numa das trapalhadas em que Cabrita se envolveu. Tivesse a saída do «excelente ministro» (Costa dixit) da Administração Interna ocorrido quando devia e escusava Francisca Van Dunem de enfrentar este sacrifício suplementar.

 

Texto publicado no semanário Novo

«Preparadíssimo para ser primeiro-ministro»

Rui Rio

Pedro Correia, 08.12.21

img_440x274$2021_08_05_12_05_33_409812.jpg

 

A História, com agá maiúsculo, escreve-se muitas vezes a partir de minúsculos pormenores. Regressemos por momentos a 2008: José Sócrates, com maioria absoluta, estava no auge do seu consulado. O PSD ficou órfão de líder, como tantas vezes tem acontecido. Todos os olhares se viraram para o Porto: ousaria Rui Rio descer à capital para tomar conta do partido que tanto parecia desejá-lo?

Hesitou, chegou a alimentar expectativas, mas a resposta foi negativa. A pretexto de completar o mandato na Câmara do Porto, onde estava desde 2001, decidiu ficar por lá. Avançou então Manuela Ferreira Leite, como solução de recurso. Sabemos o que sucedeu nas legislativas de 2009: nova maioria do PS, embora sem maioria absoluta.

Sem aquela hesitação, talvez o país tivesse sido poupado a dois anos suplementares de socialismo em versão socrática. Talvez Passos Coelho jamais tivesse ascendido à liderança do PSD. Talvez a geringonça de António Costa continuasse a ser mero exercício especulativo sem aplicação prática.

Mas Rui Fernando da Silva Rio, à época com 51 anos, recusou montar o cavalo do poder. Talvez por não sentir o menor fascínio por Lisboa, onde se manteve como deputado durante a década de 90 e foi efémero secretário-geral do PSD, com Marcelo Rebelo de Sousa na liderança. Desentenderam-se. Há quem jure que as relações entre ambos nunca voltaram a ser as mesmas.

 

Os tempos são outros: com um em Belém, o outro aspira à chefia do Governo e os seus mais próximos garantem que está «preparadíssimo para ser primeiro-ministro». A hesitação anterior forçou-o a aguardar quase cinco anos entre o fim do mandato autárquico e a corrida à sucessão de Passos. Lidera desde Janeiro de 2018 um partido que com ele ao leme mantém o segundo posto em todas as sondagens.

Rio milita desde os 18 anos, conhece as hostes sociais-democratas como poucos e sabe falar para as bases envelhecidas e rarefeitas. Superou três adversários sucessivos – Santana Lopes, Luís Montenegro, agora Paulo Rangel. Na mais recente eleição interna – que venceu por 1746 votos num escrutínio com 36 mil votantes – acenou ao povo laranjinha com aquilo que ele mais queria ouvir: a perspectiva de um regresso rápido do PSD ao poder. Se tiver de ser com o PS, que seja.

Nos quatro anos mais recentes, aliás, já houve sintonia entre os dois partidos em questões tão diversas como o fim dos debates quinzenais no parlamento, a imposição do mandato único à Procuradora-Geral da República, o condicionamento das ordens profissionais, as nomeações políticas para as comissões de coordenação e desenvolvimento regional e a flexibilização das regras da contratação pública, só para citar alguns exemplos.

É mais fácil imaginar Rio como hipotético vencedor das legislativas de 2009 contra um Sócrates já enfraquecido do que a conseguir o triunfo nas urnas a 30 de Janeiro. Mas a política, imitando a vida, é feita de mil surpresas. Para vencer, o primeiro requisito básico é estar no sítio certo à hora que o destino marca e a vontade dos eleitores impõe. O resto são cenários. E dos cenários não reza a História.

 

Texto publicado no semanário Novo

Da rádio pirata ao palco global

Nuno Santos

Pedro Correia, 02.12.21

transferir.jpg

 

Nuno Santos não deve ser supersticioso. Se o fosse, talvez sugerisse outro dia para o lançamento da CNN Portugal. 22 de Novembro é uma data traumática para milhões de norte-americanos: recorda-lhes a fatídica manhã em que o Presidente John Kennedy foi assassinado em Dallas, fez agora 58 anos. Nessa altura ainda o jornalista iniciado numa rádio pirata na Amadora não tinha nascido. Mas chegou à profissão a tempo de testemunhar as maiores mudanças desde sempre registadas num meio que transitou do analógico para o digital. Da monopolista RTP a preto e branco a que ele assistia em miúdo à informação instantânea que hoje recebemos nos telefones de bolso, a revolução tecnológica alterou a face do planeta. O canal de notícias fundado em 1980 pelo magnata Ted Turner – a Cable News Network, com sede em Atlanta, Geórgia – foi um primeiro passo nessa direcção com a sua aposta deliberada nas transmissões em directo. Encarando o mundo como palco global.

Director da CNN Portugal, nascida nesta segunda-feira, Nuno Santos inaugura aos 53 anos outra etapa numa vida profissional em que subiu a pulso desde aqueles dias remotos na Rádio Regional da Amadora. Seguiram-se a Rádio Mais, a Comercial, a TSF – e depois a televisão, onde seguiu o mesmo percurso ascendente. Dirigiu a programação dos três canais generalistas e comandou a informação da RTP. Em 2001 foi ele a conduzir o parto da SIC Notícias, contrariando as vozes agoirentas que sempre se escutam nestas ocasiões, incluindo a de muitos jornalistas, avessos à mudança. Teve sucesso, como sabemos: a marca impôs-se. E não hesitou em assumir rupturas sempre que entendeu ser necessário.

Andou por fora durante seis anos, trabalhando em projectos ligados à comunicação na área digital em países tão diversos como a África do Sul, Emirados Árabes Unidos e Espanha. Regressou em 2019 para lançar outro projecto de raiz: o canal 11, da Federação Portuguesa de Futebol – hoje uma referência no panorama desportivo nacional. Não tardou a receber uma proposta irrecusável da TVI, onde foi director de entretenimento e director-geral. Mantém-se no grupo Media Capital, agora com o maior desafio da sua carreira, nesta parceria entre o canal informativo com sede em Queluz e o grupo americano Turner Broadcasting.

A CNN Portugal é parcela mínima num império que alcança 425 milhões de lares em todos os continentes. Isto não diminui a motivação de Nuno Santos, que continua a entrar em campo com a mesma determinação do futebolista homónimo que integra o plantel do Sporting. A coincidência onomástica deve fazer sorrir o Nuno televisivo, sportinguista do coração.

Na noite da inauguração deste canal que passou a dirigir, pronunciou frases simples e claras: «Queremos elevar o patamar do jornalismo que se faz em Portugal. Acreditamos que é possível.» Palavras ambiciosas, num tom que raras vezes se escuta neste país de queixumes e lamúrias. E que de algum modo o definem: ele faz questão de remar contra a corrente.

 

Texto publicado no semanário Novo