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Delito de Opinião

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 16.03.11

15 de Março

 

Artigo de Mário Soares no DN. Tanto barulho para nada. Soares não gosta de Sócrates. De Cavaco já se sabia. Quando assim é tudo se torna  mais fácil e cómodo para o velho patriarca. Tem razão num ponto: quando diz que José Sócrates não tem informado pedagogicamente os portugueses e que tem cometido erros graves. Faltou dizer que o maior desses erros foi tê-lo apoiado nas presidenciais de 2006. Cavaco não teria sido eleito à primeira volta. Provavelmente nem sequer teria sido eleito. O País não estaria hoje como está. Esquecimentos.

 

Com sentido de oportunidade, faro jornalístico, e sem público a estorvar, Fátima Campos Ferreira conseguiu ontem, ao fim de múltiplas tentativas, realizar um “Prós e Contras”. As crises, todas elas, permitem lançar alguma areia, distrair os menos atentos, mas dificilmente escondem os piores. O triunvirato que dirige o PSD – Passos Coelho, Miguel Relvas e Miguel Macedo – revela-se em cada intervenção. A indigência a que o partido chegou é tal – em termos políticos – que os principais porta-vozes são hoje os ex-líderes Luís Filipe Menezes, Santana Lopes e Marques Mendes, aos quais só faltou serem corridos a pontapé pelos seus correligionários. À esquerda, as alternativas estão fechadas. À direita são inexistentes. O PCP fala uma linguagem crua apenas compreensível pelos reformados da Intersindical ou pelos fundadores da Lisnave. O Bloco de Esquerda recupera do ataque do escaravelho da palmeira e revela um interior esponjoso. O CDS engoliu a cartilha demagogo-populista. Encheu-se de jovens que circulam pelos canais de televisão sem outro objectivo que não seja fazerem-se ouvir. Assunção Cristas é uma das raras excepções em matéria de bom senso e equilíbrio quando chamada a intervir naquela creche em que o partido se tornou, mas ela só não chega para formar um governo de salvação nacional.

 

As instalações estão mais acanhadas e exíguas do que antes. Pelo menos para os utentes. Meia hora antes da abertura já uma longa fila se formou. Lá dentro, a gente amontoa-se de senha na mão. A simples emissão de uma guia e o seu pagamento leva horas. Foi assim ontem. Hoje repetiu-se a cena. É recorrente. Como é possível falar em produtividade na Administração Pública quando o simples pagamento de um IMT leva horas? Não será mais barato e útil ao País ter um sistema informático decente ou admitir a emissão manual de guias quando o sistema falha, em vez de ter os funcionários parados e os utentes à espera horas a fio? Se não há sistema conversa-se. Vá tomar um cafezinho e volte daqui a um quarto de hora. Já cá está? Continuamos sem sistema. Já tivemos mas, olhe, voltou a cair. Quando quis imprimir foi-se de novo abaixo. É melhor passar logo à tarde. Venha à abertura que depois pode cair. O melhor é não voltar, penso eu. Mudar de vida. Não será hoje.

 

Esta Primavera as cerejeiras não terão cor. Não consigo deixar de pensar no Japão e na tragédia que sobre o seu povo se abateu. É impossível esconder. As lágrimas secam quando o mar recua. O sofrimento sem lágrimas é sempre mais doloroso.

 

Foi anunciado um acordo com os camionistas para pôr termo às pedradas e à coacção dos piquetes. Não sei porquê, o ministro dos Transportes fez-me lembrar a ministra da Educação. Ele fala em utilização de outros combustíveis como a ministra falava em rigor na avaliação dos professores. Em que estaria ele a pensar? Nas horas extraordinárias.

 

Ana Lourenço continua a conduzir excelentes monólogos. Esta noite calhou a vez a José Sócrates. Uma entrevistadora reverente, que se evapora perante os entrevistados, desqualifica-se como jornalista. E deixa a cidadania mais pobre.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 04.03.11

4 de Março de 2011

 

Dentro de uma semana, e Vasco Pulido Valente recorda-o na sua crónica do Público, vai ter lugar uma manifestação, um desfile, talvez um happening, de uma autodenominada “geração à rasca”. Eu já me tinha apercebido de que vinha aí coisa grossa. No outro dia ouvi uns moços a apregoarem o evento no “Prós e Prós” de Fátima Campos Ferreira. Fiquei elucidado sobre a natureza do movimento e as motivações deles. Aquilo de que eles hoje se queixam já eu me queixava há 25 anos quando acabei o curso. À rasca viveram sempre todos os que não se tendo filiado em partidos, integrado nas organizações maçónicas ou religiosas ou não beneficiando de cunhas e compadrios vários, uns herdados da outra senhora, outros adquiridos com os vícios trazidos pela revolução de Abril ou transmitidos pelos papás que se safaram no pós-25 de Abril, acabaram por se fazer à vida. Alguns foram mesmo condenados à liberdade e ainda hoje vivem à rasca. Uns dias melhor, outros pior.

 

A nossa democracia trouxe liberdade, mais mobilidade social, permitiu uma melhor repartição da cultura e do conhecimento, nem sempre devidamente aproveitada pelos seus destinatários, mas continuou a menosprezar os que sempre viveram à rasca. E o problema não foi de parvoeira. Foi de seriedade.

 

A menina dos “Deolinda” sabe que é parva mas não apresenta alternativas. Limita-se a cantar, bate palmas, e agora, também, quer desfilar na Avenida. É compreensível. Esta manhã já vi desfilar os filhos das meninas e dos meninos dos “Deolinda”, os filhos da “geração à rasca”, todos de bibe e serpentinas. E os seus professores e educadores. A partir de amanhã e até terça-feira vamos ver desfilar os seus pais e avós por esse País de foliões de mau gosto em que nos tornámos. Uns de bigode farfalhudo, mamas postiças e saltos altos. Outros de fio dental e silicone. Depois virá o desfile da "geração à rasca", que será como que uma espécie de baile da Pinhata. O tempo é de Carnaval. A “geração à rasca” e a canção dos “Deolinda” coincidem no tempo.

 

Ontem, em Faro, ao final da tarde, houve um debate sobre corrupção promovido pelo Correio da Manhã. Os debates prosseguirão pelo País. A corrupção também.

 

Algumas vozes mais sensatas já perceberam que eleições neste momento não servirão para nada. O problema, como já muitos estudaram, não está na maior ou menor oportunidade da sua realização. Está no sistema político e no sistema eleitoral. Rui Rio marcou pontos apesar de ter confundido o regime com o sistema, mas todos perceberam o que quis dizer. O PS precisava de ter alguém que pudesse responder-lhe com a mesma desenvoltura. Se necessário, um dia, entender-se com ele e que entendesse a sua linguagem. Desenvoltura até há quem a tenha. Credibilidade é que é mais difícil. E ainda assim restará sempre o problema de com o PSD nem o Sporting ser capaz de se entender.

 

De Cavaco Silva é que não se vê a sombra. Desapareceu atrás da sua marquise numa manhã de nevoeiro. Dizem-me que está a preparar o discurso da tomada de posse. Faz muito bem. Até agora limitou-se, qual Benfica, a dar algum avanço aos mercados que nos andam a lixar. A partir de dia 9 acaba-se a brincadeira. Oxalá não apareça mascarado. E que saiba aproveitar essa oportunidade para referir os reflexos positivos que a sua reeleição já trouxe ao País. Há coisas que podem passar despercebidas. E devem ser lembradas amiúde. Os portugueses precisam de estímulos.

 

Je ne compte pas mes emprunts, je les pèse”, escreveu nos seus Ensaios. E que bem que ele escreveu. Se os nossos políticos lessem Montaigne nunca teríamos chegado ao estado a que chegámos. Montaigne não sabia de nós. Teve sorte. Não conheceu Cavaco Silva, José Sócrates ou Passos Coelho. Ainda bem que assim foi. Foi poupado. Se os tivesse conhecido ou sabido da nossa existência teria desistido de pensar e de escrever. Seria gestor. Ou inspector do fisco.  

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 22.02.11

22 de Fevereiro de 2011

 

Dir-se-ia que ainda estamos no ano lunar do tigre. A violência do sismo em Christchurch, o grau de destruição da cidade, não é compatível com a serenidade do coelho. Uma vez mais dei comigo a reflectir sobre a nossa pequenez perante uma tragédia com os contornos do que ali aconteceu. Há vinte cinco anos passei por essa outrora acolhedora cidade do sul da Nova Zelândia, a caminho de Queenstown, do Monte Cook, de Milford Sound e dos fiordes do outro lado, cuja beleza guardo como se tivesse sido ontem. Ver esta manhã as imagens da Catedral anglicana em cacos deixou-me sem palavras. Passear pelos seus jardins seria agora um martírio. Sentir a paz e respirar a liberdade da sua natureza em estado puro um suplício para quem viu tudo colapsar. Se havia sítio onde a alegria do aristotélico viver simples e a confraternização entre iguais tinha sentido era ali. Podemos não voltar aos lugares onde fomos felizes, seguindo a máxima de Pavese, mas jamais imaginamos que a memória dos tempos felizes possa ser violentada e partir na evanescência de um momento como aquele que sacudiu Christchurch.

 

A tragédia em toda a sua brutalidade tem sempre uma dimensão épica. Seja provocada por causas naturais ou por acontecimentos políticos. O caso líbio não foge à regra. Mas enquanto ali é a natureza em todo o seu fulgor que destrói o que tantos em paz construíram, na Líbia é a brutalidade humana que transparece em toda a sua crueza e boçalidade. A realpolitik dos tempos modernos tem tanto de hipócrita quanto de criminoso. Talvez um dia as sociedades, isto é, os nossos políticos, percebam que é impossível servir dois amos ao mesmo tempo. É impossível apregoar a liberdade e os direitos humanos enquanto se faz o deve e o haver das negociatas que alimentam as camarilhas autocráticas das ditaduras do século XXI. Se tivermos que encontrar um fio condutor naquilo que se está a passar no mundo árabe ele resume-se a uma única palavra: corrupção. Os povos são feitos por homens. Os homens, pelo menos os de bem, escolhem os seus amigos. Porque não aqueles? A diplomacia deixou há muito de ser a arte do possível. É cada vez mais um caminho para justificar a ausência de cerviz e a falta de solidariedade para com muitos dos que sofrem. A boa diplomacia de um dia é o erro do dia seguinte. Só isto é infalível.

 

O Governo empenha-se em promover as novas tecnologias. Os advogados são "convidados" a fazer uso das plataformas informáticas (Citius e Sitaf) para enviarem os seus articulados. O Estado continua a não dar o exemplo. Em tão pouco tempo já são três os casos em que no Administrativo e no Fiscal vejo serviços públicos enviarem para tribunais articulados por fax e depois em papel, pagando a totalidade das taxas de justiça devidas sem direito a qualquer redução. Não há nada como gozar com o dinheiro dos outros. Se neste país se quisesse mesmo acabar com o défice público punha-se a cambada dirigente a pagar do seu bolso a diferença entre o que os “seus” institutos pagam e o que pagariam se mandassem as peças processuais para os tribunais por via electrónica.

 

Os serviços e institutos públicos são a imagem dos seus dirigentes. Como os partidos.

 

Ontem, um amigo veio pedir-me para subscrever uma proposta de candidatura de um militante do PS a secretário-geral e, ao mesmo tempo, uma “Moção Política de Orientação Nacional” para ser apresentada no próximo Congresso. Fiz-lhe ver que não via no candidato a pessoa indicada para essas funções, mas que não teria qualquer problema em subscrever a moção. Quanto mais não fosse para agitar a modorra instalada no partido à sombra do “chefe”. Disse-me que não podia ser, “porque agora quem apresentar uma moção para ser discutida em congresso tem de se candidatar à liderança”. É o artigo 9º do Regulamento para Eleição do Secretário-Geral que o diz. Fiquei perfeitamente elucidado. Um tipo pode ser um excelente estratega, ter o azar de ser mais gago do que o rei George VI, não ter carisma, jeito nem vocação para a liderança, que será obrigado a candidatar-se a secretário-geral se quiser ver discutir as suas ideias no local apropriado. Não admira que o partido esteja como está. José Sócrates será recordado pelo que fez no PS nos mesmos termos em que Churchill se referiu a Chamberlain (Joseph): “we have a splendid piebald: first black, then white, or, in political terms, first Fiery Red, then True Blue” (Winston Churchill, Great Contemporaries). Só espero que o partido não acabe internamente com um papel idêntico ao desempenhado pelos liberais ingleses nas últimas décadas

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 21.02.11

20 de Fevereiro de 2011

 

Pergunto-me se a realidade será algo abarcável por cada um de nós. Quem de nós tem a noção, já não digo exacta, aproximada da realidade? E quantos? Tomo por termos o que se passa agora na Líbia, no Iémen, em Marrocos, no Bahrein e na Argélia, logo a seguir ao que aconteceu na Tunísia, no Egipto, no Irão e na própria Síria. Os discursos da diplomacia estão de tal forma afastados do mundo que pretendem interpretar que as afirmações rotineiras dos líderes políticos perdem sentido. Aquilo que se passou há dias com o embaixador da Índia no Conselho de Segurança, que iniciou a sua intervenção lendo o discurso traduzido de Luís Amaro a pensar que era o seu próprio, constitui o melhor exemplo do ridículo em que as coisas caem. Do sem sentido em que andamos. Saber que a sorte dos povos depende de jogos de sombras e de enganos de bastidores é suicidário.   

 

Há cinemas em que qualquer sessão se torna penosa. O som é mau mas a película segue sendo exibida. Depois acendem-se as luzes. O filme continua a correr sem som. Alguém levanta-se, vocifera, vai saber o que se passa. Parece que foi um problema informático. Deve ser moda. Na sala ao lado outra sessão, que o tempo é curto e é preciso aproveitar. Dizem-me que tem várias nomeações para os Óscares. Cheira a pipocas. E a pipocas. A linguagem é crua. Ouvem-se uivinhos, guinchinhos e risinhos. E depois falam como se estivessem em casa. É a hora dos imbecis. E dos cretinos. Não há nada a fazer.

 

Como um texto tão curto gera tantas reacções. Fico admirado. Talvez tenha de rever a minha política de comentários. Um meio-termo seria o ideal, mas isso exige rigor, critério e disciplina. A última tem-me faltado ultimamente. Para haver disciplina importa também ter alguma paciência. Está identificado o problema.

 

O número de desempregados no Algarve cresce de forma tão assustadora que já não vale a pena tentar identificá-los pelos traços do rosto. Muitos não se distinguem dos que ainda têm emprego. Emprego, sim. Porque para quase todos há muito que desapareceu o trabalho. Encontram-se em grupos no “shopping”. Isto está cheio de “Alisuper”. E de Silvas. Os pobres fazem compras com o subsídio. Que haviam eles de fazer? Talvez seja o que lhes resta antes de se acabarem as asinhas de frango e esconderem a dignidade.

 

O Dr. Pinto Monteiro deu uma entrevista. Não posso deixar de admirar a sua coragem. Não pelo que fez ou deixou de fazer, mas pelo que diz e pela forma como o diz. Há um momento nas nossas vidas, na daqueles que ainda acreditam nalguma coisa, que o simples facto de se acreditar e de se confessar poderá ser visto como um sinal de insanidade. Continuo a magicar como é que um tipo bem preparado, interessante e inteligente ainda se aguenta. Mais, eu não sei como é que o MP ainda não estourou de vez. Se fosse uma empresa já teria fechado. Li algures que o sindicato da tabanca que ele dirige conseguiu meter seis dos nomes que apoiou no Conselho Superior do MP. Deve ser mais uma vitória do Dr. Palma. Agora vamos todos poder dormir descansados. Enfim, da maneira que isto está, quando ninguém ouve ninguém, isto ainda acaba tudo como na Líbia: rodeados de tendas, de camelos e de tiros.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 18.02.11

18 de Fevereiro

 

Um homem nem sempre é a sua circunstância. Muitas vezes será aquilo que fizerem dele. Talvez por isso é que nem sempre nos apercebamos da dimensão de uma tragédia. Um simples gesto pode revelar muita coisa.

 

Esta manhã, quando fazia a minha ronda diária pela imprensa, fui confrontado com a notícia de um filho que esfaqueou a mãe. O filho tem 13 anos. A mãe 40. Que pode levar uma criança a esfaquear a mãe? A insânia não costuma escolher idades, mas também ela pode assumir diversas dimensões. Uma criança normal - aos 13 anos é-se criança - tem sentimentos como um adulto. Apercebe-se das coisas; e embora possa ser, e é, inimputável, na maior parte das situações será capaz de distinguir o bem do mal. E consegue distinguir uma acção justa de um acto tresloucado. Ultimamente são tantos os casos a que assisto, de criancinhas aos berros no supermercado, batendo com ambos os pés no chão e chamando todos os nomes e mais alguns aos pais, enquanto estes riem, até ao rapazola mal educado que só arranja problemas e de quem dizem ser "hiperactivo", que dou comigo a pensar que estes casos começam a tornar-se assustadoramente banais. Eles lá saberão qual o caminho que estão a trilhar. E o que querem que eles trilhem.

 

O PS voltou a estar mal. É claro que a proposta do CDS/PP quanto à alteração do estatuto do gestor público e a limitação da remuneração dos gestores tinha muito de populista e de oportunista. Desta vez foram o BE e o PCP que quiseram cavalgar a onda de Paulo Portas. O Paulo é um cínico por natureza (politicamente falando) mas desta vez tinha razão. Eu esperava que a minha agremiação tivesse sido capaz de ajuizar a situação aos olhos dos portugueses. E aos olhos dos seus eleitores, começando a separar o trigo do joio. Mas não. Uma vez mais perderam a oportunidade de dar um sinal à sociedade num momento em que muita gente sente o chão fugir-lhe debaixo dos pés. Mais dia menos dia isso terá de ser feito e nessa altura lá irão eles a reboque do momento. Depois não se queixem.

 

Aos poucos vamos conhecendo a verdadeira face do Bloco de Esquerda. Em meia dúzia de dias, e não terá sido só por causa das presidenciais e da moção de censura, perderam definitivamente o norte. Os métodos são os habituais. E se a razão foi o facto dele não ter apoiado Manuel Alegre o caso ainda é mais grave. Manuel Alegre devia dizer alguma coisa sobre isto. Oxalá que alguém lhe pergunte.

 

Nunca percebi por que razão para algumas pessoas é tão difícil reconhecer o erro, corrigi-lo e fazer melhor. Com os chineses compreendi que as questões de face são muitas vezes dramas de vida. Entre nós, na nossa cultura, é algo de incompreensível. 

 

Tão incompreensível como ver os nomes de simples técnicos de uma Câmara Municipal na lista de membros honorários de um clube de golfe que tem uma jóia de milhares de contos e que anualmente cobra mais uns milhares de euros a cada um dos seus associados para que mantenham essa condição. Que o Presidente da República seja membro honorário ainda percebo. Que o presidente da Câmara também, embora isso já me pareça menos curial. Mas que simples técnicos - chefes de departamento ou de divisões de urbanismo são para mim técnicos - gozem de igual estatuto numa lista de uma dúzia de felizardos entre o presidente da Federação Portuguesa de Golfe, ex-dirigentes e gente grada ao clube, já não me parece bem. E então quando me esclarecem que os ditos, de vez em quando, até vão jogar e levam os amigos mas não se dão com ninguém do clube, fico desconfiado. E mais desconfiado fico quando sei que há munícipes que conseguem agendar reuniões numa questão de minutos e outros que durante meses nem sequer resposta recebem às comunicações que enviam ao responsável máximo da autarquia, então fico a pensar se não haverá ali algo mais do que uma simples atenção, do que uma simpatia para com os senhores técnicos. A culpa deve ser da minha mania da transparência.

 

Por falar em transparência, lembrei-me da situação ocorrida no sábado passado com o preço da gasolina. Da 95. Quando atestei em Faro estava a €1,55 qualquer coisa. No mesmo dia e numa bomba da mesma marca, na linha do Estoril, estava a € 1,509. No dia seguinte, quando atestei em Cascais, ainda na mesma marca de combustíveis, que o Alfa não faz misturas, paguei o litro a € 1,45 qualquer coisa. O rapaz da caixa esclareceu-me que € 1,509 era o preço recomendado pela marca. Mostrou-me o aviso. A diferença correspondia ao valor da promoção daquele posto. Na auto-estrada, no regresso, estava em todas as áreas de serviço a mais do que € 1,55. Ao chegar ao Algarve estava outra vez a € 1,54 qualquer coisa. Em Faro disseram-me depois que os concessionários não têm todos o mesmo preço. Isso não era novidade. Ninguém me soube foi explicar por que raio no Algarve a gasolina é sempre mais cara do que em Lisboa. Até quando chove durante dias a fio. Tenho impressão de que o tal Sebastião não deverá saber destas coisas. Um destes dias vou ter com ele e pergunto-lhe se sabe qual o preço da gasolina. Se ele não souber escrevo ao Manuel Pinho. Ao Sócrates não, que era capaz de não me responder. Eles agora ofendem-se com tudo e mais alguma coisa.   

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 11.02.11

11 de Fevereiro

 

Creio que hoje em dia poucas coisas são susceptíveis de me abalarem. O fio dos anos vai-nos criando, quanto vezes de forma perfeitamente involuntária, um escudo que não nos protegendo de nada dá-nos distância e olhar. Não sei se existe alguma patologia que possa ser designada por secura humana e que não transbordando para o exterior, não sendo capaz de nos corroer aos olhos dos outros, nos torna pacientes de nós mesmos, espectadores da forma como a natureza que nos molda se vai inexoravelmente corroendo. Mais do que um estado de espírito. Menos do que uma constatação de enfermidade.

 

Um caso foi notícia. Os casos que são notícia têm sempre que ver com o fisco nas suas múltiplas formas e nuances. Com o que é tirado, com o que se põe, com o que se desvia; agora também com o que se descobre na sequência de um arrombamento. Uma penhora de um imóvel pode acabar na penhora de uma alma. Não vale a pena comentar. As imagens deprimem-me. Olho para mim. Depois daquele tratado do valter nunca as minúsculas fizeram tanto sentido. Neste país não há velhos. Sobram múmias. E quando estas acabarem há-de ficar o fisco. E um inquérito da Procuradoria-Geral da República.

 

Está tudo na mesma. Passou quase um mês. Escreve-se no presente o que se escrevia no passado. Tudo se torna repetitivo. A política em especial. Dedico-me a ver os rostos, a coleccionar expressões. O Parlamento. A página oficial da Presidência da República. O cartão do cidadão. Outrora dizia-se dos miúdos mais irrequietos, ou dos adultos mais adolescentes, que lhes faltava um parafuso. Na era das novas tecnologias, na sociedade do risco que Beck anunciou, dir-se-ia antes que este país tem um chip a menos. Ou vários.

 

É mais difícil regressar quando nunca se consegue verdadeiramente sair. Por momentos ouvi o Pacheco Pereira, o António e o Lobo Xavier. Percebe-se que o Bloco de Esquerda entrou em autogestão. Não tarda e implode. José Sócrates lá se vai aguentando. Dizem-me que vai haver um congresso. Para quê?, pergunto eu. E o senhor dos passos de coelho já fala estrangeiro com os amigos de Paris. Que será feito do Relvas? Ultimamente só vislumbro o Marques Mendes. Não há nada como pôr o homem em cima de um estrado e vê-lo debitar com um microfone. Cavaco Silva foi à “Autoeuropa” com o seu “homólogo” alemão. Voltou tudo à normalidade. Aos chavões. Os antigos que viveram um milhão de vezes sabem como é difícil avaliar o passado. “O que deixamos para trás não é o que ficou gravado na pedra dos monumentos, mas sim o que é tecido nas vidas de todos nós”, disse Péricles.

 

Não sei se alguma coisa está a ser tecida quando tudo se resume a pedaços de papel. Da penhora ao aviso da hasta pública, da petição à convocatória do Congresso. Se não tem família, quem subscreverá o requerimento para a colocação da lápide no cemitério? Ou ficará sem lápide? Há-de aparecer alguém. Nem que seja um sobrinho, com um papel na mão, a ver se anula a adjudicação. Depois que o Álvaro se finou já não são as memórias dele nem as cartas de amor que são ridículas. Ridículos somos nós. Ultimamente muito esdrúxulos. Definitivamente sem graça. De papel.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 05.01.11

4 de Janeiro de 2011

 

Tal como eu já aqui escrevi, e hoje foi sufragado por gente tão diferente como Miguel Sousa Tavares, Camilo Lourenço, Helena Matos ou Manuel Villaverde Cabral, não é pelo facto do candidato Cavaco Silva dizer qualquer coisa do género “hão-de nascer os homens que sejam mais honestos do que eu”, que ele se torna mais sério, mais honesto do que os outros que nasceram depois dele ou que escapa a que lhe sejam feitas perguntas incómodas.

Se o candidato Cavaco Silva não quiser responder às perguntas é lá com ele. Alberto João Jardim ou Pinto da Costa também só respondem ao que lhes convém. E não ao que a seriedade, a transparência da vida pública ou o respeito pelas instituições obriga. Nisso, Cavaco Silva não se distingue de nenhum desses dois. Desconversa. 

Escrevi, por diversas vezes, o que pensava sobre Cavaco Silva. Quem leu dever-se-á ter apercebido de que a partir do caso das escutas e da óbvia protecção dada a Fernando Lima passei a colocá-lo ao nível de um Rocha Vieira (mais um da Comissão de Honra). Por alguma razão Fernando Lima era também visita assídua em Macau – cruzei-me várias vezes com ele no Mandarim Oriental – e beneficiou do seu apoio e do de Jorge Rangel para publicar o que dificilmente publicaria noutro lado. Um promoveu em Macau os negócios dos "protegidos" – houve quem sendo director de um serviço público fosse nomeado por urgente conveniência de serviço para assinar um contrato, em representação do Governo de Macau, com uma sociedade anónima por acções, da qual também era accionista e administrador, enquanto funcionário público, e acabasse condecorado, logo a seguir, no 10 de Junho pelos bons serviços prestdos (o general Eanes não devia saber disto quando escreveu o prefácio do livro da Gradiva) –, o outro, sendo professor de Economia e ex-primeiro-ministro, acha normal gastar € 100.000,00 (cem mil euros) – uma bagatela que qualquer reformado tem debaixo do colchão para ir ao pão – a comprar acções não cotadas em bolsa de um banco onde pontificavam correligionários do partido, acções que vendeu com um lucro substancial sem que agora considere sequer admissível que se lhe pergunte como as comprou (por sugestão de quem, por intermédio de quem?) e a quem vendeu (pôs anúncio no jornal ou tratou de falar com um gestor de conta "amigo" para lhe arranjar comprador?), embora seja candidato presidencial e Presidente da República, e em que condições (cheque, dinheiro vivo, transferência bancária, e de quem?), remetendo as respostas às explicações que deve dar, a bem da transparência e da seriedade do regime, para textos esotéricos cozinhados no recato do seu gabinete, que religiosamente publica na Internet e que nada esclarecem sobre aquilo que importa, fazendo de conta que os outros, além de cegos, mudos e surdos, são parvos.

Um homem sério não remete para os textos que publicou in illo tempore num qualquer local da Internet a defesa da sua honra, dos seus pontos de vista e das suas convicções. Ou, pior um pouco, para as declarações que depositou no Tribunal Constitucional e que nada esclarecem sobre os negócios que andou a fazer antes de depositá-las, princípio que também aplico a qualquer outro político, chame-se Valentim Loureiro ou Jerónimo de Sousa.

Os desempregados, os pobres e os reformados, cuja defesa o candidato Cavaco Silva reclama em exclusivo, não têm banda larga no Sapo e dificilmente terão acesso a um computador para ler as declarações publicadas no site da Presidência da República. Quando muito irão à Internet para procurar trabalho, saber da melhor forma como recorrer a um subsídio da Segurança Social ou imprimir um formulário para esse efeito.   

Admito que aquilo que o candidato Cavaco Silva disse sobre a gestão do BPN pós-nacionalização, conduzida por alguns dos senhores da sua comissão de honra (eu bem dizia que estavam lá todos), e seguramente que já motivado pela antevisão dos “orgasmos” que os banhos de multidão do companheiro Jardim sempre lhe proporcionam numa deslocação à Madeira, digeridas que estavam as antigas críticas do anfitrião ao “Sr. Silva” (é preciso estômago!), retive as palavras desta noite de Fernando Ulrich sobre as críticas do candidato à acção do Governo no caso BPN: “Eu não sou um apoiante deste primeiro-ministro, mas penso que eles não cometeram tantos erros como os que estão implícitos na sua pergunta” (de Ana Lourenço, na SIC).

Eu também não sou (apoiante do primeiro-ministro, entenda-se, e não sou do Bloco de Esquerda). Nem nunca fui. Apesar de em tempos lhe ter dado o benefício da dúvida e até a minha confiança. Como dou a qualquer homem de bem antes de ver desmentidas as suas palavras pelas "alhadas" em que se mete.

Porém, como entretanto também não andei a comprar nem a vender acções, fosse do BPN, do BCP ou da Mota-Engil, continuo a pensar que tenho direito, como qualquer cidadão, a saber se as acções que Cavaco Silva tinha na SLN/BPN foram vendidas a um “veículo”, a uma offshore de um dos seus “compagnons de route” do cavaquismo, ou se o foram ao Manuel dos Anzóis, reformado, residente na Musgueira, que viu o anúncio da “venda de acções da família C. Silva”, por “motivo à vista”, num painel do Pingo Doce quando buscava “uma companheira para amizade sincera”.

É que a diferença entre mim, contribuinte, que vou pagar com os meus impostos os milhares de milhões do buraco do BPN, e o candidato Cavaco Silva, que como eu vai pagar com os seus impostos os milhares de milhões do buraco do BPN, é que ele ganhou umas dezenas de milhares de euros a comprar e vender acções da SLN/BPN e a seguir nomeou Dias Loureiro para o Conselho de Estado, e a mim ninguém me perguntou se as queria comprar e vender um ano depois com os proventos, que para lhe serem pagos, a ele e a outros como ele – fora da bolsa e pelos valores que foram – nos deixaram agora, a todos, de calças na mão. Ou se achava bem a nomeação de Dias Loureiro para o Conselho de Estado.

Não é por se ter libertado do escândalo antes do escândalo se tornar num caso de polícia que as coisas fazem diferença. Fá-lo-iam se Cavaco Silva falasse verdade aos portugueses em vez de se refugiar nas meias-palavras.

Isto não tem nada a ver com o que se passou em Inglaterra, na Irlanda, com as escutas, com o Freeport, com a licenciatura de José Sócrates ou com os robalos de um sucateiro.

Em causa estão apenas os "activos" de uma candidatura presidencial que em vez de motivarem verdade, transparência e respeito pelos eleitores, geram pesporrência paternalista e dúvidas sobre a capacidade do candidato em distanciar-se dos "veículos" que o trouxeram até aqui.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 02.01.11

2 de Janeiro de 2011

 

Uma das coisas em que este país melhorou a olhos vistos foi na qualidade do seu design. Falo de objectos de decoração, de utensílios e de mobiliário. A qualidade do design é boa. O gosto e a funcionalidade continuam, todavia, muito discutíveis. Há muita coisa feita em Portugal, mas as melhores continuam a vir de fora. O design pode ser nacional, os materiais parecem-me aceitáveis para a função a que se destinam, só que a qualidade do acabamento é seguramente chinesa. E se depois a limpeza for assegurada por uma dessas espaventosas que deixam tudo lascado e riscado, o melhor é desistir da compra. A forma como hoje em dia se fazem as coisas aflige-me. Não é só nas tarefas domésticas ou nos escritórios. Acontece o mesmo nas lojas, na oficina do carro ou na lavandaria. O problema é cultural. Esta gente não tem formação e a culpa não é das insuficiências da escola pública porque os das privadas são iguais. Não lhes ensinam, não aprendem e muitos também não querem saber. Se não for o esforço individual a fazer a selecção torna-se impossível distingui-los entre si pela maneira como usam o brinco, põem o chapéu ou mostram o pneu a sair das calças.

 

A entrada na corrida presidencial do madeirense José Manuel Coelho pode vir a fazer a diferença. O homem não quer apenas chocar. E parecendo-me um tipo minimamente inteligente e com sentido de humor – só num registo humorístico se pode interpretar aquela cena da bandeira nazi no parlamento regional da Madeira – não me admiraria se houvesse gente abstencionista a ir às urnas por sua causa. Uma coisa é certa: o cinzentismo macambúzio que ficou dos monólogos a dois do mês de Dezembro vai ser substituído pela irritação de alguns dos protagonistas. O facto dele não se levar muito a sério só abona a seu favor e permite-lhe dizer coisas sérias a brincar e sem esforço. Ao Alegre não causará grade mossa, mas não estou tão certo que Cavaco Silva não venha a ser penalizado com uma tão súbita quanto inesperada entrada em cena. A comparação que fez entre a mensagem de Ano Novo do Presidente da República e as declarações de circunstância das meninas nos concursos de beleza foi um mimo a prometer mais.

 

O empregado que hoje nos atendeu ao almoço era nepalês. De Pokhara. Ficou admirado por saber que eu conhecia o belíssimo lago da terra dele onde vi o pico do Annapurna reflectido na superfície das águas espelhadas. Veio direitinho para o Happy Family. Fiquei elucidado sobre quão miserável devia ser a sua existência quando com uma desarmante simpatia e simplicidade me disse não conhecer Katmandu nem os arredores. Só conhecia Pokhara. Não sei como veio cá parar, nem o que terá passado até aqui. O facto de ele estar entre nós devia ser motivo de satisfação e não nos pode deixar indiferentes ao fenómeno da emigração. Oxalá que seja feliz por cá. 

 

O ruivinho perdeu em casa. Pinto da Costa começa o ano engasgado. Amanhã deverá vir dizer que a taça da liga é uma competição menor. Em parte é verdade. Só em parte, porque também lá estão. Assim, só posso pensar que 2011 entrou bem.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 02.01.11

1 de Janeiro de 2011

 

Com excepção do dia em que jurei a mim mesmo deixar de fumar (cigarros, regularmente, em 1 de Janeiro de 1993), coisa que pegou no dia em o Miguel V. me xingou a viagem toda de Casal Velho para Lisboa por causa do fumo dentro do carro e do frio que entrava pela janela, não sou de fazer juras em cada dia primeiro de Janeiro. Só tenho força de vontade para aquilo que considero verdadeiramente importante. Deixar de fumar foi uma delas. Começar a escrever estas linhas foi outra.

 

Antes de prosseguir quero avisar a quem vier a ler estas linhas de que nesta coisa dos diários sou um neófito, com todos os prejuízos e danos para a minha imagem que daí podem advir. Como escreveu Marcello Duarte Mathias (cada vez gosto de mais de relê-lo porque há poucos, muito poucos, como ele, na elegância, no estilo e na simplicidade com que trata a língua), “não há coisa pior do que os neófitos: seja de Deus, do sexo ou da política”, mas de uma coisa tenho a certeza, é que amanhã já não serei neófito. E depois, à medida que este diário público e em letra de forma for surgindo, as pessoas ir-se-ão habituando. Esquecendo.

 

Um diário é datado e a datação limita-o. É a sua marca genética. Mesmo quando alguns anos depois o relemos, sem prejuízo de podermos transportá-lo para o presente, ele permanece encaixado num ponto que foi. Em todo o caso, quando a memória começa a falhar, e ela amiúde já falha, permite-nos manter um referencial em relação a nós mesmos.

 

Registar factos é próprio de outro tipo de homens, é coisa de especialistas. Eu prefiro ir registando as minhas dúvidas, as minhas perplexidades, as minhas convicções. Para que não me esqueça delas. Não me perdoaria esquecer aquilo que para mim foi importante. Pequenas rotinas, lampejos de um momento, a memória. A memória é uma espécie de beijo. E numa terra de beijoqueiros há que ser selectivo. Na memória só podem ficar registados os bons. Ou os que marcam por uma razão ou por outra.

 

Não penso que esta quadra, ano após ano repetida de acordo com o calendário judicial, que aos poucos foi substituindo o religioso, suspendendo prazos e trocando-os por cartões de Boas Festas, sms cheios de “k” e notificações do Fisco, faça esquecer o verdadeiro sentido do Natal, a anteceder a entrada de um Novo Ano e a caminhada dos Reis Magos. A comunhão que a quadra envolve, o sentido de recolhimento e partilha que vejo nela (muito mais do que os embrulhos de circunstância e o final de concursos televisivos medíocres) faz-me repetir, apesar de tudo, alguns momentos que reservo para mim depois dos outros se recolherem. Há o disco que se repete (sublimes os duetos de Aznavour com Sting e com Nana Mouskouri), o livro que se relê, o charuto que em cada ano regressa enquanto o seu fumo persegue a vela que teima em arder aromatizada pelas fragrâncias da moda.

 

Ouvi de relance a Clara Ferreira Alves (há mulheres que nos fazem gostar mais das mulheres) referir esta noite qualquer coisa como “a carteira de cumplicidades do BPN”. Parece que ela gostava de vê-la esclarecida. Eu também. Mas da maneira que este país está, perguntar a Cavaco Silva (ele que até já fala na "ética republicana") o que o levou (e já agora à sua filha) a comprar acções do BPN/SLN não cotadas em bolsa, tentar esclarecer quem as recomendou (e quem foi o figurão que tratou da burocracia) e como as coisas se processaram entre o momento da aquisição e a decisão de venda, incluindo as verdadeiras razões da respectiva valorização, é mais ou menos o mesmo que acontecia há uns meses quando se perguntava por uns desenhos da Cova da Beira, umas licenciaturas “esquisitas” ou umas offshore impertinentes. Qualquer que seja a cor, o fundamentalismo é sempre o mesmo quando por detrás dele está a subserviência enfatuada ou a crença na infalibilidade do testemunho.

 

Pedro Marques Lopes, participante no mesmo fórum da Clara, dizia que o caso BPN vai ser uma espécie de “Vale e Azevedo 2”; para logo a seguir acrescentar que “foram feitas vigarices absolutamente gigantescas” (sic na SIC-N), recusando-se a acreditar que “aquilo” fosse obra de um homem só.   

 

Eu também não acredito. Penso que ambos têm a razão. A Clara mais do que o Pedro.

 

Por vezes gostaria de ter mais distância. A distância dá-nos outra liberdade, mesmo quando teimamos em querer manter a lucidez. E se eu prezo a lucidez. Dá-me outra liberdade. Não é fácil. Em especial quando, como também escreveu “o” Marcello – os autores que apreciamos tornam-se íntimos ao fim de algumas obras: eles partilham a escrita; nós, leitores, vamos sublinhando-lhes as frases, as metáforas, as hipérboles, e, no caso dele, a serena e elevada lucidez que há tantos anos o acompanha –, se vive num país que é “uma coutada de compinchas”, de “valores entendidos que se ajudam e promovem mutuamente”, que não admite “que alguém que não lhes preste vassalagem nem navegue nas mesmas águas, possa ter mais talento do que eles sem deles depender”. O general Rocha Vieira também era assim em Macau, coisa que o general Eanes não sabe, não percebe nem conhece, quando lhe prefacia os livros de tom laudatório e adolescente que a Gradiva edita (o Guilherme é um homem bom e inteligente mas livros daqueles dão a ideia de que está a agradecer os serviços que prestou ao tipo).

 

Abomino tanto a presunção quanto a avareza e a pelintrice.

 

Enfim, há alturas em que tudo se torna mais verdade. Também mais doloroso. E desta vez, raio de lembrança, a Lusa e o Afonso Camões não têm culpa do estado a que tudo isto chegou. Seria injusto negá-lo. Já não é Natal. Mas quem diria que foi 1 de Janeiro?