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Delito de Opinião

A Animação é para crianças (ou não) - 7

João Campos, 03.06.22

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Akira
Realização: Katsuhiro Otomo
Argumento: Katsuhiro Otomo e Izo Ashimoto
Baseado no manga homónimo de Katsuhiro Otomo (1982-1990)
Produção: Tokyo Movie Shinsha
Ano: 1988
Duração: 124 minutos
País: Japão

É muito provável que sem Akira - tanto o mangá original de Katsuhiro Otomo como o filme que o próprio Otomo realizou e estreou em 1988 - a banda desenhada, a animação e a ficção científica fossem muito diferentes daquelas que conhecemos, tanto no Japão como no Ocidente.

A afirmação poderá parecer hiperbólica a quem nunca tiver lido ou visto Akira, mas quem conhece sabe do que falo. A influência das pranchas e da animação de Otomo é inegável: desde logo na banda desenhada, com o cyberpunk japonês a expandir-se com títulos notáveis como Ghost in the Shell de Masamune Shirow ou Battle Angel Alita de Yukito Kishiro; por sinal, duas obras que encontraram influências bem distintas em Akira. Nos videojogos, títulos japoneses consagrados em todo o mundo como Metal Gear Solid ou Final Fantasy VII foram beber abundantemente a Otomo. E na animação, para além das referências mais óbvias, como a adaptação cinematográfica de Ghost in the Shell por Mamoru Oshii, importa falar do fenómeno de culto que o filme gerou nos anos 80 e 90, e do contributo decisivo que deu para a animação japonesa se afirmar na Europa, nos Estados Unidos, e daí para o resto do mundo. Muito do sucesso que a animação japonesa conheceu no Ocidente a partir da segunda metade dos anos 90 pode ser explicado por este filme singular de 1988. 

Na sua essência, Akira, o filme, é uma versão condensada da banda desenhada de Otomo, com uma trama cyberpunk localizada na Neo-Tokyo em 2019, reconstruída em redor da enorme e misteriosa cratera de impacto que assinala a destruição da capital japonesa em 1988 e marca o início da Terceira Guerra Mundial. Tudo isto é passado no momento em que o filme começa, claro: nele seguimos o bando de adolescentes delinquentes que cruza Neo-Tokyo nas suas motas à procura de sarilhos, liderados por Kaneda e Tetsuo. Um acidente num antigo viaduto, porém, leva Tetsuo a descobrir um poder inesperado, e obriga Kaneda a enfrentar as forças militares da cidade, grupos políticos subversivos, seres com poderes extraordinários, e os seus próprios amigos.

Akira ocupa um lugar de destaque dentro do movimento cyberpunk da ficção científica que marcou os anos 80, a par de obras como o filme Blade Runner de Ridley Scott, o romance Neuromancer de William Gibson e a antologia de ficção curta Mirrorshades, editada por Bruce Sterling - há entre elas um nexo narrativo, temático e estético cuja influência ainda hoje se faz sentir. Otomo transpõe com mestria as suas próprias pranchas para uma animação magnífica, que continua espantosa ao fim de mais de três décadas, e dá a cada cena uma intensidade tremenda, quase eléctrica na sua violência, à medida que vai desvendando o mistério que envolve Tetsuo, os militares e o misterioso “Akira”. Já passaram mais de trinta anos sobre a sua estreia, e nem por isso o filme perdeu força. Pelo contrário: continua influente, pertinente e assombroso. E a mota vermelha de Kaneda continua a ser um ícone da cultura popular global, identificada com facilidade em qualquer parte do mundo.

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A Animação é para crianças (ou não) - 6

João Campos, 27.05.22

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Wolfwalkers
Realização: Tomm Moore e Ross Stewart
Argumento: Will Collins, com base numa história de Moore e Stewart
Produção: Cartoon Saloon, Mélusine
Ano: 2020
Duração: 103 minutos
Países: Irlanda, Luxemburgo e França

Wolfwalkers foi o melhor filme de 2020 que pouca gente viu. 

Não estou sequer certo de que tenha estado em exibição nas salas portuguesas por alturas do Natal de 2020; se esteve, terá certamente sido por poucos dias, com a azáfama da quadra e o contexto pandémico a abafarem a estreia. Foi distribuído em streaming pela Apple TV, onde tanto quanto sei ainda é possível vê-lo, mas a segunda grande desvantagem do streaming (a primeira é a falta do grande ecrã, claro) também lhe terá retirado alcance: afinal, quem pode hoje em dia subscrever a quantidade cada vez maior de plataformas digitais, com os seus conteúdos exclusivos?

Os problemas de distribuição em nada diminuem a qualidade dos filmes, claro - e seja no grande écrã de uma sala de cinema ou no pequeno ecrã da televisão das nossas salas, Wolfwalkers é uma pequena maravilha. Será talvez o filme mais juvenil que trarei a esta série, mas também será decerto um dos mais prodigiosos em termos artísticos. Não é por acaso que há já quem se refira ao Cartoon Saloon como os Estúdios Ghibli da Europa: a cada novo filme os estúdios irlandeses e os seus parceiros europeus exploram novos territórios narrativos e novos estilos artísticos, até à data com enorme sucesso. Este enquadra-se na "trilogia irlandesa" de Moore, explorando, tal como A Canção do Mar e Brendan e o Mundo Secreto de Kells, aspectos da história e do folclore da Irlanda.

Wolfwalkers recua à Kilkenny setecentista (pormenor: Kilkenny é também a cidade onde o Cartoon Saloon está sedeado) para contar a história de duas crianças: a rebelde Robyn, filha do caçador inglês Bill Goodfellowe, convocado àquela região pelo Lorde Protector para exterminar os lobos que dominam a floresta local e aterrorizam os cidadãos; e Mehb, cujo espírito se transforma num lobo enquanto dorme, e assim defende a floresta com a sua alcateia das incursões dos lenhadores de Kilkenny. A animação, nunca é demais dizer, é absolutamente magnífica no traço vivo e irregular - um desenho animado em estado puro, se quisermos - e na utilização da cor, com Moore e Steward a adaptarem o estilo a cada momento: a cidade de Kilkenny é sempre rígida e geométrica, em tons mais esbatidos, como uma gravura antiga viva; já a floresta é toda ela curvilínea e irregular, numa explosão constante de cores vivas, na vertigem desenfreada da alcateia por entre as árvores. 

E é com esta animação espantosa que acompanhamos as aventura das duas raparigas, da qual se podem fazer várias leituras: sobre os papéis femininos naqueles tempos, sobre a colonização pela figura do Lorde Protector, símbolo da opressão inglesa; e sobre o conflito eterno entre a civilização e a natureza. Podemos pensar nas semelhanças com A Princesa Mononoke - a floresta dominada por criaturas mágicas com lobos como protectores, uma rapariga selvagem forte e resoluta, a civilização como elemento destruidor do mundo natural. Nesse aspecto o filme de Moore e Stewart será menos ambíguo - menos complexo? - do que a obra-prima de Miyazaki, mas nem por isso deixa de ser menos tocante, incidindo mais sobre a força colonizadora de uma entidade externa (no caso, a Inglaterra personificada no Lorde Protector) e sobre a forma como cada personagem luta para aceitar a sua natureza e para fazer o que está certo. 

Se os Óscares primassem pela justiça, Wolfwalkers teria saído da cerimónia de 2021 com a estatueta de Melhor Filme de Animação. Salvo raríssimas excepções, porém, este prémio está destinado à Disney ou à Pixar - que, não desfazendo, há anos que não surpreendem com os seus filmes de animação. Ficou pela nomeação da Academia, pelos vários Prémios Annie conquistados, pela aclamação da crítica e pelo carinho do público que o viu. A maioria dos filmes desta série serão exclusivamente para adultos, mas para Wolfwalkers deixo a recomendação sem reservas a miúdos e graúdos.

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A Animação é para crianças (ou não) - 5

João Campos, 20.05.22

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Paprika
Realização: Satoshi Kon
Argumento: Satoshi Kon e Seishi Minakami
Baseado no romance homónimo de Yasutaka Tsutsui (1993)
Produção: Madhouse
Ano: 2006
Duração: 90 minutos
País: Japão

Paprika é o filme que Inception poderia ter sido se Christopher Nolan tivesse imaginação.

Ao contrário do thriller de Nolan, nada é geométrico ou previsível nesta adaptação do romance de Yasutaka Tsutsui, onde se imagina um futuro próximo no qual foi desenvolvida uma tecnologia que permite o acesso aos sonhos de quem a utiliza. Atsuko Chiba, líder da equipa que desenvolveu o aparelho, começa a utilizá-lo ilegalmente para ajudar pacientes psiquiátricos a superar os seus traumas e as suas neuroses, assumindo nos sonhos do pacientes o alter-ego Paprika. É assim que conhece o detective Toshimi Konakawa, preso num sonho recorrente relacionado com um caso que nunca conseguiu resolver.

Quem tiver visto os filmes anteriores de Satoshi Kon sabe da prelidecção do cineasta japonês por narrativas que questionem os limites da realidade, onde as fronteiras entre o real e o imaginado se esbatem ao ponto da paranóia. Paprika não é excepção, e à medida que o filme avança vemos como os sonhos transbordam na realidade (ou será ao contrário?), com Chiba e Konakawa a aventurarem-se num autêntico pesadelo freudiano onde o impossível é apenas uma questão de perspectiva.

E é nestes territórios temáticos que a animação se revela absolutamente superior. Sim, o que não falta é filmes "reais" a explorar dimensões oníricas (até conseguimos ouvir, sem ouvir, os famosos acordes de harpa), uns com mais virtuosismo e imaginação do que outros. Mas se há forma artística perfeita para explorar os sonhos, essa forma será sem dúvida a animação, e Satoshi Kon, um animador excepcional, sabia-o bem: livre dos limites técnicos da filmagem convencional, pode levar a premissa de Paprika até às suas últimas consequências, numa animação colorida, vibrante, a espaços psicadélica, onde as imagens mais absurdas do inconsciente das personagens ganham uma extraordinária vida. Dito isto, talvez o feito mais extraordinário de Paprika seja nunca perder de vista as suas personagens, que servem de âncora à efusividade onírica da narrativa. Kon pode estar interessado em explorar e extrapolar os limites dos sonhos, mas regressa sempre aos sonhadores, independentemente da forma que possam assumir - às suas motivações, aos seus medos, aos seus traumas, aos seus desejos.

Perdemos Satoshi Kon demasiado cedo - faleceu em 2010, com apenas 46 anos, vítima de cancro. Deixou-nos quatro longas-metragens e uma série televisiva em pouco menos de quinze anos, mas o que não falta é carreiras de décadas com menos trabalhos tão relevantes e tão influentes. Paprika, o seu último filme, será sem dúvida o pináculo do seu trabalho e um resumo perfeito dos seus temas que lhe eram mais caros.

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A Animação é para crianças (ou não) - 4

João Campos, 13.05.22

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O Homem Duplo
Título original: A Scanner Darkly
Realização e argumento: Richard Linklater
Baseado no romance homónimo de Philip K. Dick (1977)
Produção: Thousand Words, Section Eight, Detour Filmproduction, 2 Arts Entertainment
Ano: 2006
Duração: 100 minutos
País: Estados Unidos

O Homem Duplo será talvez a mais fiel adaptação de Philip K. Dick alguma vez filmada.

E foi filmado mesmo: Richard Linklater usou a técnica de animação rotoscópica para animar as deambulações e peripécias de Keanu Reeves, Winona Ryder, Robert Downey Jr. e Woody Harrelson numa Los Angeles distópica e devastada pelo consumo de drogas. E por uma droga em particular: a Substância D, alucinogénica e viciante como nenhuma outra. De tal forma que o Governo sobe a parada na guerra às drogas, utilizando agentes infiltrados como Bob Arctor/Fred (Reeves) e técnicas de vigilância cada vez mais invasivas.

Qualquer leitor de Philip K. Dick sabe que nas suas histórias nada é aquilo que parece, e ninguém é exactamente quem aparenta ser. O Homem Duplo, o livro, não é excepção - escrevi aqui no Delito sobre ele há muitos anos, quando o li pela primeira vez (dediquei também um parágrafo ao filme). E Linklater cedo percebeu que a vertigem de Arctor/Fred a espiar-se a si mesmo e a comunicar com suspeitos, colegas e chefes através do scramble suit jamais funcionaria tão bem em filmagem convencional como em animação. Reconhecemos Reeves, Ryder, Downey Jr e Harrelson facilmente através da rotoscopia, mas as cores saturadas e as linhas traçadas e esbatidas complementam muito bem a trama ao torná-la progressivamente mais surreal, e geram algumas cenas inesquecíveis. Como as duas alucinações do Charles Freck interpretado por Rory Cochrane, personagem secundária que rouba o filme naqueles dois breves momentos.

Já todos teremos visto adaptações audiovisuais de Philip K. Dick, de Blade Runner a Total Recall ou até à recente antologia televisiva Electric Dreams. Nenhuma, porém, conseguiu capturar tão bem a paranóia e a dissolução da realidade, cerne da obra do escritor, como o Homem Duplo. Não só pela absoluta fidelidade do guião, mas também - sobretudo, diria - pela utilização da animação, que pelas suas características é o formato perfeito para este tipo de histórias. Linklater percebeu-o, e fez um filme espantoso.

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A Animação é para crianças (ou não) - 3

João Campos, 06.05.22

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O Túmulo dos Pirilampos
Título original: Hotaru no haka
Realização e argumento: Isao Takahata
Baseado no conto homónimo de Akiyuki Nosaka (1967)
Produção: Estúdios Ghibli
Ano: 1988
Duração: 89 minutos
País: Japão

O Túmulo dos Pirilampos é um dos mais espantosos filmes de animação que já vi - e talvez o único até à data que jamais quererei rever.

Isao Takahata, colega de Hayao Miyazaki nos Estúdios Ghibli, adaptou para animação o conto semi-autobiográfico de Akiyuki Nosaka que decorre durante os últimos meses da Segunda Guerra Mundial. A acção, porém, decorre longe das grandes batalhas navais ou das linhas de combate, mas na região da cidade de Kobe, arrasada durante um bombardeamento dos Aliados. Por entre as ruínas seguimos o adolescente Seita e a sua irmã Setsuko, deixadas à sua sorte quando a mãe sucumbe aos ferimentos causados pelo ataque.

Sabemos desde os primeiros momentos como o filme vai acabar: Takahata mostra-o desde logo. Mas isso não retira nem um pouco da força da história que está a contar, da tragédia daqueles dois irmãos arrancados às suas infâncias por uma guerra que não desejavam ou sequer compreendiam, e a sua odisseia desesperada pela destruição que lhes roubará tudo. A animação colorida e vibrante de Takahata não disfarça o impacto emocional devastador daquela hora e meia. Bem pelo contrário: amplifica-o, torna-o ainda mais comovente e angustiante.

Se O Túmulo dos Pirilampos fosse um filme “convencional”, com actores e imagens reais, seria, com toda a justiça, considerado um dos grandes dramas de guerra do cinema mundial, e não seria menos falado e aclamado do que, por exemplo, A Lista de Schindler. O preconceito contra a animação ter-lhe-á retirado alcance, mas não retirou nem um pouco do seu poder. Takahata mostra como poucos quem são as verdadeiras vítimas daquela guerra, de qualquer guerra: as pessoas comuns, forçadas a sobreviver em desespero, obrigadas a tudo para aguentar mais um dia. E sobretudo as crianças, sempre as crianças. Pela natureza dos seres humanos, será um filme sempre actual: dificílimo de ver, e impossível de se lhe ficar indiferente.

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A Animação é para crianças (ou não) - 2

João Campos, 29.04.22

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A Princesa Mononoke
Título original: Mononoke-hime
Realização e argumento: Hayao Miyazaki
Produção: Estúdios Ghibli
Ano: 1997
Duração: 134 minutos
País: Japão

De todos os filmes de animação que já vi, A Princesa Mononoke é sem dúvida o meu favorito.

Um realizador e argumentista com menos experiência e menor sensibilidade cairia inevitavelmente nas armadilhas e nos clichés daquele tipo de história: antagonismo entre o mundo natural e a civilização industrial; herói vindo deste para aquele mundo, acabando por lutar pela sua preservação; os bons selvagens em inferioridade numérica perante os colonizadores industriais, evidentemente vilões; o salvador iluminado (e branco, se fosse um filme produzido no Ocidente). Na verdade não precisamos de imaginar como se poderia cair nos lugares-comuns destas ideias, pois já os vimos em obras como Danças com Lobos, Pocahontas ou Avatar.

Miyazaki, porém, evita todas essas armadilhas com mestria e elegância. Dotado de uma sensibilidade única e de uma capacidade tão invulgar como extraordinária de contar histórias cativantes sem necessitar de heróis bonzinhos, de vilões exagerados (ou sequer de vilões: veja-se Totoro), ou de trincheiras morais bem demarcadas, o mestre japonês tece em A Princesa Mononoke uma narrativa envolvente e ambígua, convidando o espectador a acompanhar aquelas personagens e a reflectir sobre as suas palavras e os seus actos, sem nunca tentar conduzir essa reflexão para determinada posição moral. Como tal, nenhuma dessas personagens é, em momento algum, simples. Por isso Ashitaka, o príncipe exilado após ser forçado a eliminar o Deus Javali enlouquecido, tenta encontrar a paz sem conseguir sempre evitar a violência. Por isso San e Moro, a Deusa Lobo, cometem atrocidades no decorrer da sua guerra pela preservação da floresta do Deus Veado. E por isso Oboshi, enquanto devasta a floresta e as suas criaturas para a prospecção mineira, defende uma população composta por gente rejeitada, que no Japão feudal que serve de cenário distante ao filme seria ostracizada, escravizada, ou assassinada.

O resultado é um filme espantoso pela sua ambiguidade e pela sua recusa intransigente de Miyazaki em reduzir as facções que San e Oboshi representam a boas ou más - são heróicas e desprezáveis, são antagónicas, são falíveis, e serão porventura irreconciliáveis, mas em momento algum são simples. E ganham vida pela pela animação formidável de Miyazaki, crua nas sequências mais violentas (e este será sem dúvida o filme mais violento do realizador), etérea na travessia pela floresta repleta de kodamas, e sempre evocativa ao mostrar tanto seres humanos como divindades naturais. Junta-se a estes ingredientes uma banda sonora excepcional e temos um dos grandes filmes dos anos 90.

E, claro, é mais um excelente exemplo das espantosas personagens femininas de Hayao Miyazaki: San e Oboshi juntam-se à vasta galeria de raparigas e mulheres icónicas do realizador japonês, onde figuram Chihiro, Nausicaä, Kiki ou Sofî.

É possível que A Viagem de Chihiro seja a longa metragem mais completa e mais bem conseguida de Hayao Miyazaki (lá chegarei no decorrer desta série), mas tudo o que disse acima ajuda a explicar por que motivo A Princesa Mononoke será sempre o meu filme preferido do mestre japonês. Já tive por duas vezes a oportunidade de o ver no grande ecrã: a mais recente foi em Março, no decorrer do festival Monstra 2022. E espero poder desfrutar deste privilégio mais vezes: Miyazaki merece sempre ser visto numa boa sala de cinema. Será sem dúvida o maior realizador de animação vivo; e pela sua vasta e excepcional obra será também, e com toda a justiça, um dos grandes cineastas do nosso tempo.

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A Animação é para crianças (ou não) - 1

João Campos, 22.04.22

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A Fuga
Título original: Flugt
Realização: Jonas Poher Rasmussen
Argumento: Jonas Poher Rasmussen e Amin Nawabi
Produção: Vários
Ano: 2021
Duração: 90 minutos
Países: Dinamarca, França, Noruega, Suécia

Uma vez que ainda é possível vê-lo em algumas salas de cinema portuguesas, começo esta série com Flee.

Filme aclamado do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, Flee conta a história real de Amin Nawabi e da sua fuga de um Afeganistão mergulhado na guerra civil de 1989-92. A animação magnífica e vibrante surge intercalada por breves passagens com imagens reais, de arquivo, do que era a vida em Kabul nos anos 80, da transformação trazida pela guerra civil, da vida dos refugiados numa Moscovo pós-soviética e das tentativas desesperadas, quando não mortais, da fuga da opressão russa para o sonho de uma vida melhor na Europa democrática.

Num registo que combina com mestria a narrativa e o documentário, vamos acompanhando Amin, já adulto e a viver na Dinamarca com o companheiro, Kasper, a narrar a um amigo realizador a história da sua vida. Vemo-lo em criança a correr pelas ruas da capital afegã, no seio da sua família; acompanhamos a fuga com a mãe, as duas irmãs e o irmão, de uma Kabul sitiada, onde os jovens no fim da adolescência eram capturados e forçados a combater e onde qualquer diferença era motivo de vergonha e de castigo; observamos a vida da família numa decrépita e violenta Moscovo nos anos que se seguiram à queda da União Soviética; e seguimos as tentativas do seu irmão mais velho, a viver na Suécia, para conseguir fazer a sua família chegar bem a um país seguro. Amin nunca contara aquela história antes, e à medida que a vai narrando vai percebendo, e nós com ele, como aquela longa fuga em criança e adolescente marcou e condicionou o homem em que se viria a tornar, as opções que tomou na sua vida adulta, e o preço que pagou, ele e a família, pela sua segurança.

Todos os nomes são fictícios, claro, mas em momento algum esse pormenor retira impacto ao relato. Pois aquela história é a história de muitos afegãos que fugiram do seu país, daqueles anos até ao presente. E poderia também ser a história de inúmeras pessoas de todo o mundo, que fugiram dos seus países natais em busca de algo tão elementar como um tecto e uma vida sem terror. Dificilmente um filme poderia ter um tema mais actual do que este.

Flee esteve nomeado, entre muitos outros prémios, para três Óscares: Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Documentário, e Melhor Filme de Animação. Perdeu este último para mais um filme da Disney, claro - a categoria parece atribuída à partida para qualquer filme da Disney ou da Pixar. É pena: Flee é um filme extraordinário, e mostra na perfeição como a animação pode ser utilizada para narrar histórias adultas com uma carga emocional tremenda. Ainda será possível vê-lo nas salas de cinema portuguesa, e não o poderia recomendar mais.

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A Animação é para crianças (ou não) - 0

João Campos, 21.04.22

Mais do que pelos filmes, realizadores, actores e técnicos premiados, a cerimónia dos Óscares de 2022 ficará na memória colectiva por uma bofetada em directo. Foi isto que se discutiu longamente nos dias que se seguiram, na televisão e nas redes sociais, até à exaustão.

Mas mais do que discutir a principal cena infeliz da noite, a mim interessa-me chamar a atenção para outra cena infeliz, até por ser intencional e ensaiada, e que só vi ser discutida em alguns recantos mais interessados (e interessantes) das redes sociais: a breve rábula que antecedeu a entrega do Óscar de Melhor Filme de Animação, com três actrizes que já representaram (ou, no caso de Halle Bailey, que irá ainda representar) princesas da Disney a remeter a animação para as memórias e para o entretenimento infantis. Como se, para nem ir mais longe, aquela não fosse uma das categorias para as quais o espantoso Flee, de Jonas Poher Rasmussen, estava nomeado.

É um preconceito infelizmente comum, persistente e redutor. A maioria de nós recordar-se-á dos desenhos animados da infância, naturalmente, mas reduzir a arte da animação a temas para crianças é ridículo e absurdo. Saem todos os anos imensos filmes de animação dirigidos aos mais novos, claro, mas o que não falta é filmes de animação mais complexos e ousados, que jamais seriam adequados ao público infantil. Nem por isso, porém, deixam de faltar por aí auto-proclamados cinéfilos que se afirmam incapazes de seguir um filme de animação, ignorando assim o trabalho admirável de realizadores como Brad Bird, Ari Folman ou Hayao Miyazaki - e só por ignorância ou embirração se poderá argumentar que argumentar que Miyazaki não é um dos maiores cineastas vivos.

(Enfim, os leitores - adultos - de banda desenhada sabem bem do que falo, pois a Nona Arte é vista com frequência da mesma forma. Como se houvesse algo de errado com desenhos, estáticos ou animados.)

Para demonstrar quão errados são estes preconceitos, ao longo das próximas semanas deixarei aqui no Delito várias sugestões de filmes de animação para os leitores descobrirem ou redescobrirem. Alguns dos filmes que mencionarei podem ser vistos por toda a família, possuindo elementos que podem fazer as delícias dos mais novos enquanto dão aos adultos algo em que pensar. Outros, porém, não serão de todo aconselhados a crianças - são filmes adultos, feitos por adultos e para adultos. Começarei amanhã, e continuarei nas sextas-feiras seguintes.

Diário (Pré-Eleitoral)

jpt, 27.01.22

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[Postal em registo de diário não intimista, para quem ainda me ature. Que leva uma modesta dedicatória à memória de Pierre Bourdieu, bem importante na minha formação e que morreu há 20 anos, exactamente cumpridos há 4 dias]
 
O meu ontem foi de "actividades culturais", nas quais se poderão reconhecer as minhas "disposições" (aquilo do celebrizado "habitus") mas também encontrar opções político-ideológicas, estas mais relevantes de sublinhar em período pré-eleitoral. E aqui as descreverei pois sei que tenho alguns amigos, e decerto que vários "amigos"-FB, que me consideram um pernicioso direitista, vinculado a prejudicar os compatriotas explorados ("desfavorecidos", como dizem os eunucos), os trabalhadores ("colaboradores", dizem os outros direitalhas e... tantos outros ainda que pejados de tiques linguísticos de "género"), aqueles que estão no sopé da "escadaria" social (como ilustram os reaccionários). E quero alijá-los de quaisquer dúvidas sobre essa minha malevolência que ainda os possam atormentar. 
 
À alvorada fui abastecer-me a um mercado municipal, em demanda de víveres frescos. Assim numa postura iliberal, pois aceitando a tutela estatal sobre o comércio. E até (verdadeiramente) socialista, pois eximindo-me ao verdadeiro oligopólio das "grandes superfícies" - as quais, de facto, tendem a constituir-se em monopsónios face a sectores dos produtores nacionais. Almocei um magnífico arroz de choco com a sua tinta, de confecção caseira, opção gastronómica evidenciando um conservadorismo cultural que raia o nacionalismo mais exaltado.
 
 
 

Os psicopatas americanos no Congresso

João Pedro Pimenta, 09.01.22

American Psycho, ou Psicopata Americano, é um romance, chamemos-lhe assim, escrito no início dos anos noventa por Bret Easton Ellis que retrata de forma crua, amoralmente ostensiva e exaustivamente descritiva a idade de ouro dos yuppies na segunda metade dos anos oitenta, no pré-crash de 1987. A narrativa centra-se no modo de vida de Patrick Bateman, um financeiro de Wall Street com menos de trinta anos, de início mais nas suas obsessões materiais - a casa, a decoração, os aparelhos de alta fidelidade, os produtos de beleza e de higiene, o culto do corpo, os fatos, as gravatas, os restaurantes de luxo, as drogas, as amantes e as prostitutas - e mais à frente na sua faceta (ainda) mais negra que justifica o título da obra, tudo entrecortado pelas detalhadas críticas musicais dos músicos favoritos da personagem, que surgem como curiosa Hybris normalmente em situações inesperadas.  

O livro, já de si um sucesso comercial e de crítica, foi adaptado ao grande ecrã em 2000, com Christian Bale a compor um impressivo Bateman num desempenho que projectou a sua carreira. Como já se percebeu, o protagonista espelha uma ganância e uma obsessão materialista tais (de que é exemplo o seu acesso de fúria só porque os correligionários têm cartões de apresentação mais caros e polidos que os dele, o que terá consequências funestas) que é capaz de transformar Gordon Gekko, outra personagem fictícia deste peculiar mundo dos yuppies, num voluntário caridoso. É claro que nem todas as partes das descrições torrenciais de Ellis puderam ser transpostas para o filme, mas o essencial manteve-se.

Uma das alusões na obra a figuras reais, mais presente no livro que na película, é o culto do peculiar universo que rodeia Bateman pelos bilionários ostensivos, em geral, mas com uma especial admiração: Donald Trump. Sim, Trump e as festas que ele dá, os locais que frequenta e os seus carros. Trump é o modelo, a bússola e farol, aquilo que esta mole de gente endinheirada, entediada e amoral pretende ser.

Recordei-me de novo do livro/filme e das suas alusões a propósito do primeiro aniversário da invasão do Capitólio por aquela horda estranhíssima e alucinada, que deixou como resultado cinco mortos e uma imagem de ultraje e vergonha à democracia americana, mais própria de um país do interior de África. Tinham vindo de vários pontos dos Estados Unidos, numa das alturas mais gélidas do ano, para ouvir o discurso de Trump em frente ao congresso. Um discurso aliás de acusação e de incitamento directo contra a câmara legislativa, na senda da não aceitação do resultado das eleições de dois meses antes e das alusões a supostas fraudes. As palavras eram demasiado explícitas para que não se possa ligá-las ao que sucedeu a seguir. Aliás, até parecia que alguns adoradores trumpistas, mesmo deste lado do Atlântico, já o estavam a pressentir, referindo-se a "demonstrações do triunfo do "America First" que iriam surgir em Washington. Até tinham razão, como se viu.

Trump flutua entre um instinto político eficaz e uma mitomania que se torna pública muitas vezes. Era sem dúvida este último sentimento que o dominava naquele dia. Provavelmente, no embalo daquele discurso a meio caminho entre um ditador sul-americano e o general Custer lançando ordens contra os índios, não previu que as consequências pudessem ser tão funestas. Mas foram (por pouco não o foram para o próprio Mike Pence) e são indissociáveis do seu discurso de raiva que levou aquela mole desvairada habituada a "informar-se" no Qanon a cometer um acto tão grotesco.


O contraste entre esta gente e a retratada em American Psycho é gritante, a começar pela forma de trajar e a acabar na capacidade económica. As respectivas mundividências também são abissalmente diferentes. O que as une é a admiração e a confiança quase ilimitada em Trump, embora por razões diversas. Mas é bem mais compreensível vinda dos segundos, já que Trump é ele próprio um símbolo do materialismo (e de muito exibicionismo, como se observa na sua Trump Tower e no seu avião, por exemplo) e da ganância de um lado mais perverso do "sonho americano", além de ser nova-iorquino e de ter vivido quase sempre na Big Apple. Já da parte dos invasores do Capitólio é bem menos lógico, pois falamos de gente mais proveniente do Midwest e do Deep South, menos cosmopolita e mais susceptível a propaganda e com muito menos poder económico. Trump e a fauna de Wall Street estão a anos-luz desta massa de proletários sem rumo, em muitos casos desprezando-os até, e são o oposto aos princípio cristãos (com uma interpretação muito própria do cristianismo, é certo, muito WASP) e aos modelos de família por eles defendidos.

Em suma, Patrick Bateman admira Trump não só pelas suas posses mas sobretudo por não olhar a meios para atingir os seus fins e por possuir um ego do tamanho do mundo - pela fortuna, antes de mais, e depois pelo poder político - o que o faz sentir-se quase uma divindade omnipotente perante os outros seres que o rodeiam. Combina o dinheiro, o poder e o sexo, a avaliar pelas suas bravatas. Aquela frase de que "podia dar um tiro a alguém na Quinta Avenida que não perdia um voto" seria certamente do agrado de Bateman e poderia perfeitamente ser dita por ele. Ao criar a personagem, Ellis pôs muito de Trump nela, embora não pudesse prever que uma tal levaria à invasão do Capitólio. Com a diferença de que Patrick sabe certamente muito mais de música popular contemporânea do que Donald.

Poitier e Bogdanovich: olhar e ver

Pedro Correia, 08.01.22

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                    Sidney Poitier (1927-2022)                                     Peter Bogdanovich (1939-2022)

 

Morreram dois gigantes do cinema. Um actor (também cineasta) e um realizador (também intérprete) que sempre considerei "muito cá de casa", para pedir emprestada uma expressão que João Bénard da Costa imortalizou nos seus magníficos ensaios sobre a Sétima Arte.

 

Sidney Poitier, falecido anteontem aos 94 anos, foi pioneiro ao quebrar as barreiras raciais numa América ainda segregada. Primeiro actor negro a receber o Óscar para melhor intérprete masculino em Hollywood - por Lírios do Campo, em 1963. Só 40 anos depois houve outro a conseguir o mesmo: Denzel Washington, galardoado pela sua actuação em Dia de Treino

Vi Poitier em vários filmes icónicos. Incluindo Sementes de Violência (Richard Brooks, 1955), ainda no início de uma carreira que se prolongou por meio século, No Calor da Noite (Norman Jewison, 1967) e Adivinha Quem Vem Jantar (Stanley Kramer, 1967), neste contracenando com dois nomes quase lendários da tela: Katharine Hepburn e Spencer Tracy. Sempre com a sua figura austera e elegante, exibindo serenidade.

 

Peter Bogdanovich, que morreu também quinta-feira, aos 82 anos, chegou a ser um dos meus realizadores favoritos. Por filmes como A Última Sessão (1971) e Lua de Papel (1973). Pertencia à geração de George Lucas, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, que sacudiu a poeira acumulada nos velhos estúdios da Califórnia, refrescando e revitalizando o cinema. Logo no seu filme de estreia, Alvos (1968), infelizmente pouco visto nos dias que correm.

Devo-lhe muito não apenas como espectador mas também como leitor. Porque alguns dos melhores textos sobre a Sétima Arte que conheço são dele, reunidos num excelente livro intitulado Pieces of Time, entre nós publicado na década de 80 sob o título Nacos de Tempo, reunindo crónicas e ensaios inseridos originalmente na revista EsquireÉ uma das obras que mais vezes reli. 

 

Nestes tempos destituídos de memória, cheios de celebridades instantâneas que se sucedem à cadência das estações do ano, muita gente não faz a menor ideia quem foram Poitier e Bogdanovich. Ainda em vida, já tinham sido arrumados no sótão das antiguidades. E os filmes a que estão associados tornaram-se em larga medida invisíveis por expiarem um pecado contemporâneo: pertencem a um século que já passou. Não são blockbusters, não induzem ao consumo de pipocas.

Bogdanovich, sobretudo, ensinou-me a diferença entre olhar e ver quando se trata de cinema. Ao recordar, naquela colectânea, cenas dos seus filmes favoritos - que também se tornaram meus.

Por exemplo, em Rio Bravo (Howard Hawks, 1959). John Wayne desce as escadas do gabinete do xerife e dirige-se a uns homens que o procuram. O actor é filmado de trás naquele seu característico jeito de andar, lento e oscilante, enquanto a imagem se suspende por instantes para melhor nos envolver no que ali se passa. Quase sem percebermos, tornamo-nos cúmplices de Wayne, «figura familiar, clássica - inconfundível seja qual for o ângulo - que se move num mundo de ilusão que conquistou em absoluto».

 

É isto o cinema, tão sério como a vida. Por ser indissociável dela.

 

Regressar a "The Matrix"

João Campos, 21.12.21

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The Matrix , o filme original de 1999, é o meu Star Wars ou Star Trek.

Só já em adulto tive a oportunidade de ver a trilogia original de George Lucas, pelo que o encanto que alguns dos meus amigos também aficionados da ficção científica mantêm pelas aventuras do clã Skywalker acabou por me passar um pouco ao lado; como costumo dizer, as únicas memórias de infância que tenho de Star Wars são não dos filmes mas dos anúncios televisivos de brinquedos que passavam na época do Natal. Já de Star Trek nada vi (excepto os filmes mais recentes, que são esquecíveis e irrelevantes); conheço as referências mais evidentes, as personagens mais famosas, o formato da Enterprise, e pouco mais. Crescer nas décadas de 80 e 90 no interior do país sem vídeo, sem televisão por satélite, e sem acesso a cinemas fez com que praticamente todos os filmes que vi até aos 15 anos tenham passado num dos quatro canais generalistas (salvo uma mão-cheia de sessões de cinema ambulante dos anos 90), sem a conveniência das gravações automáticas e das boxes. Os primeiros filmes de ficção científica de que me lembro - os Back to the Future, o Alien e o Aliens, o Terminator 2 - foram por isso apanhados na programação, e não me lembro da primeira que os vi.

Mas lembro-me da primeira vez que vi The Matrix. Mais ou menos.

Na verdade, não tenho a certeza de a minha lembrança da primeira vez que vi The Matrix seja inteiramente verdadeira, o que não deixa de ser irónico dado o tema do filme. A memória é esta: estava no nono ano, algures entre o final de 1999 e o primeiro semestre de 2000, e o professor de Matemática levou a turma para a sala de vídeo, puxou o carrinho com a televisão e o vídeo, e introduziu no vídeo uma cassete pirata. Disse-nos algo como: vocês aqui nunca podem ver cinema, e este filme é demasiado importante para vocês não verem. Pôs o filme a passar e apagou as luzes. Naquele pequeno ecrã - era o que se arranjava na altura - vi uma cena inicial com uns efeitos verdes curiosos, seguida de uma cena típica de polícias de rua a discutir jurisdição com os agentes engravatados de um FBI ou outra agência do género. "No, lieutenant, your men are already dead", diz o agente. A cena passa para o interior do prédio aparentemente devoluto onde um grupo de polícias cerca uma hacker vestida de cabedal preto e se prepara para a prender - quando ela ataca o polícia mais próximo, salta, a imagem pára com ela em pleno ar, a câmara gira em redor da sala, e com um pontapé certeiro a hacker projecta o polícia mais próximo contra a parede do outro lado da sala, antes de caminhar pela parede, neutralizar todos os outros, e se colocar em fuga.

Não tenho ninguém que me possa confirmar esta memória. Afinal, qual dos meus antigos colegas do 9.ºE do ano lectivo 1999-2000 se lembrará daquela sessão de cinema? Para a maioria, terá sido apenas mais um filme, um bom pretexto para não passarmos duas horas às voltas com a fórmula resolvente ou cálculos de trigonometria. Mas quaisquer que sejam os detalhes, lembro-me perfeitamente de ter ficado com aquela primeira imagem de bullet time gravada na retina. Ali estava algo que nunca tinha visto, e que alguma vez teria imaginado. E a melhor parte é que dali para a frente o filme só melhorou, tanto nos efeitos especiais como na trama.  

Quando já tinha uma Playstation 2, a minha irmã ofereceu-me o DVD de The Matrix, que vi vezes incontáveis. Longas foram as conversas sobre o filme que mantive durante os anos do Secundário com o Nuno, grande amigo ainda hoje, e com o nosso professor de Filosofia e de Psicologia, o Jorge. Quando The Matrix Reloaded estreou em 2003, consegui convencer os meus pais a irem ao centro comercial da Guia - eles foram fazer as compras do mês, e eu e o Nuno fomos ver o filme. Não falámos de outra coisa no regresso, claro, e mais conversa houve após as aulas de Psicologia nas semanas que se seguiram (lembro-me de o professor não ter apreciado alguns elementos do filme, a contrastar com o entusiasmo dos dois alunos). O lançamento de Reloaded foi acompanhado por um videojogo para a PS2, Enter the Matrix, que comprei e joguei de fio a pavio (a trama acompanha Niobe, a personagem de Jada Pinkett-Smith), e por um DVD com nove curtas de animação japonesa, Animatrix, que comprei assim que pude, e que vi e revi vezes sem conta -  a última vez foi há um par de meses, e continuam impressionantes ao fim de dezoito anos. Não joguei The Matrix Online e The Path of Neo pois o tempo não dava para tudo. Quando The Matrix Revolutions estreou já estava em Lisboa, e lembro-me de sair da universidade com uma colega, também fã, e de irmos a correr para o Colombo para tentar apanhar lugar na primeira sessão da estreia mundial; chegámos esbaforidos, conseguimos dois bilhetes em lugares distantes, mas isso pouco importava. Vibrámos com a Batalha de Zion, acompanhámos a última aventura do Neo, ficámos imenso tempo cá fora, maravilhados, a falar sobre o filme que tínhamos acabado de ver.

Sim, Reloaded e Revolutions são inferiores ao original. Ao contrário de The Matrix, que envelhece como um bom vinho, a componente visual das sequelas não sobreviveu bem à passagem do tempo. Em Reloaded, o combate no castelo de Merovingian continua belíssimamente coreografada, e famosa perseguição na autoestrada de Reloaded continua electrizante até ao momento final, onde se notam todas as costuras da explosão e do resgate de Morpheus e do Keymaker; em Revolutions, se a batalha de Zion continua imponente, já o combate entre Neo e Smith no final parece saída de um videojogo bem datado. Dito isto, sempre tive um fraquinho por ambos, talvez por todo aquele universo ficcional sempre me ter maravilhado pelas possibilidades infinitas que encerra; e a trama de ReloadedRevolutions, sempre tão vilipendiada, continua a fascinar-me por aquilo que mostra, por aquilo a que alude, e por todas as ideias que deixa nas entrelinhas. Talvez as Wachowskis tenham pecado por terem deixado demasiadas pontas soltas (a Persephone de Monica Bellucci, por exemplo), muitas pistas em infodumps palavrosos, e poucas resoluções concretas; por outro lado, à época isso permitiu que teorias e interpretações florescessem em message boards com discussões animadas: lembro-me de acompanhar alguns, que me fizeram pensar em aspectos distintos dos filmes, contribuindo para que formulasse a minha própria impressão de toda a história (de forma muito resumida: Zion será também um simulacro).

Dentro de um par de dias terei talvez a oportunidade de confirmar isto, ou de me embrenhar um pouco mais pela toca do coelho, com o regresso de The Matrix ao grande ecrã. The Matrix Resurrections é o título do novo filme, desta vez realizado apenas por Lana Wachowski, e com Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss num regresso improvável, considerando o desfecho de Revolutions. Mantenho há muito tempo que poucos universos ficcionais poderiam ter a capacidade de The Matrix para se reinventar nesta época de eternos remakes e sequelas ilimitadas; afinal, a premissa inclui várias versões da matriz e múltiplas reencarnações (versões?) dos seus conceitos fundamentais. Esperava que mais cedo ou mais tarde houvesse mais um filme, mais por insistência da Warner Brothers do que pela vontade das Wachowskis - a trilogia original gerou demasiado dinheiro e foi demasiado icónica para ficar perdida entre 1999 e 2003. Não esperava o regresso de Neo e Trinity, e estou muito curioso para ver como Lana Wachowski vai pegar na trama que concluiu há dezoito anos. As expectativas, essas, são moderadas - creio que a componente visual será forte, a avaliar pelos trabalhos mais recentes da realizadora (o excelente Cloud Atlas, o derivativo Jupiter Ascending, e a brilhante Sense8 para a Netflix) - mas tenho dúvidas de que este regresso se consiga aproximar da fasquia elevadíssima do filme original e das curtas de Animatrix

O que pouco importa, na verdade. Tal como em 2003, mal posso esperar para regressar à sala de cinema e ver uma nova entrada deste universo ficcional que tanto me diz (sobretudo num ano com este, em que tão poucas vezes pude ver filmes no grande ecrã). Como disse no início do texto, The Matrix é o meu Star Wars: foi o filme que me ficou sempre na memória, que aos catorze ou quinze anos me impressionou como nenhum outro desde a famosa sessão de cinema ambulante na Casa do Povo da aldeia, quando o Sr. António Feliciano (o mais conhecido projeccionista ambulante do país) levou lá o Jurassic Park pouco depois da estreia. Com uma diferença crucial: se o clássico do Spielberg me mostrou algo de que eu já gostava (dinossauros), já o filme de culto das Wachowskis abriu-me os horizontes de forma inesperada. Graças a The Matrix passei a ver com outros olhos o cinema em geral e a ficção científica em particular. As inúmeras conversas durante o Secundário, a par do meu interesse nascente pela escrita, levaram o meu professor a emprestar-me um livro de ficção científica, e desde aí nunca mais parei de ler o género. Olho agora para trás, metaforica e literalmente, e vejo uma estante com centenas de livros, muitos lidos, e muitos ainda a aguardar leitura; recordo os inúmeros filmes que vi, e que continuo a ver sempre que posso; penso em todos os amigos que fiz ao longo dos anos devido ao gosto partilhado pela ficção científica, em convenções, tertúlias, jantares e blogues. E tudo isso tem na sua origem aquele momento difuso em que o tempo parou, dentro e fora do ecrã da televisão, para a câmara rodar em torno de Trinity.

The Vast of Night

João Campos, 12.12.21

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Vi ontem à noite The Vast of Night, um belíssimo filme independente de ficção científica retro, hoje disponível numa plataforma de streaming. Realizado em 2019 por Andrew Patterson, com um orçamento de $700 000,00, serve não só para nos cativar durante 90 minutos assombrosos, como também para ilustrar dois pontos esquecidos com frequência nestes tempos. O primeiro: a ficção científica é, antes de mais, a ficção das ideias. E o segundo, em jeito de corolário do primeiro: para se fazer um bom filme de ficção científica não é necessário um orçamento multi-milionário dedicado e imensa pirotecnia visual; na verdade, basta uma boa ideia (que nem tem de ser original, podendo apenas ser explorada de um ponto de vista novo) bem trabalhada, com um guião bem escrito, um par de actores talentosos e bem dirigidos, e uma realização tão segura como ousada.

A ideia é simples, e já a vimos em inúmeros contos, filmes (Close Encounters virá logo à memória), e mitos populares (Roswell, claro): nos anos 50, numa localidade remota dos Estados Unidos, Fay, uma jovem operadora de switchboard, detecta acidentalmente uma transmissão ininteligível de origem desconhecida, que se sobrepõe às comunicações e transmissões locais. Intrigada, contacta Everett (Jake Horowitz), o radialista local, para tentar perceber o que está a captar. É certo que não é preciso um conhecimento vasto de ficção científica para se perceber, logo nos primeiros momentos, onde a trama irá dar, mas os desempenhos espantosos de Sierra McCornick e de Jake Horowitz (com a química evidente entre ambos; há tanto subtexto que se pode ler em cenas sem qualquer diálogo), sobretudo nos planos longos e contínuos que Patterson filma com surpreendente mestria, são suficientes para agarrar. Sim, suspeitamos desde cedo como a história vai acabar, mas queremos ver como Fay e Everett lá chegam.

O que não tem faltado nos últimos anos é filmes de ficção científica insípidos, apesar dos seus orçamentos de sete, oito e nove dígitos. Mesmo em Portugal, onde a ficção científica raramente aparece no grande ecrã (assim de repente vêm-me dois péssimos exemplos à memória da última década). Para quem quiser aprender como se faz, The Vast of Night tem sem dúvida muito para ensinar.

Jean-Paul Belmondo (1933-2021)

João Sousa, 08.09.21

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Abafada pelo burburinho noticioso, passou-me despercebida a morte, na segunda-feira, de Jean-Paul Belmondo, um ícone cool francês. Foi pugilista amador; quis ser palhaço; viveu com Ursula Andress (que nunca o esqueceu); foi um dos rostos da Nouvelle Vague; representou para vários dos grandes realizadores do cinema europeu; e mostrou-se tão confortável nos palcos de teatro como aos saltos e piruetas num carro.

Viveu uma vida bem vivida.

Qual a cor da alma?

Paulo Sousa, 03.01.21

Invadido pelo espírito da quadra festiva, que entretanto terminamos, e enquanto apreciador do género musical em causa, vi logo após o seu lançamento, o filme Soul, da Disney/Pixar.

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A história não é muito surpreendente mas é agradável. Alguns dos momentos musicais ajudam a digerir o resto. Foram duas horas bem passadas.

Quando já não pensava mais nele, tropecei algures num espasmo muscular do Nuno Markl sobre a dobragem da personagem principal. Andou para ali às voltas com elogios e salamaleques misturados com um reparo sobre o que designa como “racismo sistémico”. Parece que para ele as vozes também têm cor e, com o intuito de que somos todos iguais, acabou por defender que as vozes africanas são diferentes das demais. É bom ser-se diferente. É bom que todos sejamos diferentes nos detalhes, porque acabamos por ser iguais nas questões de fundo. Mas isso não importa, ele acha é que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Por mim tudo bem, embora prefira cultivar as minhas dúvidas, pois nunca pensei aprender tanto como desde que escolhi fazê-lo.

Talvez não importe referir, mas eu gosto do trabalho do Nuno Markl. Dizer isto não me obriga a apreciar tudo o que faz, ou diz. Gosto da sua abordagem e do boneco que criou sobre si próprio e da forma como explora o que poderiam ser fraquezas e as transforma em produto de media. É legitimo e tem graça.

Desta vez achei que ele estava a meter a foice em seara alheia, mas com certeza que o tema iria causar as inconsequentes e habituais ondas de choque. A espuma dos dias tem de ser preenchida com coisas.

A toque de caixa parece que já há quem tenha reagido ao estímulo lançado. Se há quem defenda que o fim do mundo irá começar com uma corrente de ar, como é que isto não teria de acontecer?

Mamadou Ba e Sara Tavares assinam petição em que pedem uma nova versão do filme Soul. Defendem que somos todos iguais e por isso as vozes da dobragem deveriam ser negras.

Eu, que gosto de Soul, de Blues, de Jazz, de Samba, de Bossa Nova e de Rock, não consigo deixar de me impressionar com a capacidade da raça humana em ultrapassar profundas e inaceitáveis tragédias e, mesmo no inferno, conseguir produzir arte. Sem a influência africana na cultura norte e sul-americana não teríamos todas estas maravilhosas manifestações artísticas, que me emocionam e sem as quais teríamos uma vida ainda mais incompleta.

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Hoje de manhã, num passeio de bicicleta com uns amigos na Serra de Aire e Candeeiros, a “polémica” da dobragem deste filme foi abordada durante uns escassos 75 metros. A meio de uma curta e enlameada subida, alguém em esforço de respiração arrumou o assunto. “Sabias que quem dobrou o Rei Leão nem sequer era sportinguista? Disso ninguém fala!”

Lamento por um título arruinado

Paulo Sousa, 29.11.20

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Ontem vi o filme “Hillbilly ElegyGosto de histórias baseadas em factos verídicos. Na ficção existem limitações de razoabilidade de que a realidade se deve rir à gargalhada.

Esta é uma história pessoal e familiar, que se tivesse sido inventada pouco passaria de um chorrilho de clichés. Baseia-se num Best Seller com o mesmo nome, escrito por J.D.Vance.

Uma gravidez involuntária nos anos 50 leva um jovem casal a fugir do Kentuky e a estabelecer-se no Ohio. Além da história familiar, o filme mostra-nos também as grandes mudanças ocorridas desde então no midwest, com destaque para a desindustrialização, para a falta de oportunidades da classe média, para a facilidade no acesso a drogas e no fundo para a degradação social.

Olhando à imensidão de informação que foi divulgada nos últimos meses por ocasião das eleições americanas, esta é a América que, por estar descontente com a evolução das suas perspectivas de vida, vota Trump. Salta à vista que ali se comunica com o jargão a que Trump nos habituou. Quando as elites liberais e bem sucedidas dos grandes centros urbanos ficam corados com a rudeza com que o ainda POTUS se dirige aos seus cidadãos, não fez ideia de que é assim que se fala nas zonas rurais. É assim que os rednecks se manifestam e é assim que funcionam. Mal comparado, podemos imaginar o choque de um lisboeta com pedigree quando pára num café duma terriola na cintura urbana do Porto e troca dois dedos de conversa com um local. Eu adoro as nossas diferenças, as nossas pronúncias e a liberdade como moldamos a língua à forma como pensamos e somos, mas no filme, os recorrentes palavrões dentro das conversas familiares surgem como um sinal da degradação moral.

Histórias como esta, algumas com final bem mais triste, desenrolam-se perto da nossa casa, à volta das grandes cidades no nosso país e por todo o mundo.

Apesar do difícil percurso de J.D.Vance, dos momentos traumáticos que a sua instável mãe lhe proporcionou, e assente na sua relação com a irmã e sobretudo com a avó, esta é uma história de superação e até inspiradora para jovens à procura de uma fasquia a que possam ambicionar.

A tradução literal do título desta obra poderia ser qualquer coisa como “Elegia campónia” ou “Elegia provinciana” ou até “Elegia matarruana”. No Brasil, que tem uma tradição bem cómica na tradução de títulos de filmes, este filme chama-se “Era uma vez um sonho”. Em Portugal, alguém que quis sublinhar a sua visão pessoal, poupando-nos assim o esforço de uma análise, achou que a história de um miúdo que cresceu fora das elites, num ambiente terrível, e ainda assim (spoiler alert) consegue formar-se em Yale, deveria ser “Lamento de uma América em ruínas”, o que retrata melhor o tradutor, que o filme.

Uma época para pôr filmes em dia

João Pedro Pimenta, 24.11.20

Este fim de semana, graças ao "recolher obrigatório", consegui cumprir uma proeza há já muito desejada: ver o Lawrence da Arábia até ao fim. Um filme de quase quatro horas, com uma espectacular fotografia, daqueles que se vêem melhor no grande ecrã, coisa que implicaria também aí uns três intervalos no cinema (hoje já raramente há um).

Já não vou a uma sala de cinema desde Fevereiro, mas acho que nunca vi tantos filmes como este ano. Vida mais caseira oblige. De obras clássicas como a citada, ou o "Dr Jivago", também realizado por David Lean, ou ainda "A Janela Indiscreta", "Blade Runner" e "Os Três Dias do Condor", até ao "The Hangover" - parte 3, "Dumb and Dumber", ou às últimas Missões Impossíveis, passando por algum cinema português de décadas passadas, como a exibição dos filmes de José Fonseca e Costa que a RTP tem vindo a fazer, e "clássicos modernos" que me faltavam, ("Forest Gump", Signs", "A Noiva Cadáver", etc), tenho visto de tudo e ainda me faltarão algumas fitas que queria ver este ano. A TV por cabo, a possibilidade de gravação, a Netflix e os DVDs é que têm permitido esta saciedade cinematográfica sem sair do sofá.
 
Com esta bagagem variada, daqui a uns tempos ainda me dá para fazer crítica de cinema. Tendo em conta que a maior parte dos críticos parecem estar sempre a escrever uns para os outros, com um vocabulário muito deles, tratando os filmes como se fossem ensaios filosóficos e não narrativas, e aquele mau hábito de descrever o desfecho ("e na última cena do filme, quando, antes de morrer..."), acho sinceramente que não faria pior figura.