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Delito de Opinião

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 30.05.23

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Livro cinco: Como Perder uma Eleição, de Luís Paixão Martins

Edição Zigurate, 2023

193 páginas

 

Este livro devia ser lido por quase todos os políticos portugueses: só teriam a ganhar com isso. As excepções são José Sócrates, Cavaco Silva e António Costa, pois já sabem do que trata: o autor concebeu o plano de comunicação e forneceu alguma logística que lhes permitiu vencer nas urnas com maioria absoluta. Sócrates nas legislativas de 2005, Cavaco nas presidenciais de 2006, Costa há pouco mais de um ano - inaugurando, por sinal, o pior período da sua governação. 

O título, obviamente, é irónico. A obra desenvolve-se neste registo de branda ironia. Evidencia o que está certo ao enunciar, por contraste, o que é errado: «Fazer uma campanha dirigida aos fãs»; «Cantar vitória nas sondagens»; «Divergir da bolha mediática»; «Projectar o debate como um combate de boxe»; «Agendar episódios e incidentes»; «Convocar activos tóxicos»; «Querer agradar a todos»; «Ter a ambição de mudar o mundo em dois meses». 

Luís Paixão Martins aproveita para atribuir créditos à empresa que fundou: tem fama (e certamente proveito) de ser a mais influente agência de comunicação do País. Enquanto ajusta contas de caminho. Com jornalistas, colunistas, bitaiteiros vários, barómetros armados em sondagens que acertam em tudo menos no alvo. E também com alguns políticos, como Ana Gomes e Francisco Louçã. «Preciso de inimigos novos. Entrei na fase de achar graça aos antigos», confessa a dado passo este tarimbado consultor. Farpas em estilo cáustico que apimentam a escrita sem lhe roubar elegância. 

Apontamentos ditados pela experiência não faltam nestas páginas. Eis um dos mais argutos: «Se um político for de plástico, a culpa não é do aconselhamento. Não há nenhum consultor no mundo que dê autenticidade a um político de plástico.»

Como Perder uma Eleição é útil não apenas a políticos em início de carreira, mas até a quem ambiciona lugar cativo como comentador em estúdios de rádio ou televisão. Não basta ter algum jeito ou parecer bom. É preciso muito trabalho, férrea determinação, alguma sorte. E saber do que se fala. Palrar só por palrar é próprio de papagaios.

 

Sugestão 5 de 2016:

Telex de Cuba, de Rachel Kushner (Relógio d' Água)

Sugestão 5 de 2017:

Coração de Cão, de Mikhail Bulgákov (Alêtheia)

Sugestão 5 de 2018:

Octaedro, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 5 de 2019:

Júlio de Melo Fogaça, de Adelino Cunha (Desassossego)

Sugestão 5 de 2020:

Por Amor à Língua, de Manuel Monteiro (Objectiva)

Sugestão 5 de 2021:

Gramática Para Todos, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Sugestão 5 de 2022:

As Praias de Portugal, de Ramalho Ortigão (Quetzal)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 29.05.23

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Livro quatro: Biblioteca Pessoal, de Jorge Luis Borges

Reedição Quetzal, 2023

155 páginas

 

O último livro em que Jorge Luis Borges trabalhou, pouco antes de falecer, foi este guia dos seus gostos literários mais marcantes que funciona como bússola para o leitor comum. «Uma biblioteca de preferências», como salienta o autor no breve prólogo. Convicto, como havia escrito anos antes, que «todas as coisas do mundo conduzem a um encontro ou a um livro.»

Passam por aqui alguns clássicos, como seria de prever. Obras como As Mil e uma NoitesAs Viagens de Gulliver, a EneidaOs Nove Livros da História, de Heródoto, A Descrição do Mundo (Marco Polo), A Vida Amorosa de Moll Flanders (Daniel Defoe), Os Demónios (Dostoievski), dois títulos de Quevedo e um de Thomas de Quincey. Mas o século mais representado é aquele em que Borges (1899-1986) ganhou fama como um dos gigantes da literatura. Numa lista que privilegia o romance, mas sem excluir o conto (Voltaire, Poe, Kipling, Chesterton, Cortázar), o drama (Ibsen, Shaw, Eugene O'Neill), o ensaio (Oscar Wilde), a filosofia (Henry James, Kierkgaard), a literatura de viagens (Um Bárbaro na Ásia, de Henri Michaux) e até um dicionário de mitos gregos (compilado por Robert Graves).

Borges surpreende os leitores rejeitando escolhas óbvias. Kafka surge com América e não com O Processo; Melville é destacado com três títulos, nenhum deles Moby Dick; Flaubert está representado por A Tentação de Santo Antão em vez de Madame Bovary

Já doente, foi ditando estas notas a Maria Kodama -- algumas tão sucintas que são meras fichas de leitura. A sua morte deixou o projecto amputado: em vez das cem previstas, ficaram 85. Incluindo menções a obras-primas como A Máquina do TempoO Deserto dos Tártaros, Pedro PáramoO Coração das Trevas

Para o leitor português, eis a notícia mais relevante: um dos livros destacados é O Mandarim, do nosso Eça de Queiroz. Devia a editora ter corrigido um grave erro factual: o autor d' O Aleph diz que Eça viveu na China, quando nem sequer andou lá perto. Mas Borges não lhe poupa elogios: garante que «cada oração [dele] foi limada e temperada, cada cena da [sua] vasta obra múltipla foi imaginada com probidade».

Lembra que Eça e Wilde morreram no mesmo ano, 1900. Eram «dois homens de génio», sem favor algum.

 

Sugestão 4 de 2016:

Páginas de Melancolia e Contentamento, de António Sousa Homem (Bertrand)

Sugestão 4 de 2017:

Os Filipes, de António Borges Coelho (Caminho)

Sugestão 4 de 2018:

Não Respire, de Pedro Rolo Duarte (Manuscrito)

Sugestão 4 de 2019:

Dois Países, um Sistema, de Rui Ramos e outros (D. Quixote)

Sugestão 4 de 2020:

Que Nós Estamos Aqui, de João Tordo (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Sugestão 4 de 2021:

Uma História da ETA, de Diogo Noivo (E-primatur)

Sugestão 4 de 2022:

História de um Homem Comum, de George Orwell (E-primatur)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 28.05.23

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Livro três: Malina, de Ingeborg Bachmann

Edição Antígona, 2022

310 páginas

 

Digressão quase dilacerante (incluindo traços premonitórios da trágica morte da autora austríaca) aos abismos da depressão neste romance que caminha sobre uma camada de gelo muito frágil, ameaçando quebrar-se a qualquer momento. "Autoficção", é o que proclamam agora em parangonas, desde o recente Nobel atribuído à francesa Annie Ernaux, como se fosse novidade. Mas não é. Basta lembrar que este livro tem mais de meio século: apareceu em 1971.

Dramaturga, poetisa e romancista, Ingeborg Bachmann - nunca expressamente mencionada no texto, excepto pela inicial do nome, conferindo à obra reminiscências kafkianas - tenta exorcizar fantasmas pessoais, com alusões abertas ou veladas à ocupação da Áustria, primeiro pelos nazis, depois pelos soviéticos até 1955, mesclada na relação de amor-ódio face ao pai, presumível colaborador do ocupante germânico. Na idade adulta encontra dois pais "substitutos" na relação assexuada com homens de temperamentos muito diferentes, Ivan e Malina, mas nenhum será capaz de libertá-la do declive em que se afunda.

Notável, embora de leitura nada fácil, o capítulo dominado pela sucessão de pesadelos: o freudianismo anda aqui à solta. Num segmento do livro intitulado "O Terceiro Homem", em óbvia alusão à novela de Graham Greene também ambientada na Viena do pós-guerra. «Estou na câmara de gás, é o que é, é a maior câmara de gás do mundo e eu estou sozinha dentro dela. Não há defesa contra o gás. O meu pai desapareceu; ele sabia onde estava a porta e não ma indicou, e enquanto vou morrendo, morre também o meu desejo de voltar a vê-lo e de lhe dizer o mais importante.» (Tradução de Helena Topa.)

«Ingeborg Bachmann é a primeira mulher da literatura do pós-guerra no espaço de língua alemã a retratar, através de meios radicalmente poéticos, a continuação da guerra, da tortura, da aniquilação na sociedade e nas relações entre homens e mulheres», sublinha em posfácio outra escritora austríaca, Elfriede Jelinek (Nobel de 2004). Habitante de um Estado de fronteira, habituada a escutar e a falar italiano e esloveno, Bachmann viveu a entrada das tropas hitlerianas na Caríntia, aos 12 anos, como um quadro de horror em estado puro.

Eis um dos objectivos da literatura de qualidade: ajudar-nos a entender melhor a natureza humana, nas suas luzes e sombras. Malina aproxima-se da perturbante Campânula de Vidro (1963), de Sylvia Plath, embora em toada ainda mais agreste e radical. Viagem ao fim da noite sem vislumbre de resgate.

 

Sugestão 3 de 2016:

Política, de David Runciman (Objectiva)

Sugestão 3 de 2017:

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)

Sugestão 3 de 2018:

Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)

Sugestão 3 de 2019:

Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)

Sugestão 3 de 2020:

ABC da Tradução, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Sugestão 3 de 2021:

Intervenções, de Michel Houellebecq (Alfaguara)

Sugestão 3 de 2022:

O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral (Leya)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 27.05.23

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Livro dois: O Plantador de Malata, de Joseph Conrad

Edição Sistema Solar, 2023

123 páginas

 

Novela nebulosa, percorrida por uma aura de mistério. Como tantas vezes acontece com as obras de Joseph Conrad (1857-1924), um dos maiores estilistas da língua inglesa - que não era o idioma materno deste polaco nascido na Ucrânia na condição de súbdito do império russo e reconhecido como cidadão britânico só em 1886, no auge da sua carreira na marinha mercante que o levou a navegar em diversos mares do globo. Essas viagens por alguns dos lugares mais remotos do planeta, que foi fazendo até aos 35 anos, tornaram-se matéria-prima essencial da sua ficção literária. 

O Plantador de Malata - publicado inicialmente em 1915, num volume de quatro contos e novelas sob o título Within the Tides [Dentro das Marés] - confirma Conrad como hábil criador de atmosferas esotéricas, capaz de transformar vastos espaços físicos em labirintos opressivos, tornados espelhos da natureza humana. Do rio cheio de sinistros augúrios n' O Coração das Trevas à exasperante calmaria de Linha de Sombra, passando pelo vento demencial que ameaça corpos e espíritos em Tufão

Aqui somos conduzidos a uma pequena ilha plantada nos confins do Oriente, na fase culminante do império colonial britânico, povoado de gente desenraizada - uns em busca das emoções fortes sugeridas por aquelas paragens exóticas, outros para se reecontrarem ou perderem de vez. Parece ser o caso do enigmático protagonista, Geoffrey Renouard, proprietário da plantação a que o título alude - coleccionador de segredos que se apaixona pela mulher errada no momento mais inoportuno. Logo ele, que «já tinha vivido o suficiente para reflectir e compreender que os actos, as perspectivas e até as ideias de um homem podem estar muito abaixo do seu carácter».

Pessimista, depressivo, descrente na miragem do "progresso" que iludiu tantos contemporâneos naquele final do século XIX, Conrad legou-nos uma literatura que resiste à prova do tempo. Mesmo em obras aparentemente menores. Como em qualquer outro dos seus livros, prevalece aqui a linguagem elegante e requintada, neste caso com uma vantagem suplementar: a irrepreensível tradução de Aníbal Fernandes, que também assina o prefácio.

 

Sugestão 2 de 2016:

Nada, de Carmen Laforet (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2017:

Singularidades, de A. M. Pires Cabral (Cotovia)

Sugestão 2 de 2018:

Deuses de Barro, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d' Água)

Sugestão 2 de 2019:

A Língua Resgatada, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2020:

Três Retratos - Salazar, Cunhal, Soares, de António Barreto (Relógio d'Água)

Sugestão 2 de 2021:

Presos por um Fio, de Nuno Gonçalo Poças (Casa das Letras)

Sugestão 2 de 2022:

Primeira Memória, de Ana María Matute (Narrativa)

Feira do livro

jpt, 26.05.23

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Há um mês visitei a Feira do Livro de Bogotá. Enorme, também alimentada pelo gigantesco mercado editorial hispânico, também palco de críticas devido à mercantilização/padronização devida às grandes editoras multinacionais. Mas muito diversificada. E apinhada de gente, esta entrechocando-se, entre o turbilhão de expositores e o vasto manancial de palestras e apresentações. E nisso fruindo, numa verdadeira Festa do Livro, algo comprovado na imensidão de gente, famílias e grupos de amigos ali enfileirados para petiscar, e mesmo (ainda) sem livros nas mãos. Foi um prazer cruzar essa festa popular, cobiçar capas, comer maçaroca de milho, ver alguns pavilhões peculiares, até os alguns encontrões sofridos.

Amanhã começa a Feira do Livro em Lisboa. Só vejo, redes sociais afora, resmungos, exigindo a sua superioridade sobre a malta da bola (sim, o país está futebolizado, mas não é de agora...) porque uma parcela desta se prepara para festejar ali perto. E reclamações de que há autores a mais e abundância de maus livros, proclamações de que há temáticas indignas ou pouco próprias, resmungos sobre palestras e conferencistas, que são vácuas e ocos, etc. E a um amigo, que lá vai apresentar um livro, diz-lhe a editora que "não é próprio" fazer-se acompanhar de uns singelos "comes e bebes" para animar o convívio...

Não tenho dúvidas sobre uma certeza - e neste passo sigo o "achismo" do agora centenário ilustre e tão louvado posfaciador do "Senhor Engenheiro José Sócrates" (sic) -, a característica central dos portugueses não é sebástica, ou atlântica ou hiper-identitária, ou lá o que seja. É mesmo a cagança.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 26.05.23

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Livro um: O Olhar Mais Azul, de Toni Morrison

Edição Presença, 2023

187 páginas

 

Foi o livro de estreia de Toni Morrison, quando estava longe de imaginar-se galardoada com o Prémio Nobel da Literatura. Surgiu em 1970, culminando uma década crucial na conquista de direitos cívicos da população negra norte-americana, ainda sujeita às mais abjectas humilhações - sobretudo na "cintura democrata" dos Estados sulistas. Ali as cicatrizes da guerra civil ocorrida cem anos antes permaneciam por cicatrizar.

Viajamos com a escritora no tempo e no espaço, ao Ohio rural do início dos anos 40. Com um grupo de crianças no centro do enredo. Meninas como a Scout Finch de Não Matem a Cotovia, de Harper Lee, ou a Caddy de O Som e a Fúria, de William Faulkner. Livros que também nos falam dos dédalos da "América profunda", onde a discriminação racial era uma chaga à flor da pele.

Este é um romance avassalador sobre a perda da inocência, que acontecia sempre demasiado cedo naquelas comunidades marcadas pelo estigma da pobreza e dos preconceitos associados à cor da pele. O segregacionismo impregnava o quotidiano, a memória esclavagista mal se havia dissipado. Sem excluir erupções racistas entre os próprios negros. 

Eis o mundo duro e dolorido dos adultos observado por olhos ainda desprovidos de maldade. São de três crianças negras: as irmãs Claudia e Frieda, além da colega de escola Pecola - a mais feia da turma, a mais feia que todos conheciam. Menina em risco de sofrer um destino trágico, de algum modo inscrito nos genes e no meio social em que crescera. 

Ela sonhava despertar um dia com olhos azuis, iguais aos das estrelas de Hollywood que tinham as caras estampadas nas capas das revistas. «Depois da educação que recebeu no cinema, nunca mais conseguiu olhar um rosto sem lhe atribuir uma categoria na escala da beleza absoluta, escala essa que absorveu na sua totalidade do grande ecrã. (...) Ali, o imperfeito tornava-se perfeito, o cego recuperava a visão e o manco e o coxo largavam as muletas. Ali, a morte estava morta e as pessoas faziam cada gesto numa nuvem de música.» (Tradução de Tânia Ganho.)

Sonho que jamais se concretizará. Mas perpetuado afinal nas páginas vibrantes e pungentes d' O Olhar Mais Azul

 

Sugestão 1 de 2016:

O Islão e o Ocidente, de Jaime Nogueira Pinto (D.Quixote)

Sugestão 1 de 2017:

A Máquina do Tempo, de H. G. Wells (Antígona)

Sugestão 1 de 2018:

Delito de Opinião, de vários autores (Bookbuilders)

Sugestão 1 de 2019:

O Fundo da Gaveta, de Vasco Pulido Valente (D. Quixote)

Sugestão de 2020:

As Sílabas de Amália, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão de 2021:

No Devagar Depressa dos Tempos, de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote)

Sugestão de 2022:

O Caminho Fica Longe, de Vergílio Ferreira (Quetzal)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 11.09.22

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Livro dez: De Quase Nada a Quase Rei, de Pedro Sena-Lino

Edição Contraponto, 2020

623 páginas

 

Fala-se muito do Marquês de Pombal, mas grande parte dos portugueses conhece-o mal. Personagem cheia de luzes e sombras, com vocação para mandar, dispôs de poder quase absoluto durante um quarto de século. E foi decisivo em questões diversas, começando pela reconstrução de Lisboa após o devastador terramoto de 1755. Mas também na consolidação do nosso domínio no Brasil, demarcando fronteiras com a coroa espanhola, no desenvolvimento da instrução pública, na promoção da nossa indústria de lanifícios e na criação da primeira região vinícola do mundo, valorizando o Vinho do Porto como emblema de Portugal.

Viveu longos anos fora do País, como nosso representante diplomático em Londres e Viena, o que lhe rasgou horizontes e lhe consolidou a noção de que o poder só é útil se for exercido sem estados de alma nem contemplações filosóficas. Tinha a noção de que esta nação periférica só galgaria etapas rumo ao progresso com o impulso de um governo forte, exercido em nome da autoridade régia mas orquestrado por ele, enquanto punha e depunha figuras secundárias.

É natural que alguém tão marcante tenha fascinado os nossos escritores, que lhe dedicaram biografias. Aconteceu, por exemplo, com Camilo Castelo Branco e Agustina Bessa-Luís. Mas o mais bem-sucedido neste domínio é um contemporâneo que se vem notabilizando sobretudo pela escrita poética: Pedro Sena-Lino assina aqui um minucioso retrato do Marquês, sem lhe enaltecer em excesso as virtudes nem lhe esconder os defeitos. Numa escrita elegante e bem fundamentada em documentos da época, incluindo cartas do biografado, que gostava de escrever para a posteridade, consciente de que viria a figurar em destaque nos manuais de História.

De Quase Nada a Quase Rei: excelente título capaz de resumir o sinuoso percurso de Sebastão José de Carvalho e Melo (1699-1782), que à mercê de caprichos do destino e da sua vontade férrea se tornou um dos dirigentes mais afamados na Europa do seu tempo. Acima dele, no reino lusitano, só estava o monarca, D. José, que lhe confiou plenos poderes. O cenário mudou em 1777, com a ascensão ao trono da sua filha, D. Maria I: Pombal caiu em desgraça, foi desterrado para sempre de Lisboa e por pouco não teve a mesma triste sorte de vários opositores políticos que mandou executar com requintes de malvadez. Viria a morrer longe da corte, abandonado pela legião de aduladores que o rodeava nos tempos áureos.

Mas o seu nome, de facto, passou à História. Ele cuidou disso nos documentos epistolares que nos legou. «É a partir desta imagem de Sebastião José por si construída como defesa no final de vida, e perpetuada em parte pela I República, que outras figuras políticas portuguesas se vão construir - como António de Oliveira Salazar», assinala Pedro Sena-Lino. Numa frase que talvez prenuncie outra biografia da sua lavra.

 

 

Sugestão 10 de 2016:

Bairro Ocidental, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2017:

Santos e Milagres, de Alexandre Borges (Casa das Letras)

Sugestão 10 de 2018:

Sonhos Públicos, de Joana Amaral Dias (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2020:

A Minha Intenção, de Czeslaw Milosz

Sugestão 10 de 2021:

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 10.09.22

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Livro nove: Carta à Geração que Vai Mudar Tudo, de Raphaël Glucksmann

Edição Guerra & Paz, 2022

159 páginas

 

Há livros notáveis pela qualidade literária e pelo suplemento de sonho que transmitem aos leitores. Outros destacam-se por nos fazerem reflectir em nome de imperativos cívicos inadiáveis. É o caso deste, redigido em forma epistolar pelo eurodeputado francês Raphaël Glucksmann, incentivando os jovens a mudar o mundo. Não com chavões ideológicos, nem com frases que «cantam mais do que falam», como dizia Paul Valéry, mas com acções concretas. 

Nesta Carta à Geração que Vai Mudar o Mundo (edição original francesa de 2021, boa tradução portuguesa de André Morgado para a excelente colecção Livros Vermelhos, da Guerra & Paz) Glucksmann, cineasta que passou pelo jornalismo, menciona vários marcos do seu percurso no activismo social como incentivo aos destinatários da obra. Antes e depois de fundar o partido Lugar Público (2018) e ser eleito para o Parlamento Europeu (2019) em representação desta pequena força política integrada na bancada dos socialistas e sociais-democratas em Bruxelas. 

Filho de peixe sabe nadar. Hoje com 42 anos, o eurodeputado honra o exemplo do pai, André Glucksmann (1937-2015), um dos "novos filósofos" que no final da década de 70 romperam com o marxismo-leninismo, à época ainda dominante nos circuitos académicos e mediáticos em França.

Agora os combates são outros, nestas páginas enumerados sob o signo da urgência. Contra o totalitarismo chinês, que aprisiona mais de um milhão de uigures em campos de concentração. Contra a globalização do comércio que desloca as cadeias de produção da Europa para o Oriente, aproveitando-se do trabalho escravo ao serviço de multinacionais do consumo. Contra as ideologias que sustêm o terrorismo. Contra a economia predadora que vai devastando o planeta. Contra a impotência da Europa, bem visível quando irrompeu a pandemia: descobrimos que éramos incapazes de produzir produtos tão elementares como máscaras ou paracetamol, abdicando da soberania industrial a favor da China e da soberania militar a favor dos EUA. «Sem defesa própria, não há autonomia, logo não há verdadeiramente cidade.»

Ontem André, hoje Raphaël: a militância é quase um imperativo genético. «Vi o meu pai consagrar os últimos vinte anos da sua vida em defesa do povo checheno, massacrado pelo Exército russo», lembra o eurodeputado.

«Os jovens podem mudar tudo. Podem desatar a correia que os prende, podem carregar no travão, podem tomar o volante. Os jovens podem.» Palavras deste intelectual que se tornou político para tornar possíveis as mudanças em que acredita. Contra os «falsos profetas» sempre prontos a jurar que nada há a fazer pois tudo está inscrito nas estrelas. Ele parte do princípio oposto: «Nada está escrito. Nunca.»

Os nossos políticos deviam publicar livros como este. Mas quantos estariam dispostos a tal maçada? E quantos saberiam fazê-lo?

Sugestão 9 de 2016:

Entrevistas da Paris Review (Tinta da China)

Sugestão 9 de 2017:

Ao Largo da Vida, de Rainer Maria Rilke (Ítaca)

Sugestão 9 de 2018:

Só Acontece aos Outros, de Maria Antónia Palla (Sibila)

Sugestão 9 de 2019:

La Llamada de la Tribu, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara)

Sugestão 9 de 2020:

Estocolmo, de Sérgio Godinho (Quetzal)

Sugestão 9 de 2021:

Woke - Um Guia para a Justiça Social, de Titania McGrath (Guerra & Paz)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 09.09.22

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Livro oito: Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida

Edição Companhia das Letras, 2021

229 páginas

 

Grande revelação, esta prosa desenvolta que nos apresenta personagens credíveis e com espessura. Ficamos ligados à família Cartola, sobretudo ao pai e ao filho Aquiles, transplantados da Angola natal para Lisboa – terra inscrita no imaginário do mais velho, nascido durante a administração colonial e sentindo-se duplamente desenraizado: o país que se tornou independente em Novembro de 1975 não é o seu, pois sente-se culturalmente português.

Mas a antiga metrópole recebe-o com indiferença forasteira naquela década de 80. Uma frieza que ele é incapaz de compreender. Ele que «chegou a apanhar pedrinhas do chão e a encher os bolsos com elas, como relíquias de uma terra santa». Ele que «se arrepiava ao ouvir o hino de Portugal e sabia de cor a primeira estrofe dos Lusíadas». Ele que na escola havia memorizado os afluentes do Mondego e recitava os nomes dos reis da dinastia Bragança.

O filho tornou-se apátrida cultural em terra-de-ninguém quando se viu forçado a viajar de África para a Europa por motivos de saúde. Ainda no hospital onde esteve internado, deixou de se sentir angolano. «Esse olhar de quem vê o mundo da cama, contrariado, a morder-se de raiva porque ninguém o ouve, ninguém acode, foi a sua nacionalidade assim que pisou Lisboa.» Não volta a ser o mesmo. 

Há também Glória, que se manteve em Luanda e vai comunicando com o marido e o filho por cartas e telefonemas apressados. Também ela saudosa de um tempo que deixou há muito de existir, envolta numa rotina onde o sonho se sobrepõe à realidade.

É um romance em 49 sucintos capítulos que lança um olhar atento e terno sobre a verdadeira pobreza – não sobre os pobres de catálogo, manipulados para efeitos de propaganda ideológica ou catecismo político. Mas é também uma narrativa ficcional sem condescendência paternalista nem códigos de trincheira: apresenta-nos gente à deriva numa Lisboa que empurra os mais humildes para arrabaldes infernais como aquele a que por ironia chamam Paraíso. Gente mergulhada na pobreza endémica mesmo trabalhando para ter tecto e pão.

Nascida em Luanda e há muito radicada em Portugal, Djaimilia Pereira de Almeida doutorou-se em Teoria da Literatura, desempenha desde 2021 funções de consultoria na Casa Civil do Presidente da República e viu esta obra lançada em 2018 distinguida com vários prémios - Oceanos, Inês de Castro, Fundação Eça de Queiroz.

Apetece incentivá-la a escrever novos romances como este. Singelo, original e luminoso.

 

Sugestão 8 de 2016:

Todos os Fogos o Fogo, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 8 de 2017:

Prantos, Amores e Outros Desvarios, de Teolinda Gersão (Porto Editora)

Sugestão 8 de 2018:

Quem Meteu a Mão na Caixa, de Helena Garrido (Contraponto)

Sugestão 8 de 2019:

Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins (Bookbuilders)

Sugestão 8 de 2020:

A Ideologia Afrocentrista à Conquista da História, de François-Xavier Fauvelle (Guerra & Paz)

Sugestão 8 de 2021:

Ernestina, de J. Rentes de Carvalho (Quetzal)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 04.09.22

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Livro sete: Diários 1950-1962, de Sylvia Plath

Edição Relógio d'Água, 2021

809 páginas

 

Foi um dos acontecimentos editoriais dos últimos meses em Portugal: o monumental volume dos Diários de Sylvia Plath (1932-1963), incluindo os trechos expurgados pelo marido da malograda escritora, Ted Hughes, e recuperados em 1999, após a morte deste.

Dispomos enfim desta obra no nosso idioma: são oito diários principais, redigidos entre 1950 e 1959, e 15 fragmentos de cadernos de apontamentos, iniciados em 1951 e prolongados até 1962 - meses antes do suicídio da autora de Ariel. Empreendimento digno de vénia, com a habitual competência da editora dirigida por Francisco Vale. Merece destaque a excelente tradução de Inês Dias e José Miguel Silva.

«Quando se limitava a registar os acontecimentos, sem a pretensão de os reformular em moldes artísticos nem de os tornar públicos, escrevia por vezes alguns dos seus melhores textos - e é o que transparece nos seus diários», observou Hughes num prefácio à recolha póstuma de contos da mulher, cujo espólio literário foi gerindo de modo controverso.

São apontamentos íntimos, em que a poetisa norte-americana vai desvendando as suas inquietações mais profundas e os traumas insinuados no relato de um quotidiano só na aparência banal. Permitindo descortinar as entrelinhas do seu magnífico romance, Campânula de Vidro, - pungente tratado sobre os abismos da depressão publicado sob pseudónimo em Londres, em Janeiro de 1963, no auge do Inverno mais frio que o Reino Unido sofreu no século XX. Matou-se no mês seguinte: à terceira tentativa, foi de vez.

Redigidos numa linguagem sem filtros mas sempre com elegância, os diários revelam uma personalidade narcísica, obsessiva, bipolar e assombrada pela perda precoce do pai. Pouco ou nada lhe interessa o que vai decorrendo no mundo exterior, incluindo a sucessão de acontecimentos políticos, quase ausentes destas páginas. 

É um testemunho precioso: percebemos como a depressão avança e se apodera dela, de modo insidioso e furtivo, sob uma fachada de jovial e fresca normalidade. Sylvia ficou sem pai quando tinha apenas dez anos e desde então alimentou uma surda revolta contra a mãe, germinando em espiral no seu inconsciente angustiado. Aversão compulsiva, que a deixava perplexa. Imaginou redimir-se pela imortalidade na literatura, sua aspiração suprema. «É possível que quando damos por nós a querer tudo é porque estamos perigosamente perto de não querermos nada», anota no diário, com perturbante lucidez.

Personagem de tragédia bem real. Procurou o pai perdido em cada homem ao longo de uma década feita de encontros e desencontros. Imaginou encontrá-lo no marido britânico, poeta como ela. Quando se separaram, no Verão de 1962, perde pela segunda vez o pai - desta vez no plano simbólico - e sente um desamparo sem remissão. A mãe viria a sobreviver-lhe 30 anos.

Jamais conseguiremos desvendar com nitidez a face lunar da alma humana. «From the bottom of the pool, fixed stars / Govern a life», escreveu Sylvia Plath. Dia após dia, foi namorando a morte. Até que decidiu partir para não mais voltar, numa interminável viagem ao fim da noite.

Estrelas no fundo de um poço - quantas delas se cruzam connosco nos dédalos citadinos? Vocacionadas para a eternidade mas com todos os sonhos sepultados numa vastidão de pó.

 

Sugestão 7 de 2016:

O Bosque, de João Miguel Fernandes Jorge (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2017:

1933 Foi um Mau Ano, de John Fante (Alfaguara)

Sugestão 7 de 2018:

O Visitante da Noite & Outros Contos, de B. Traven (Antígona)

Sugestão 7 de 2019:

Um Futuro de Fé, do Papa Francisco e Dominique Wolton (Planeta)

Sugestão 7 de 2020:

Acordo Ortográfico - Um Beco Com Saída, de Nuno Pacheco (Gradiva)

Sugestão 7 de 2021:

O Silêncio, de Don DeLillo (Relógio d'Água)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 03.09.22

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Livro seis: O Barulho das Coisas ao Cair, de Juan Gabriel Vásquez

Edição Alfaguara, 2020

302 páginas

 

Juan Gabriel Vásquez é considerado discípulo literário de Gabriel García Márquez. Une-os, é certo, a nacionalidade colombiana. Mas aqui há pouco realismo mágico. Enquanto o autor de Cem Anos de Solidão deambulava por uma nação ancestral, recriando-a a seu modo com exuberante requinte de linguagem castiça, Vásquez fala-nos da Colômbia contemporânea - este país concreto em que vive e trabalha após longos anos de ausência em Paris e Barcelona, onde estudou Literatura, foi tradutor e jornalista. 

Estar fora permitiu-lhe perceber com maior nitidez o sinistro legado do narcotráfico aliado ao terrorismo que durante décadas manchou a terra colombiana, pondo-a à mercê de todos os impulsos liberticidas. Traindo o sonho do pai da pátria, Simón Bolívar.

«A experiência, aquilo a que chamamos experiência, não é o inventário das nossas dores, mas a compaixão aprendida com as dores alheias.» Eis a lição que o jovem Antonio Yammara recebe e transmite neste belíssimo romance que nos confirma como são precários os laços humanos perante as encruzilhadas da vida, tecidas de mil acasos.

A vénia a García Márquez é óbvia logo neste parágrafo da página 18: «No dia da sua morte, no início de 1996, Ricardo Laverde tinha passado a manhã a passear pelas calçadas estreitas de La Candelaria, no centro de Bogotá, entre casas velhas com telhas de barro cozido e placas de mármore que resenham para ninguém momentos históricos, e por volta da uma chegou aos bilhares da Calle 14, disposto a disputar um par de jogos com os clientes habituais.»

Mas aqui não há exotismo pícaro nem lugar para nostálgicas contemplações etnográficas. O Barulho das Coisas ao Cair, com meritória tradução de Vasco Gato, tem como pano de fundo os anos de chumbo em que o país esteve submetido ao império do maior barão da droga, Pablo Escobar, com o seu viscoso cortejo de sangue que marcou para sempre as personagens centrais, Antonio e Maya. Condenados a uma espécie de antecipação da morte ainda em vida.

Eles atravessaram a adolescência e tornaram-se adultos enquanto Bogotá «se afundava no medo e no barulho dos tiros e das bombas sem que ninguém tivesse declarado guerra nenhuma, ou pelo menos não uma guerra convencional». À semelhança de tantos da sua geração, também eles experimentaram o barulho das coisas ao cair - no plano real e no plano metafórico. Numa digressão sem retorno a um tempo de trevas.

Vale para a Colômbia, país que «produz fugitivos», mas tem alcance universal. 

 

Sugestão 6 de 2016:

Axilas e Outras Histórias Indecorosas, de Rubem Fonseca (Sextante)

Sugestão 6 de 2017:

O Tesouro, de Selma Lagerlöf (Cavalo de Ferro)

Sugestão 6 de 2018:

Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, de Mário de Carvalho (Porto Editora)

Sugestão 6 de 2019:

Como Ser um Conservador, de Roger Scruton (Guerra & Paz)

Sugestão 6 de 2020:

Fósforos e Metal Sobre Imitação de Ser Humanode Filipa Leal (Assírio & Alvim)

Sugestão 6 de 2021:

Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, de João Céu e Silva (Contraponto)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 01.09.22

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Livro cinco: As Praias de Portugal, de Ramalho Ortigão

Edição Quetzal, 2022

188 páginas

 

Ramalho Ortigão anda a ser reeditado – eis uma excelente notícia. Tantas vezes agregado ao seu contemporâneo e amigo Eça de Queiroz, o co-autor d’ As Farpas merece leitura não contaminada por tal comparação, aliás pouco justificada: ele não se distinguiu como romancista, mas como cronista e até repórter.

As Praias de Portugal, de regresso às livrarias após prolongada ausência, é um bom exemplo do seu talento. Faz-nos recuar cerca de 150 anos, visitando pontos da nossa costa como se os víssemos agora. Mérito do grande prosador que Ramalho (1839-1915) foi. Mesmo sem ter cultivado a arte da ficção.

Quando turista ainda se escrevia à francesa (touriste), o autor deste «guia do banhista e do viajante» percorreu muitas praias do país, confessando preferências. Portuense de berço, assume especial fascínio pelo mar nortenho. Algumas das raras notas confessionais surgem-lhe a propósito da Foz. E suscita sorrisos ao apresentar a Granja, «uma praia de algibeira».

Mas duas das melhores crónicas deste roteiro balnear situam-se mais a sul. Uma em torno da Ericeira, que Ramalho enaltece como «a terra mais asseada de Portugal» – exceptuando Olhão, aliás só aflorada para tal efeito nesta digressão entre Âncora, no Alto Minho, e a península de Tróia. Alentejo e Algarve estão ausentes da obra, datada de 1876.

A Ericeira serve de pretexto para o autor mencionar Mafra, desviando-se da linha costeira. E vergastar D. João V, «Nero de sacristia, Faraó freirático», que «consumiu tantos milhares de contos, tantos milhares de braços e tantos milhares de vidas» no convento.

Este Ramalho é-nos familiar: exímio praticante da farpa verbal. Mas o cronista amável também se revela neste livrinho, hoje com interesse não apenas literário mas sobretudo etnográfico. Numa época em que a praia se frequentava mais pelas suas propriedades terapêuticas do que como cenário de lazer.

«De Pedrouços a Cascais»: assim se intitula outro texto digno de realce neste volume, infelizmente sujeito ao famigerado “acordo ortográfico”, aliás sem enganar ninguém: logo na primeira frase alude-se ao «aspeto (sic) da praia».

Aqui sobressai a visão minuciosa do repórter que no Cais do Sodré embarca «no vapor» e vai mirando as praias do Tejo e as seguintes, já no mar. «Entramos na baía de Cascais, 27 quilómetros de Lisboa percorridos em cinco quartos de hora.» Sem poupar elogios à vila, que «possui uma praça em que se acha o tribunal e a casa da Câmara, um passeio público, três hotéis, um teatro e uma praça de touros».

Ecos de um tempo remoto, eram ainda S. Martinho do Porto, Costa Nova e S. Pedro de Moel «praias obscuras». E quando cândidas almas se escandalizavam porque «a viscondessa de X… foi vista fumando cigarros cor-de-rosa na praia de Paço de Arcos».

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Sugestão 5 de 2016:

Telex de Cuba, de Rachel Kushner (Relógio d' Água)

Sugestão 5 de 2017:

Coração de Cão, de Mikhail Bulgákov (Alêtheia)

Sugestão 5 de 2018:

Octaedro, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 5 de 2019:

Júlio de Melo Fogaça, de Adelino Cunha (Desassossego)

Sugestão 5 de 2020:

Por Amor à Língua, de Manuel Monteiro (Objectiva)

Sugestão de 2021:

Gramática Para Todos, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 29.08.22

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Livro quatro: História de um Homem Comum, de George Orwell

Edição E-primatur, 2022

239 páginas

 

Este livro veio preencher uma lacuna no nosso mercado editorial: era o único dos seis romances de George Orwell (pseudónimo de Eric Blair, 1903-1950) ainda inexistente com chancela portuguesa. A iniciativa constitui serviço público. Até porque esta História de um Homem Comum (Coming Up For Air, no original) é hoje considerada uma das suas melhores obras.

Toda a ficção do autor de Homenagem à Catalunha é um acto de militância contra sistemas iníquos - seja na corajosa autópsia do colonialismo inglês no Oriente (Dias da Birmânia), seja na denúncia de uma sociedade rendida à tentação do dinheiro (O Vil Metal), seja no implacável libelo contra o comunismo (O Triunfo dos Porcos), seja na aterradora antevisão de um mundo mergulhado na tecnologia que dissolve toda a liberdade individual (1984). Convicto, como ele dizia, que «o totalitarismo, quando não combatido, poderá triunfar onde quer que seja».

Em História de um Homem Comum, escrito em 1938 e publicado em Junho do ano seguinte, Orwell prevê com argúcia a eclosão da guerra e o modo como este conflito à escala planetária mudaria a face do mundo. Mas esta não é uma obra de cariz político no sentido estrito do termo: o grande escritor britânico descreve aqui o percurso biográfico de um inglês banal, de meia-idade, cruzando-o com as quatro primeiras décadas do Reino Unido no século XX. Interessa-lhe mais a sociedade do que a ideologia. Sem se pôr de fora. Pelo contrário, faz questão de atribuir ao protagonista o seu próprio nome literário.

«George Bowling representa, na sua mediania, milhões de pessoas como ele, para quem a família e o emprego são o núcleo à volta do qual tudo gira e no qual tudo se esgota», escreve no prefácio a esta edição - felizmente imune à praga do "acordo ortográfico" - a professora universitária Jacinta Maria Matos, que fez bem ao evitar a tradução literal do título, tornando-o mais apelativo ao leitor português. 

Em tom de assumida nostalgia, esta História de um Homem Comum fala-nos de uma época que ficou para sempre ultrapassada com a dilacerante Grande Guerra de 1914-1918: «É como se um um diabo dentro de nós nos fizesse andar para trás e para diante, sempre ocupados com ninharias. Há tempo para tudo menos para o que interessa.»

Bowling, ecoando as inquietações de Orwell sobre o rumo do "progresso", tinha a certeza de que aquilo que viesse seria a antítese da sua doce infância remediada numa pacata vila inglesa que a voragem do tempo sepultou.

 

Sugestão 4 de 2016:

Páginas de Melancolia e Contentamento, de António Sousa Homem (Bertrand)

Sugestão 4 de 2017:

Os Filipes, de António Borges Coelho (Caminho)

Sugestão 4 de 2018:

Não Respire, de Pedro Rolo Duarte (Manuscrito)

Sugestão 4 de 2019:

Dois Países, um Sistema, de Rui Ramos e outros (D. Quixote)

Sugestão 4 de 2020:

Que Nós Estamos Aqui, de João Tordo (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Sugestão 4 de 2021:

Uma História da ETA, de Diogo Noivo (E-primatur)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 28.08.22

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Livro três: O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral

Edição Leya, 2017

363 páginas

 

Há livros destinados a perdurar-nos na memória. Este é um deles. Pela extrema sensibilidade do tema. Pela contenção do autor, que não deixa resvalar o texto para o terreno do folhetim pronto a puxar à lágrima. Pela desenvoltura da escrita, sem perder de vista uma das funções essenciais do romance como forma de expressão artística: saber contar uma história, prendendo-nos ao fluir da narrativa.

O Meu Irmão prende-nos, sem dúvida. Narrado na primeira pessoa por um professor universitário que ao longo dos anos se aproximou muito mais dos livros do que das pessoas, tornando-se agnóstico em matéria de sentimentos. Na roleta do destino, coube-lhe a melhor porção - filho já tardio de um casal de classe média-alta, com quatro irmãs mais velhas e um irmão que era como o seu inverso: Miguel, nascido com síndrome de Down, ficou desamparado com a morte dos pais. 

«Eu nascera inteligente e perfeito, ele nascera inimputável e incompleto», revela o narrador, que durante toda a juventude se desinteressou por completo do irmão, apenas um ano mais novo. Evitando contemplar-se naquele espelho: «Nele, a mente de criança dirigia o corpo de adulto.»

Até que, num inesperado rebate de consciência, decide tomar conta dele - para alívio das irmãs, que não pretendiam tal encargo. Toda a sua vida irá mudar. Nada será fácil, nada ficará na mesma. 

Com esta obra, Afonso Reis Cabral recebeu o Prémio Leya em 2014, quando tinha apenas 24 anos. Distinção merecida: estamos perante um dos melhores romances portugueses deste século sobre os elos familiares, aqui postos à prova por uma doença irreversível.

O Meu Irmão supera vários testes, com direito a quadro de honra. Num estilo sólido, seguro, contido, sem lamechice, sem retórica balofa, sem puxar ao sentimentalismo fácil dos "afectos" agora tão em voga. Com excelentes diálogos e sábias alternâncias de ritmo da narrativa. Como sucede na vida, afinal.

Seria difícil começar da melhor maneira. Afonso Reis Cabral - trineto de Eça de Queiroz - entrou aqui pela porta grande da literatura.

 

Sugestão 3 de 2016:

Política, de David Runciman (Objectiva)

Sugestão 3 de 2017:

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)

Sugestão 3 de 2018:

Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)

Sugestão 3 de 2019:

Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)

Sugestão 3 de 2020:

ABC da Tradução, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Sugestão  3 de 2021:

Intervenções, de Michel Houellebecq (Alfaguara)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 27.08.22

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Livro dois: Primeira Memória, de Ana María Matute

Edição Narrativa, 2020

235 páginas

 

Conhecemos pouco da ficção espanhola contemporânea. E é pena, porque há excelentes escritores no país vizinho. Com muito mais qualidade, tantas vezes, do que alguns norte-americanos que preenchem o mapa literário graças aos poderosos circuitos da propaganda mediática.

Uma das vozes mais originais do romance de expressão castelhana na segunda metade do século XX foi a de Ana María Matute (1925-2014), que transformou em narrativa literária o amargo testemunho dos anos de chumbo da guerra civil espanhola, marcando-a para sempre. Em 2010 recebeu o Prémio Cervantes pelo conjunto da sua obra.

Primeira Memória fala-nos desse traumático Verão de 1936, um dos mais sangrentos de que há registo no país vizinho, quando havia famílias fracturadas pelo ódio ideológico mais sectário e qualquer divergência política podia ser paga com a vida.

Matia, órfã de mãe, e o seu primo Borja são recolhidos nesse trágico mês de Agosto em casa da avó, rica proprietária rural das Baleares, onde os ecos do conflito chegavam mais distantes. Os pais de ambos estão ausentes na península, cada qual combatendo na sua trincheira, o que não afecta o entendimento entre os primos - ele com 15 anos, ela com 14. Nesse torrão rural da ilha onde nada parece suceder, em tardes inundadas de calor, farão descobertas essenciais sobre as luzes e sombras da vida.

«Não pensem que à hora da morte recordarão grandes aventuras nem momentos felizes que ainda possam vir a viver. Apenas coisas como esta: uma tarde assim, um copo de vinho, as rosas cobertas de água», diz-lhes um velho marinheiro aposentado de navegações que podia emanar das páginas de um Joseph Conrad.

Distinguida em 1959 com o prestigiado Prémio Nadal e publicada no ano seguinte, Primeira Memória tem competente tradução de Vasco Amaral, que capta com exactidão o elegante estilo da escritora e a agreste candura do olhar da protagonista.

Raras vezes a literatura nos proporciona um retrato tão convincente e até comovente de uma rapariga prestes a despedir-se em definitivo da infância e a mergulhar no poço fundo da idade adulta. Com os tambores da guerra soando ao longe naqueles dias em que o sol se tingia de sangue, metafórico e real.

 

Sugestão 2 de 2016:

Nada, de Carmen Laforet (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2017:

Singularidades, de A. M. Pires Cabral (Cotovia)

Sugestão 2 de 2018:

Deuses de Barro, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d' Água)

Sugestão 2 de 2019:

A Língua Resgatada, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2020:

Três Retratos - Salazar, Cunhal, Soares, de António Barreto (Relógio d'Água)

Sugestão 2 de 2021:

Presos por um Fio, de Nuno Gonçalo Poças (Casa das Letras)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 26.08.22

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Livro um: O Caminho Fica Longe, de Vergílio Ferreira

Edição Quetzal, 2016

366 páginas

 

Durante décadas, esta obra permaneceu inacessível: insatisfeito com o texto que produzira quando tinha apenas 23 anos, o escritor considerou-o sem qualidade suficiente para integrar o seu espólio literário. Num dos volumes do diário Conta-Corrente Vergílio Ferreira (1916-1996) chega a referir-se de modo depreciativo ao primeiro livro que publicou, em 1943, a seu ver imaturo e quase infantil.

A verdade, porém, é que O Caminho Fica Longe é um bom romance de aprendizagem. Com o aliciante de nos revelar quais eram então os temas centrais do autor de Aparição e perceber como evoluiu o seu fio narrativo, ao nível do conteúdo e do próprio estilo. Aqui a linguagem é mais convencional e menos envolta em simbolismo, sem a escrita depurada que lhe encontraremos no apogeu da maturidade artística, em obras como Alegria Breve ou Para Sempre.

Mas este livro centrado na atmosfera universitária de Coimbra do final da década de 30 (Vergílio escreveu-o em 1939, inserindo alusões à guerra europeia), com estudantes como personagens quase exclusivas, tem a frescura do que é espontâneo. E, à sua maneira, é muito revelador. Do vocabulário da época. Das diferenças de estatuto social entre os alunos. Do choque cultural entre o país campestre de onde muitos provinham e aquele meio urbano infestado de preconceitos. Da pobreza endémica que pairava em pano de fundo naqueles tempos de convulsão mundial. 

Romance "social", sim. Mas tendo já em esboço as inquietações metafísicas que este grande prosador - um dos nossos maiores do século XX - viria a manifestar em quase toda a obra posterior, sobretudo a partir do romance Mudança (1949). O suicídio, por exemplo, é tema fulcral em O Caminho Fica Longe - gerando até uma colisão do escritor com a censura salazarista, que o aconselhou a "limar" alguns trechos. 

A versão definitiva hoje disponível, com texto fixado por Ana Isabel Turíbio, presta homenagem ao jovem talento que aqui iniciava um longo percurso nas letras portuguesas. Perplexo perante o grande mistério da existência: «A face do mundo é sempre igual a si mesma. Os rios correm sempre, as árvores dão os seus frutos e as estrelas vivem eternamente pregadas ao céu.»

 

Sugestão 1 de 2016:

O Islão e o Ocidente, de Jaime Nogueira Pinto (D.Quixote)

Sugestão 1 de 2017:

A Máquina do Tempo, de H. G. Wells (Antígona)

Sugestão 1 de 2018:

Delito de Opinião, de vários autores (Bookbuilders)

Sugestão 1 de 2019:

O Fundo da Gaveta, de Vasco Pulido Valente (D. Quixote)

Sugestão de 2020:

As Sílabas de Amália, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão de 2021:

No Devagar Depressa dos Tempos, de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 12.09.21

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Livro dez: O Retorno, de Dulce Maria Cardoso

Edição Tinta da China, 2019

267 páginas

 

Há livros que nos atingem com a força de um murro. Alterando a nossa forma de olhar o mundo, de encarar determinados acontecimentos históricos, as nossas certezas instituídas. É o caso deste magnífico romance, um dos melhores publicados nas duas últimas décadas no nosso idioma. Um romance em que os vencidos da longa guerra em Angola entram enfim em cena. Não os militares que recolheram às casernas após dois anos a brincarem às revoluções em Portugal. Mas os civis – aqueles de que ninguém fala, aqueles que tiveram a desdita de figurar no lado B da história.

Dulce Maria Cardoso viveu na pele essa experiência, transformando-a em matéria ficcional com uma autenticidade rara na literatura portuguesa. Adolescente, residente desde a mais remota infância em Angola – sua terra, claro, pois não conhecia outra que pudesse designar assim. Portugal era uma abstracção, plasmada nos rios e linhas férreas que os meninos decoravam nas aulas do ensino básico. Aliás nem diziam Portugal: era a “metrópole”. Não sabiam o que era o frio. Nunca tinham visto televisão. Ignoravam que, por cá, as pessoas vestiam quase sempre de escuro e raras vezes sorriam. Alguns adultos diziam que eles tinham aqui raízes, neste país onde a Coca-Cola estava proibida. Mas as suas raízes estavam lá. Na terra de onde foram arrancados à força e que passaram a transportar apenas na memória sulcada de cicatrizes. Na casa com dálias plantadas pela mãe, nas brincadeiras com a cadela Pirata que nunca mais viram.

Puseram-lhes um rótulo: eram os “retornados”. Mas retornavam como, se nunca tinham cá estado? Eram apontados a dedo, acusados de terem “explorado os pretos”, os professores relegavam-nos para os lugares mais afastados das salas de aula, a própria família daqui os ignorava. Formavam uma insólita irmandade com outros meninos nas mesmas circunstâncias. Aprenderam a substituir palavras: autocarro em vez de machimbombo, frigorífico em vez de geleira, pequeno-almoço em vez de matabicho. Nas horas do crepúsculo, contemplavam os caixotes acumulados no cais, alguns pertencentes a gente que jamais desembarcaria. Apodrecendo à beira-Tejo, rio sem crocodilos nem hipopótamos, cinco séculos depois das navegações que iniciaram tudo.

 

Este romance, publicado originalmente em 2011, está construído em torno de uma unidade familiar básica: pai, mãe, dois filhos adolescentes. Como aconteceu a tantos outros portugueses: pais oriundos de meio rural, com pouca instrução, rumando a Luanda muito jovens. Navegando num porão para fintarem a pobreza.

Mário, o pai, trabalha sem cessar. Acaba por conseguir uma pequena frota de transporte de mercadorias, faz questão de que a filha e o filho já lá nascidos estudem para que não se repita o fado da penúria ancestral. É também ele a semear a esperança naqueles dias fugazes em que a utopia da construção de uma nação livre e multirracial parecia possível numa Angola em que as armas se calavam. «Vamos construir uma nação nova, todos juntos, brancos e pretos, vamos construir uma nação mais rica do que a América.» Os alegres festejos de Ano Novo, em 31 de Dezembro de 1974, são páginas inesquecíveis deste romance.

O sonho não tardou a desfazer-se. E as armas voltaram a rugir, só mudaram de direcção. Apontando primeiro para os brancos – mais de meio milhão foram dali expulsos, em escassos meses, numa das maiores pontes aéreas de todos os tempos. Depois para os negros, fracturados em ódios tribais. Com massacres como o de 27 de Maio de 1977. Com uma prolongada guerra civil que só terminou neste século e deixou duas gerações de mutilados. Com uma feroz ditadura de partido único.

 

Mas de política não se ocupa O Retorno, nem da Angola pós-independência. Esta é a história de uma família em dois continentes, iniciada pouco depois do 25 de Abril de 1974, concluída pouco depois do 25 de Novembro de 1975. Uma família banal, envolvida em circunstâncias excepcionais. A família de Mário, o homem que viu o sonho desmoronar-se. Prestes a entrar na recta final da vida, sem sequer uma mala onde pudesse guardar alguns pertences, quis queimar a casa que construíra para que não fosse violentada por intrusos. Dizia ele: «Um homem pertence à terra que lhe dá de comer» Duas vezes expulso daquilo a que chamava seu país – da primeira vez na Europa, da segunda em África. Jurando perante os filhos que jamais voltariam a expulsá-los de lado algum.

Disto nos fala esta obra. Com rara sensibilidade, com desassombro intelectual, assumindo-se como voz de uma geração traída – demasiado tempo silenciada, demasiado tempo oculta. Relato construído na primeira pessoa, pela voz de um rapaz de quinze anos. Difícil desafio formal, semelhante ao do equilibrista no arame, que a autora supera com distinção. E nos envolve como poucas vezes tem sucedido na ficção contemporânea.

 

Sugestão 10 de 2016:

Bairro Ocidental, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2017:

Santos e Milagres, de Alexandre Borges (Casa das Letras)

Sugestão 10 de 2018:

Sonhos Públicos, de Joana Amaral Dias (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2020:

A Minha Intenção, de Czeslaw Milosz

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 09.09.21

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Livro nove: Woke - Um Guia Para a Justiça Social, de Titania McGrath

Edição Guerra & Paz, 2021

133 páginas

 

Titania Gethsemane McGrath é uma celebridade das chamadas redes sociais. Cheia de opiniões fortes, categóricas, inabaláveis. Arrasa todos quantos ousam contestá-la. Nasceu como figura pública no Twitter, onde se tornou vedeta instantânea. Vegana militante, ecofeminista assumida, defensora de uma «utopia interseccional socialista», seja lá o que isso for. Com mestrado em Estudos de Género por Oxford. Aos 24 anos proclamou-se «melhor poeta do que William Shakespeare», esse incurável misógino.

Muito precoce, ao entrar na creche já se identificava como não-binária. Detesta viver num planeta que tem forma de testículo. Num dos seus poemas mais difundidos, elaborou este auto-retrato: «Titania, / Queima-conservadores, / Queixo firme no parapeito, critico, metralho, disparo. // Criptofascistas tremem ao meu rugido.»

Em Março deste ano, acumulava mais de 600 mil seguidores no Twitter. A vontade de vergastar a cultura falocêntrica, dominada por supremacistas brancos, era tanta que não lhe bastava tuitar: publicou dois livros – um dos quais agora disponível em português.

 

Ninguém a cala. Eis uma súmula das suas mais intrépidas reflexões:

«Há poucos exemplos de misoginia mais virulenta do que um homem considerar uma mulher atraente.»

«O amor não existe. É uma invenção burguesa destinada a justificar os impulsos psicossexuais dos machos.»

«A mudança climática tem a sua origem em os homens verem a Terra como uma mulher e quererem castigá-la, porque olham para ela como uma prostituta arrogante.»

«Só alcançaremos a verdadeira igualdade quando as mulheres forem mais valorizadas do que os homens.»

 

Acontece que Titania não existe.

Ou, dizendo melhor, é uma invenção. De Andrew Doyle, comediante britânico que concebeu esta personagem para denunciar os riscos do activismo ideológico mais sectário. Que estrangula a sátira, asfixia o humor, alimenta os desvarios da correcção política, incentiva o regresso da censura.

 

Woke – Um Guia Para a Justiça Social, da falsa Titania McGrath, com tradução portuguesa de João Reis, é imperdível. O título baseia-se no particípio passado do verbo inglês to wake – que significa despertar. Em nome de «políticas identitárias» levadas ao delírio, que Doyle não hesita em desconstruir. Pelo sarcasmo, pelo riso - por mais fora de moda que pareçam.

«Nascer num mundo heteronormativo patriarcal de supremacistas brancos coloca sob grande pressão a psique de qualquer pessoa», justifica a pretensa Titania McGrath. Que afinal é mais verdadeira do que possamos supor. Ela e muitas outras andam aí. Policiando palavras, gestos e pensamentos. Com nomes estampados neste livro.

«Sou totalmente a favor da liberdade artística, mas quando se trata de apropriação cultural ou ofensa a grupos privados de direitos, defendo que a arte deve estar sujeita a um certo grau de censura», escreve ela.

Não se iludam: esta alegada brincadeira deve ser levada a sério. Antes que se torne demasiado tarde.

 

Sugestão 9 de 2016:

Entrevistas da Paris Review (Tinta da China)

Sugestão 9 de 2017:

Ao Largo da Vida, de Rainer Maria Rilke (Ítaca)

Sugestão 9 de 2018:

Só Acontece aos Outros, de Maria Antónia Palla (Sibila)

Sugestão 9 de 2019:

La Llamada de la Tribu, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara)

Sugestão 9 de 2020:

Estocolmo, de Sérgio Godinho (Quetzal)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 05.09.21

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Livro oito: Ernestina, de J. Rentes de Carvalho

Edição Quetzal, 2018

317 páginas

 

Deliciosa narrativa autobiográfica, comovente (mas nunca lamechas ou piegas) homenagem de Rentes de Carvalho à sua família - povoada de luzes e sombras, como qualquer outra. Na linha de obras como A Escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis, ou do assumidamente autobiográfico O Mundo à Sua Procura, de Ruben A. E também um impressionante retrato do Portugal do seu tempo de rapaz, repleto de assimetrias: viajar do Porto a Trás-os-Montes naquelas décadas de 30 e 40, por exemplo, era como mudar de continente. 

Ernestina - publicado pela primeira vez em 1998, em homenagem explícita à mãe do autor, e alvo de sucessivas reedições - estabelece uma espécie de rima interna com Montedor, seu romance de estreia, que logo em 1968 mereceu elogios de José Saramago: «O autor dá-nos o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza (...), decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor.»

Transmontano há muito radicado em Amesterdão, onde leccionou Literatura Portuguesa entre 1956 e 1988, sem renegar as raízes em Estevais (concelho de Mogadouro), Rentes de Carvalho tem uma obra originalíssima. Cultivando o realismo despojado de rótulos doutrinários e assumindo sem complexos a plena apetência por contar histórias. De modo tão vívido como se viajássemos com ele àqueles dias em que a pobreza dominava a paisagem quotidiana do interior rural e a inscrevia como destino inelutável, em chocante contraste com o conforto usufruído pela burguesia citadina.

«Ninguém se lembraria então de associar a estrumeira da rua e a das casas - onde os animais tinham estábulo no rés-do-chão - com as terríveis doenças que os afligiam. Poucos eram também os que escapavam às "febres", a malária que os punha escaveirados, magros como espetos, e os atormentava no pino da canícula com calafrios que nenhum lume aquecia, seguidos de ardores que pareciam os das chamas do inferno.»

Memórias? Ficção? Crónica romanceada? De tudo um pouco. Os rótulos são o que menos interessa. Isto é literatura. Portuguesa. Da melhor.

 

Sugestão 8 de 2016:

Todos os Fogos o Fogo, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 8 de 2017:

Prantos, Amores e Outros Desvarios, de Teolinda Gersão (Porto Editora)

Sugestão 8 de 2018:

Quem Meteu a Mão na Caixa, de Helena Garrido (Contraponto)

Sugestão 8 de 2019:

Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins (Bookbuilders)

Sugestão 8 de 2020:

A Ideologia Afrocentrista à Conquista da História, de François-Xavier Fauvelle (Guerra & Paz)