Visitar o agressor e só depois o agredido
A imagem não podia ser mais reveladora da impotência e da inutilidade da organização criada em 1945 pelos vencedores da II Guerra Mundial: o ditador russo recebeu o secretário-geral da ONU em Moscovo sem um cumprimento, sem um sorriso protocolar – muito menos sem o afável aperto de mão que dispensou a Marine Le Pen quando a diva da extrema-direita gaulesa o visitou em 2017.
António Manuel de Oliveira Guterres, 73 anos, dialogou com Vladímir Putin – e o verbo dialogar não passa aqui de eufemismo – numa longa mesa que os colocava a mais de seis metros de distância. Lembrando a de Citizen Kane, quando o magnata e a esposa já nada tinham a dizer um ao outro após anos de casamento infeliz.
«Missão humanitária», sublinhou o antigo primeiro-ministro português, que permaneceu dois meses encerrado no palácio de vidro em Nova Iorque enquanto a Ucrânia ardia e a Europa assistia à maior deslocação de gente em fuga no continente ocorrida nas últimas oito décadas. Quando enfim decidiu atravessar o Atlântico, já com dez milhões de ucranianos desalojados dos seus lares, Guterres optou por visitar primeiro a potência agressora e só depois a nação agredida. Insólita ordem de prioridades talvez para salvar a face de Moscovo após as recentes derrotas russas em votações no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral das Nações Unidas.
Putin, detentor do maior arsenal atómico do planeta e salvaguardado pelo direito de veto que mantém para travar os efeitos práticos de qualquer resolução hostil na ONU, assumiu pose de czar ao dignar-se receber o português no Kremlin.
Se a intenção da visita era demovê-lo de praticar novas atrocidades, foi perda de tempo. Se visava apenas debitar platitudes, Guterres cumpriu o plano. Mostrou-se «muito preocupado com a situação humanitária na Ucrânia», admitiu que a Federação Russa possa ter acumulado «muitos ressentimentos» em anos precedentes e proclamou-se «mensageiro da paz». Missão em que o Papa Francisco supera sem dificuldade o católico socialista que em 2001 abandonou o «pântano» político português para mergulhar 15 anos depois nas águas pantanosas da diplomacia mundial.
A frase mais contundente do secretário-geral da ONU em Moscovo, antes de visitar Kiev, foi proferida após a audiência com Putin. Lembrando que há forças militares russas na Ucrânia e não soldados ucranianos na Rússia. Terminou aí a ousadia verbal de Guterres. Bem diferente de um dos seus antecessores, o ganês Kofi Annan, que em 2004 criticou com dureza a intervenção norte-americana no Iraque, considerando-a «ilegal», e em 2006 acusou Washington de desrespeitar o direito internacional em matéria de direitos humanos durante as campanhas militares e no combate ao terrorismo.
Estilos diferentes, contextos diferentes, alvos diferentes. Putin, leitor de Maquiavel, prefere ser temido a ser amado. Guterres situa-se no extremo oposto: ninguém o receia. Até ganha na comparação, embora não pareça.
Texto publicado no semanário Novo.