Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Reconhecimento

Sérgio de Almeida Correia, 27.04.22

22287105_ePeOg.jpeg

(Salgueiro Maia, imortalizado pelo génio de Alfredo Cunha)

 

Passa hoje mais um aniversário sobre o golpe militar de 25 de Abril de 1974. Data única da nossa história recente, constitui um marco na restituição da liberdade, da democracia e de direitos básicos de cidadania a todos os portugueses e a outros povos subjugados.

Em relação a Macau, o 25 de Abril também permitiu o seu regresso pacífico à administração chinesa, contribuindo para o estupendo desenvolvimento das últimas quatro décadas e o reforço da cooperação e das relações diplomáticas entre Portugal e a China. 

O ano passado, na primeira cerimónia de Dez de Junho a que esteve presente, no Consulado-Geral de Portugal em Macau, o Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, agradeceu o profundo empenho dos portugueses e macaenses e o seu contributo, "excepcional", para a multiculturalidade e o desenvolvimento de Macau, e a sua boa cooperação e forte empenho para o combate à pandemia. Outros responsáveis, de Macau e da China, não se cansam de repetir esta lengalenga que a todos sensibiliza em todos os actos oficiais que se prestem a isso.

Todavia, na prática, esse reconhecimento do papel dos portugueses não existe ou é letra morta. Os portugueses vêem a sua língua com um estatuto cada vez mais menorizado nas relações com os tribunais e a administração pública. E mesmo os residentes acabam por ser penalizados por um estatuto de igualdade aparente que diariamente lhes torna a vida mais onerosa.

O caso das limitações de deslocação impostas pela pandemia são disso boa prova. As regras são diferentes para os residentes que vão à China, a Hong Kong ou a Portugal, apesar do número de casos neste último país ser reduzido,  o de vacinados ser dos mais elevados a nível mundial e da situação epidémica em algumas regiões chinesas ser muito grave.

Por estes dias, quando as quarentenas foram reduzidas de 21 para 14 dias, os portugueses residentes também ficaram a saber que para o Governo da RAEM é indiferente vir do Bangladesh, da Venezuela, da Tanzânia ou de Portugal. Os residentes que regressem de Portugal, ainda que com três doses de vacinas de boa qualidade, reconhecidas na China e internacionalmente, e com certificados negativos, continuam a ser obrigados a períodos de quarentena que em nada os distingue, nem ao país de onde vêm, daqueles outros que têm um registo de casos diários elevadíssimo, taxas de vacinação sofríveis e milhares de internados em situação grave.

Como se tal não bastasse, ontem foram brindados com a novidade de que passarão a pagar os testes obrigatórios de ácido nucleico que terão de realizar durante a quarentena, e que o número e valor dos testes (oito e MOP2.000,00) será superior aos impostos aos residentes que venham de "zonas de risco do interior da China" (cinco e MOP1.250,00).

Para quem há mais de dois anos tem cumprido religiosamente os pedidos do Governo da RAEM, e que durante todo este período não saiu de Macau, não beneficiando de qualquer quarentena ou de testes gratuitos por motivo de deslocação ao estrangeiro,  e se preparava para aproveitar a recente redução da quarentena para 14 dias para finalmente poder visitar os seus familiares e os velhos e doentes, gozar uns dias de férias e ir a médicos no exterior, a suas expensas, este é mais um brinde do Governo da RAEM e uma prova da sua satisfação pelo contributo "excepcional" dos portugueses ao desenvolvimento de Macau. 

Não era bastante ter colocado os residentes a viverem numa espécie de colónia penal e não haver hotéis em quantidade, com número suficiente de quartos disponíveis, mesmo que fossem pagos, e com qualidade mínima para se cumprirem as quarentenas. Era fundamental penalizar nesta altura, ainda mais, os residentes portugueses que estavam a pensar sair este Verão, criando-lhes um encargo adicional, embora muitos nunca tivessem usufruído anteriormente de qualquer quarentena à custa da RAEM ou de testes gratuitos durante esse período. Vai tudo a eito. Os que cumprem, os que não quiseram cumprir, os que contribuem mais, os que contribuem menos, e também os que não contribuem para nada.

Aqui está mais uma forma original que o Governo da RAEM encontrou para agradecer o papel dos portugueses residentes em Macau, motivá-los para o futuro, e de se associar à celebração de mais um aniversário do 25 de Abril de 1974.

Palavras leva-as o vento. Nalguns locais mais depressa do que noutros. Todos os dias e a toda a hora.

 

[via Visto de Macau]

Liberdade

Zélia Parreira, 25.04.22

Que elas existiam no antigo regime, já sabemos. Que elas tiveram um papel preponderante na formação de um espírito crítico, do inconformismo, do saber que existe algo mais para além do muro e que esse algo mais é a liberdade, não tenho dúvidas.

As Bibliotecas.

Instrumento privilegiado, lugar máximo de democracia e de liberdade.

Só nelas todos cabem, sem distinção. Só nelas todos se sentem acolhidos. Só nelas todos encontram o caminho para a superação, para romper ciclos de pobreza económica e social, progredindo ao seu ritmo, de acordo com os seus interesses. Só nelas encontram lazer, informação, conhecimento e cultura, sem ter que pagar por isso. Só nelas, em igualdade de direitos e deveres. Só elas, espalhadas de forma homogénea e coerente por todo o território, têm a capacidade de estar próximas dos cidadãos, disponíveis, numa linguagem de vizinhança, numa relação de confiança.

As bibliotecas que hoje conhecemos são também uma conquista de Abril. Filhas de outras que, tal como os nossos pais, fizeram um longo caminho em surdina, sem perder a esperança, contribuindo a cada dia, em cada pequeno gesto, a cada livro emprestado e lido, para iluminar modestamente a escuridão. As bibliotecas que hoje conhecemos são, por isso, das instituições mais desprezadas e desrespeitadas por aqueles que ontem à noite e hoje colocam a mão no peito ao lado do cravo, em cerimónias solenes, para celebrar Abril. As palavras e os discursos deste dia 25 não correspondem aos actos de quem desinveste, desacredita, menoriza ou fecha bibliotecas com indiferença.

No longo caminho destas casas de liberdade e democracia, este é apenas mais um dia, porque este é o dia em que todos falam do que fazemos sempre, todos os dias: Liberdade.

Sempre 25 de Abril. Vivam as Bibliotecas!

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 25.04.22

Comemora-se hoje o 25 de Abril,  em Portugal

O Dia da Liberdade

22284348_yE2Ca.jpeg

"Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974, na parada da Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém, que Salgueiro Maia proferiu o célebre discurso:

“Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!”

Todos os 240 homens que ouviram estas palavras, ditas de forma serena mas firme, tão característica de Salgueiro Maia, formaram de imediato à sua frente.

Depois seguiram para Lisboa e marcharam sobre a ditadura."

 

Para mim Salgueiro Maia foi e será sempre o herói da liberdade. 

Foram muitos os estrategas, todos com tudo a perder. Foram muitas horas de ansiedade. A luta desigual superou-se e a vontade triunfou.

 

A Liberdade sente-se no ar.

Viva a Liberdade!

Viva a Democracia!

Viva Portugal!

 

Comemora-se também a 25 de Abril O Dia Internacional da Conscencialização sobre a Alienação Parental

22284354_DZhBa.jpeg

"Este dia tem como objectivo alertar para o fenómeno da Alienação Parental que foi pela primeira vez identificado em 1985 pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner, identificando comportamentos por parte de um pai / uma mãe que manipulam os filhos com a intenção de predispô-los contra o outro progenitor e a sua família (como os avós), cada vez mais frequente depois de um divórcio ou separação e mesmo em famílias não separadas."

Infelizmente é um procedimento cada vez mais em voga. Casais separados ou em vias de separação influenciam os filhos para denegrir o outro progenitor, com o propósito principal de  obter a guarda dos menores em questão ou por rancor ou despeito.

É uma forma de agir destrutiva e criminosa que deixa sequelas permanentes nas crianças. A principal é o sentimento de culpa, que pode minar qualquer existência.

 

(Fotos do Google)

25 de Abril!!!

jpt, 25.04.22

["E Depois do Adeus", Festival da Eurovisão 1974]

É, no género, uma bela canção e muito bem interpretada, esta "E depois do adeus", sempre lembrada por ter servido como senha para o golpe corporativo militar de 25 de Abril de 1974 - provocado pelos heróicos movimentos de libertação nas colónias africanas portuguesas e tornado, à revelia do oficialato castrense, numa revolução pelo povo de Lisboa (sobre a matéria ver Cunhal 1975 [1967]).
 
É também um bom símbolo da democracia, da autoria do socialista José Niza (lírica), de José Calvário (música) e Paulo Carvalho (intérprete), estes dois últimos logo autores do hino do PPD (depois PPD/PSD), do qual o primeiro foi militante.
 
Esta é a história deste símbolo - não a propagandeada pelos ainda hoje miseráveis enverhoxistas, guevaristas ou brejnevistas. E otelistas...
 
Bibliografia:
 
Álvaro Cunhal, 1975 (1967), As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média. Lisboa, Estampa, pp. 33-95.

Hora do Almoço

jpt, 23.03.22

25 abril.jpg

(Fotografia de Pedro Rocha/Global Imagens)

Iniciam-se hoje as (longas) celebrações do cinquentenário do 25 de Abril. A razão deste começo é simbólica, advinda do calendário, pois a vigência do regime democrático ultrapassa agora o número de dias decorridos entre a revolução de 28 de  Maio e o final do Estado Novo. Ou seja, a "longa noite do fascismo" foi suplantada pela "longa alvorada" da democracia.

Para a sedimentação desta não estará tudo cumprido. Não só porque essa incompletude, e imperfeição, é sua condição inultrapassável e desejável. Mas também nas concepções vigentes nos poderes políticos. E para esse défice democrático bastará atentar no facto de que Adão e Silva, o comissário desta longas comemorações, considera irrelevante a data de 25 de Novembro de 1975, o marco que erradicou o horizonte da ditadura comunista. E também porque - e de forma mais significante - ao que consta na imprensa, será hoje mesmo apresentado o novo governo no qual constará - no poderoso posto de ministro das Finanças - um antigo presidente da Câmara que durante anos delatava a regimes antidemocráticos estrangeiros os nomes e moradas dos seus oposicionistas, nacionais ou estrangeiros, residentes no nosso país. De facto, esta coincidência, a do início das celebrações de Abril e da indicação de Medina como estreante no governo - ainda para mais quando o regime de Putin agride a Ucrânia, prende em massa os seus oposicionistas e ameaça com a utilização de bombas nucleares -, é uma horrível e tristíssima ironia, bem demonstrando como é a elite vigente no Partido Socialista.

Ainda assim, este marco de calendário apela a que se pense o futuro. Se - como acima referi - a "longa noite do fascismo" é agora ultrapassada em comprimento pela "longa alvorada da democracia", então já estamos na hora do almoço. Ou seja, findou a legitimidade daqueles que a reclamam no que fizeram - ou os seus ancestrais políticos - aquando da tal "noite" e da posterior "alvorada". Chega disso, dessas prosápias. Vamos almoçar.

Fascinação por Portugal

Cristina Torrão, 25.07.21

Nos meus primeiros anos, na Alemanha, dei aulas de português a alemães. Não havia muitos a quererem aprender a nossa língua (nada que se comparasse com o castelhano, que chegava a superar o próprio inglês), mas a maior parte dos interessados possuía uma verdadeira fascinação por Portugal, que aliás passava muito pelo cliché de que a vida nos países do Sul era mais despreocupada, sempre com bom tempo, etc. Quando eu dizia que em Portugal se rapava muito frio, no Inverno, olhavam-me como se eu tivesse dito que vinha de Marte.

Muitos me perguntavam que estava eu a fazer na Alemanha, sendo natural de um país tão maravilhoso. Eu alegava haver ali melhores condições económicas, além de mais conforto no Inverno, ao que os alemães replicavam o dinheiro e as comodidades não serem tudo na vida. E eu pensava que só se podia dar ao luxo de julgar assim quem nunca tinha tido preocupações monetárias, nem tentado escrever, numa sala de aula, com as mãos geladas e a doer, apesar das luvas, e tendo dificuldade em ver a ponta da caneta devido ao cachecol grosso enrolado ao pescoço.

Enfim, o que me traz aqui, hoje, é o motivo de fascinação por Portugal mais surpreendente que ouvi. Ele era médico, ia a caminho dos quarenta e via o nosso país como uma espécie de terra mágica. Um dia, eu quis saber o motivo e o homem saiu-se com uma resposta totalmente inesperada:

- Foi o Otelo!

Quedei-me perplexa. O único Otelo que ligava a Portugal era o da revolução, acontecida havia cerca de vinte anos. Mas que tinha aquele alemão a ver com o 25 de Abril, um alemão que, mesmo depois de bastantes aulas, tinha dificuldades em construir as frases mais simples no idioma de Camões? Só podia ser outro Otelo…

Ocorreu-me a peça de Shakespeare. Haveria algo no enredo que pudesse explicar tal devoção? Shakespeare e Portugal? Nada me constava, mas confesso que estava (e estou) mais familiarizada com Hamlet, Romeu e Julieta, Ricardo III e até com uma bastante desconhecida, António e Cleópatra, que fez parte do meu curso universitário.

Receei parecer ignorante e inquiri cautelosa:

- Disse Otelo?

- Sim, o da vossa revolução.

- Otelo Saraiva de Carvalho?

- Esse mesmo! - Os olhos brilharam-lhe. - Nunca consegui dizer o nome completo. Ensine-me lá!

Repeti o nome, tão simples para nós portugueses, mas que põe a língua de um alemão atrapalhada. Saraiva tem um ditongo (terror alemão) e Carvalho, na melhor das hipóteses, é pronunciada cárfálio.

De qualquer maneira, nunca me passara pela cabeça que, em meados dos anos 1990, um alemão, que não percebia patavina de português, soubesse quem era Otelo Saraiva de Carvalho!

- Mas de onde o conhece?

- Dos comícios.

- Comícios? Ela não faz comícios há muito tempo…

- Mas fazia muitos em 75.

- Esteve em Portugal nessa altura?

- Estive, claro.

- E assistiu a comícios sem saber falar português?

- E é preciso saber português para uma pessoa se entusiasmar num comício do Otelo?

Procurava uma resposta à altura:

- Bem… não sei… era ainda criança.

- Eu tinha dezassete anos, quando ouvi falar no ambiente revolucionário que se vivia em Portugal. Abalei com um grupo de amigos. Foram dos melhores meses da minha vida! Arranjámos trabalho ligado à Reforma Agrária, depois de fazermos amizade com gente que igualmente nos guiava de comício para comício. Nunca mais me hei de esquecer de um, em Lisboa, com Otelo. Tive a sorte de ficar muito perto do palanque. O homem era incrível! O seu entusiasmo, a sua convicção… Mesmo sem entender patavina, fiquei maravilhado.

 

Otelo Saraiva de Carvalho.jpg

Otelo Saraiva de Carvalho

*31-08-1936

†25-07-2021

O Discurso*

José Meireles Graça, 27.04.21

No site da Presidência da República não encontro o texto do discurso presidencial no 25 de Abril. Ou está lá e não o vislumbro, mas era de esperar que fosse fácil nele tropeçar, ou não está e deveria porque o site, que abunda em fotografias e vídeos de Sua Excelência (na verdade com tal profusão e detalhe que se estranha não o vejamos a lavar os dentes), bem poderia conter, ainda que numa secção separada, textos: a página da presidência da República na internet não é bem o YouTube.

De modo que fui ouvir e fiquei com uma impressão geral. Negativa, lamento dizê-lo, mais ainda porque a peça foi aplaudida de pé, pareceu-me que por todas as bancadas.

Percorrendo a imprensa, é um imenso caudal laudatório, paroxístico, por exemplo, neste caso: “O discurso do Presidente, bem para lá da sua erudição, é um discurso de coragem e de inteligência, que arrasa a ideia absurda de que o passado pode ser depurado com os julgamentos do presente”. Fantástico: o director acha que a enunciação do abc da análise histórica “arrasa” a ideia “absurda” que ele, Manuel Carvalho, provavelmente tinha e agora já não tem, de que devemos interpretar o passado como se os seus agentes tivessem conhecimento de factos e ideias que só aconteceram, e nasceram, depois; a coragem não se vê onde esteja porque para agradar a toda a gente não é precisa, antes um tipo particular de indefinição; e inteligência sim, no caso infelizmente apenas a que propicia o sucesso na manutenção do status quo.

Isto é jornalismo do bom, em que pesem lá essas notícias de os apoios estatais (isto é, do contribuinte) ajudarem a que não morram de esgotamento títulos prestigiados. Da classe política não apreciei reacções posteriores, devido à minha natural aversão a exercícios de autoflagelação, mas calhou ler esta notícia sobre declarações do presidente do Governo Regional dos Açores:

Creio que fez um discurso brilhante sobretudo para desvalorizar o contexto de circunstância, mas valorizar a substância do que é a história da democracia e da liberdade e o que representa a unidade nesta conquista", sublinhou o social-democrata José Manuel Bolieiro, numa entrevista no jornal da RTP 3.

Não me apercebi de que o discurso tenha valorizado a substância, nem aliás do que Bolieiro quis dizer, de modo que não li o resto, por medo de que me escasseassem as luzes para entender.

Sem texto, como disse a princípio, limito-me a comentar alguns excertos, que encontrei aqui, e deixo para o fim uma apreciação genérica:

O 25 de abril, disse, foi “o resultado de décadas de resistência e grito de revolta de militares, que sentiam combater sem futuro político visível ou viável”.

As “décadas de resistência”, lamento informar, não tiveram qualquer importância para a eclosão da quartelada, o “grito de revolta” sim. Façamos a nós mesmos a seguinte pergunta: se, num mundo contra-factual, nunca tivessem existido comunistas, os principais depositários da resistência, por serem sobretudo eles que tinham força anímica para suportarem os riscos e inconvenientes da oposição ao regime, o 25 de Abril (o dia inicial inteiro e limpo, não o que se passou depois) teria ou não teria tido lugar do mesmo modo? Deixo a resposta aos leitores argutos.

Marcelo continuou, salientando a importância de se “olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado”, explicando que nos olhos de hoje há uma “densidade personalista, de respeito da dignidade da pessoa humana, da condenação da escravatura e do esclavagismo, na recusa do racismo e das demais xenofobias que se foi apurando, representando um avanço cultural e civilizacional irreversível”.

Da imaginária originalidade desta reflexão já falei acima, ainda que o lembrete seja útil para os movimentos contemporâneos, originados nos Estados Unidos, de um absurdo ajuste de contas com o passado, de que são representantes entre nós o dr. Mamadou, a dra. Joacine e outros peso-pluma do pensamento de esquerda mais ou menos interesseira e lunática. Era a eles que o Presidente se estava a dirigir? Seria gastar cera com mau defunto. De modo que não se está bem a ver quem seriam os destinatários da aula de introdução ao curso de História – só se forem aqueles, e foram muitos, e ilustres, que no 24 de Abril conviviam pacificamente com o regime deposto e nele teriam feito carreira se não tivesse havido o percalço da revolução.

“Desenvolvimento, liberdade e democracia sempre foram imperfeitos e, por isso, não plenos”, continuou. “Não há, nunca houve, um Portugal perfeito nem condenado. Há um só Portugal, que amamos, para além dos claros e escuros”, rematou.

Pois sim, estamos transidos de amor, lá isso não há que negar. Mesmo que os excessos ("os Estados Unidos da América são um grande país, mas Portugal ainda é maior”) desse abrasador sentimento talvez levassem Eça, se fosse vivo, a achar que a declaração encaixava numa das suas definições de patriotaças, patriotinheiros, patriotadores ou patriotarrecas. E de escuros ouvimos nada, que o dia não é de depressão – nunca é, com Marcelo.

Isabel Pereira dos Santos, amiga de muitos duelos, escandalizou-se no Facebook com a apreciação (deveria talvez dizer depreciação) com a qual respondi ao seu post em que considerava o discurso “absolutamente brilhante”. Abaixo a transcrevo:

Um discurso que agrada a toda a gente só pode ser ou uma coisa de tal modo brilhante que Marcelo não a poderia produzir ou um balde de água chilra embrulhado em vacuidades consensuais suficientemente doutorais e pedantes para que as pessoas vejam o que lá não está. Aposto singelo contra dobrado que tenho motivo para uma crónica, para gáudio dos meus 13 leitores.

Bem, não fui ler pelas razões que já enunciei, mas fui ouvir. Uma boa oração, o homem sabe escrever e discursar, tiro-lhe o chapéu por isso e porque, ao contrário do ausente Cavaco, não desprezo a retórica, menos ainda a parlamentar. Compreendo o aplauso unânime: está lá uma palavra de compreensão para todos os derrotados e perdedores, uma de congratulação para todos os vencedores, uma de esperança para todos os desencantados, uma de homenagem aos que no regime anterior queriam substituir a ditadura por outra pior, e uma de admiração pelos heróis do 25 do quatro. Está tudo isto, e tudo isto com brilho. O que não está é a quartelada que o 25 de Abril foi, a sua captura por quem tinha a estratégia, e os conhecimentos, que aos capitães faltavam, o falhanço do escopo desenvolvimentista, o futuro penhorado pela dívida, a alienação do módico de independência que uma pequena nação pode ter e a captura do aparelho de Estado por uma casta que comprou, com dinheiro alheio, votantes cativos. A defesa da perspectiva histórica correcta (isto é, não ver o passado com os olhos das ideias e factos que só nasceram e aconteceram depois) é oportuna mas relativamente vulgar - o género de coisa que impressiona deputados e jornalistas, uns e outros geralmente com uma ilustração por demais escassa.

E foi isto. Peço desculpa por não me associar às comemorações. Aliás, se vivesse em Lisboa, ainda me meteria em trabalhos por não usar máscara na rua, não tendo da liberdade que Abril nos trouxe a mesma concepção de quem as usa.

* Publicado aqui

O discurso do PR no 25 de Abril

jpt, 25.04.21

(Discurso do Presidente da República na Sessão Solene Comemorativa do 47.º aniversário do 25 de Abril na Assembleia da República)

Os meus amigos sabem quanto resmungo contra o Presidente Sousa. Da sua presidência retiro dois grandes momentos: o excepcional discurso de 11 de Junho de 2019, em Cabo Verde, proferido por João Miguel Tavares devido a convite do PR - discurso então muito atacado e, acima de tudo, esquecido pela pobre "esquerda" inintelectual vigente.

E este magnífico discurso de hoje do próprio Presidente da República. A dizer, e bem, o que é preciso. Tardou, muito. Mas está dito! E permite esperar que a partir de agora tenhamos Presidente. Com a densidade e a "compostura" que tão necessárias são.

São 20 minutos. E muito se justifica ouvi-los.

25 de Abril

jpt, 25.04.21

lisboa.jpg

Viva o 25 de Abril! Viva o povo de Lisboa! E o português! Viva a democracia!
  1. Nota de rodapé dedicada a mais novos: a imagem é de arruada lisboeta bem anterior a 25 de Novembro de 1975. Avessa a grappistas, brigadistas, grupelhos maoístas e enverhoxistas, utópicos boumedianos, barbudos guevaristas, ciosos brejnevistas, intelectuais titistas, ignaros polpotistas. Havia sido convocada pelo então PS.

 

A liberdade não tem donos

Pedro Correia, 22.04.21

EcUjwFfXYAAbBPj.jpg

Manifestação salazarista (27 de Agosto de 1963)

 

Só em ditaduras existem praças e avenidas com proprietários privados. Era assim o Terreiro do Paço no tempo de Salazar: ali se organizavam as grandes manifestações em apoio do regime.

Só em ditaduras existem datas com donos. Era assim o 10 de Junho, alegado "Dia da Raça", no tempo de Salazar.

Em democracia, nenhuma data do calendário civil tem proprietário privado. Muito menos o 25 de Abril, que não assinala só a Revolução dos Cravos: celebra também o aniversário do primeiro dia em que os portugueses disseram o que queriam em sufrágio livre, directo, secreto e universal.

Em democracia, nenhuma avenida tem dono. Muito menos a Avenida da Liberdade.

25 de Abril às vezes

José Meireles Graça, 21.04.21

As sociedades precisam, para reforçarem o cimento que as une, de assinalar datas fundacionais de qualquer coisa. Comemorar o nascimento de Cristo, no Natal, ou a sua ressurreição, na Páscoa, interessa não apenas entre nós aos católicos ou aos pertencentes a outras denominações cristãs, mas também aos agnósticos e ateus porque estas celebrações se inscrevem no largo mundo dos fundamentos civilizacionais judaico-cristãos, quer tenhamos ou não consciência disso (além de pagãos greco-romanos mas ei, não estou aqui com grandes profundidades, que não tenho leitores de escafandro).

Feriados civis são outra coisa: remetem para mudanças de regimes ou factos históricos identitários. Os Americanos entopem as ruas no 4 de Julho porque num dia desses, anteontem, declararam a independência; e os Franceses a 14 do mesmo mês soalheiro porque, com um desacato, fundaram a indústria exportadora de revoluções, mais prestigiada ainda que a dos queijos.

Nós temos o 1º de Dezembro por termos enxotado os Filipes; e o 5 de Outubro porque, para quase toda a gente, se celebra um assassinato político e a queda da nefanda monarquia e, para alguns, a data da assinatura do tratado de Zamora. As da fundação da nacionalidade e restauração da independência assinalam-se hoje por inércia porque a mudança do governador do BCE é muito mais importante para nós do que a eleição do presidente da República; quem são os comissários europeus mais relevante do que quem são os ministros; e o perfil do chanceler alemão ou do PM francês, e as suas crenças e o estado de espírito dos respectivos eleitorados, mais decisivos do que os nossos pais da Pátria, que têm assento no Parlamento. De modo que como o que se festeja é uma hibernação só se pode esperar que os discursos sejam ocos, razão por que ninguém os ouve – o que queremos ouvir é o rolar dos TIRs que trazem o dinheiro da Europa.

O 25 de Abril pertence à categoria do 28 de Maio: os militares fizeram uma passeata num caso para acabar com a bagunça e no outro com a guerra colonial sem fim à vista.

Ambos os golpes evoluíram para regimes, salazarista um e democrático o outro, este último só depois de anulada por um triz a golpada comunista que nos teria transformado numa Albânia com uma quantidade inusitada de receitas de bacalhau.

Em bom rigor, o 25 de Novembro é que o regime poderia celebrar, mas nem interessa muito: pouco mais de 2 milhões de portugueses de hoje já tinham 20 anos em 1974. E são esses que, se fossem desfilar para a Avenida da Liberdade, se lembrariam sem intérpretes do que viveram naqueles tempos. Para os outros é uma memória histórica, de resto nublada com descrições interesseiras e uma quantidade prodigiosa de falsificações, e o que podem comemorar é a liberdade de comemorarem o que lhes apeteça. Porque o mais que estava no Programa do MFA (descolonizar e desenvolver) ficou como um processo traumático num caso e uma miragem no outro – Portugal era um país orgulhosamente independente na cauda da Europa e é hoje um país dependente da Europa, mas na cauda.

Comemorar a liberdade de opinião é motivo bastante – sem ela não há sociedades livres. E é aqui que a porca torce o rabo: A Iniciativa Liberal quis juntar-se ao desfile com sindicatos, partidos de esquerda, gerontes do Verão quente, outros cidadãos indesejáveis e outras organizações daninhas, mas a proprietária da marca 25 de Abril proibiu.

Por que razão a IL se quer juntar a tais saudosistas de abominações e beneficiários do Estado que minaram é um mistério; e, até por razões estéticas, desfilar ao lado do tenente-coronel Lourenço releva de uma falta de gosto que não ilustra aquela agremiação de liberais.

Razões pelas quais, das duas uma: ou a IL força as coisas e vai desfilar debaixo do arvoredo gritando palavras de ordem antigas abrilhantadas de autenticidade passadista (por exemplo: o 25 de Abril é do Povo, não é de Moscovo); ou segue o conselho que, com a autoridade que não tenho, ministrei no Facebook e que abaixo transcrevo. Era assim:

Não há outra avenida em Lisboa? À beira-mar, por exemplo, até à prisão de Caxias, para comemorar o 25 de Novembro. E ficava a Avenida da Liberdade só para comunas e primos, venezuelanos, capitães de Abril barrigudos e jornalistas dos jornais do regime.

A liberdade mantida em cativeiro

Paulo Sousa, 21.04.21

Nas notícias tornou-se assunto o impedimento de participação da Iniciativa Liberal no desfile do 25 de Abril.

A Associação 25 de Abril, que como o nome indica advoga-se dona desta data, não permite que este novo partido seja incluído no passeio pela avenida. A desculpa é a pandemia e as limitações que esta impõe. Além disso, justifica-se a referida Associação, o pedido da IL foi apresentado em cima da hora.

Assim a participação fica limitada às seguintes entidades:

 

  • Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRE!)
  • Associação Conquistas da Revolução (ACR)
  • Associação de Combate à Precariedade
  • Precários Inflexíveis (PI)
  • Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP 61-74)
  • Associação Iniciativa Jove
  • Associação Intervenção Democrática (ID)
  • Associação José Afonso (AJA)
  • Associação “Os Pioneiros de Portugal”
  • Associação Política de Renovação Comunista
  • Associação Portuguesa de Deficientes
  • Associação Portuguesa de Juristas Democratas
  • Associação Projecto Ruído
  • Bloco de Esquerda (BE)
  • Comissão Coordenadora das Comissões de Trabalhadores da Região de Lisboa (CIL)
  • Comissão da Juventude da UGT
  • Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN)
  • Confederação Nacional de Organizações das Pessoas com Deficiência (CNOD)
  • Confederação Nacional de Reformados
  • Pensionistas e Idosos (MURPI)
  • Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD)
  • Consciência Negra,Conselho Nacional da Juventude (CNJ)
  • Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC)
  • Ecolojovem “Os Verdes”
  • Frente Anti-Racista (FAR)
  • Interjovem-CGTP
  • Jovens do Bloco
  • Juventude Comunista Portuguesa (JCP)
  • Juventude Socialista (JS)
  • LIVRE
  • Manifesto em Defesa da Cultura,Movimento Cívico Liberdade e Democracia (MICLeD)
  • Movimento Cívico “Não Apaguem A Memória!” (NAM)
  • Movimento Democrático de Mulheres (MDM)
  • Movimento dos Utentes de Serviços Públicos (MUSP)
  • Movimento Pelos Direitos do Povo Palestino e Pela Paz no Médio-Oriente (MPPM)
  • Partido Comunista Português (PCP, Partido Ecologista “Os Verdes”(PEV)
  • Partido Operário de Unidade Socialista (POUS)
  • Partido Socialista (PS)
  • União Geral dos Trabalhadores (UGT)
  • União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP)

 

A existência de algumas destas entidades era por mim desconhecida até hoje, mas o facto de terem passado pelo filtro da Associação 25 de Abril, quando um partido com representação parlamentar não o conseguiu, é algo que não pode deixar de ter significado político.

A falta de senso, de sentido democrático e até de tolerância, que este impedimento de participação encerra, mostra bem a forma como estes senhores funcionam. Quando fomos governados por um governo que não era da cor deles, como quem nega a legitimidade da data fundadora do regime, recusaram-se eles mesmos a participar nas celebrações do 25 de Abril. Se a isso juntarmos o silêncio imposto à evocação, que fosse, do 25 de Novembro na AR, e às recorrentes declarações de Vasco Lourenço, é fácil de concluir que estes senhores são tão democratas como democrata era a RDA.

A liberdade em Portugal está refém da esquerda.

Sobre Wilson Filipe e a generosidade da esquerda

Paulo Sousa, 28.12.20

Já por várias vezes senti que se tivesse crescido numa herdade ou à volta de uma fábrica onde o proprietário fosse um arrogante plenipotenciário, abusador no trato e faltoso nos direitos, a mensagem comunista teria sido para mim muitíssimo apelativa.

O esforço para entender o imaginário em que se baseia a lógica de parte de esquerda, e que constitui o mainstream português das últimas décadas, é bem menor depois de ler Fernando Namora, ou outro autor do neo-realismo da nossa literatura.

Numa versão italiana, o filme Novecento de Bernardo Bertotolucci é também um excelente exemplo disto mesmo. Aquela enorme bandeira vermelha tecida com as pequenas bandeiras vermelhas guardadas secretamente em casa, que são cosidas todas juntas no dia da libertação do fascismo, por acaso também num 25 de Abril, é incrível. Toda a concepção do filme é grandiosa, a infância das personagens, um proprietário e um assalariado que nasceram no mesmo dia em 1900, foi filmada na Primavera, a sua idade adulta passa-se no Verão e no Outono e no Inverno chega o fascismo. O avô, Alfredo Berlingheri, é representado por um Burt Lencaster que por ter gostado do conceito da obra aceitou representar gratuitamente. O calor, as cores e a energia da Primavera da infância são substituídos pelo frio e pelo gelo da ditadura. Este tempo frio e cruel é personalizado magnificamente pelos abusos perversos do cruel Átila (Donald Sutherland) e da sua amante, Regina.

Na versão de coleccionador do filme, Bertolucci relata que chegou a pedir à Academia Soviética um actor para dar corpo ao assalariado Olmo Dalco, mas que desistiu logo depois de lhe terem começado a pedir o script da obra. Esta personagem acabou por ser representada por um Gérard Depardieu em início de carreira, e que ali contracena com outra estrela maior em ascensão, Robert de Niro.

Bertolucci relata nessa mesma versão de coleccionador, que a rodagem do filme se foi arrastando, semanas após semanas, meses após meses, e dentro do staff do filme algumas relações amorosas foram constituídas. Quando ele decidiu que estava na hora acabar o filme, sentiu que estava a interromper equilíbrios que tinham sido ali estabelecidos. A revolta e o mau-estar sentiram-se de imediato.

Novecento.jpg

Vi este filme pela primeira vez na Cinemateca em duas sessões (são 5h17m!), legendado em castelhano e, devido à sobrelotação, só consegui lugar sentado no corredor central da sala. Este texto não estava para ser sobre este filme que, pelos muitos momentos fortes e por se tratar efectivamente de uma obra-prima do cinema, merecia um post próprio.

Com tudo isto em mente, entendo que ser de esquerda, mais ou menos revolucionária, é como um grito de revolta, é um acto de generosidade e de humanismo. Mas, e aqui reside a sua fraqueza, na sua acção pretende esmagar a natureza humana.

Na história da nossa recente democracia, existem vários momentos onde estas duas visões estão em confronto, mas em nenhuma encontro a força e a genuinidade como no debate sobre a propriedade da enxada, no filme de Thomas Harlam, rodado na herdade da Torre Bela em Abril de 1975, e em que Wilson Filipe é um dos seus protagonistas.

"Qual é o valor da tua ferramenta?" podia ter sido uma pergunta feita no Novecento de Bertolucci, mas foi feita em Manique do Intendente no prelúdio do Verão Quente de 1975. "Amanhã tiram-me as botas e ficam da cooperativa! Daqui a nada o que eu visto e o que eu calço é da cooperativa!" diz o incrédulo nos amanhãs que cantam.

A injustiça pela incorrecta distribuição de riqueza será uma camada adicional não contemplada pelos estudos de Adam Smith. Entre muitas coisas (a mão invisível será o seu conceito mais conhecido e, atenção não estamos a falar do governo de José Sócrates, o príncipe da esquerda!) preocupou-se em entender como é que a riqueza se acumulava em algumas regiões e noutras não. Ele reparou que nem o talhante, nem o cervejeiro nem o padeiro agiam por benevolência, mas apenas considerando os seus próprios interesses. E concluiu que era possível combinar a natureza humana no empenho dos seus interesses próprios, com o bem comum na criação de riqueza para a economia. Defender isto não implica que o talhante, o cervejeiro e o padeiro, sejam impiedosamente egoístas, mas apenas que eles, zelando pelos seus interesses pessoais, acrescentam riqueza à sociedade e à economia, e se o bolo for maior, haverá mais para distribuir. Adam Smith não fala nesta redistribuição mas eu acho que desde que não se sacrifique a capacidade de criação de riqueza, a redistribuição faz todo sentido.

A esquerda mais aguerrida, não aceita esta lógica. Prefere de longe que seja o estado, e os seus zelosos funcionários, a definir as acções do talhante, do cervejeiro e do padeiro. O estado, ou a cooperativa, deve ser o dono das enxadas e, mesmo sabendo que a história da ocupação desta herdade é apenas mais uma das inúmeras tentativas em expropriar a natureza humana, insistem em repetir a fórmula que repetidamente tem trazido fome e miséria aos que já eram mais pobres.

Tudo este texto foi desencadeado pelo desaparecimento de Wilson Filipe, uma das figuras que lideraram a ocupação da herdade da Terra Bela em 1975 e que defendeu a apropriação dos bens privados pela cooperativa. Não duvido da sua coragem, da sua sede de justiça e da sua humanidade. Foi apenas, como muitos dos idealistas de esquerda, derrotado pela realidade e pela natureza humana.

Dia da Liberdade

Pedro Correia, 25.04.20

IMG-20200417-WA0014.jpg

 

Estado de emergência a vigorar até 2 de Maio, data em que será presumivelmente substituído por um estado de calamidade pública. Supressão parcial ou total da liberdade de circulação, da liberdade de reunião, da liberdade de manifestação, do direito à greve, do direito de resistência, do direito de emigração, do direito de  iniciativa económica privada. Centenas de pessoas detidas por crime de desobediência. Selos sanitários em hotéis e restaurantes - deixando implícito que os restantes serão pestíferos ou purulentos. Medição de temperatura a futuros clientes à entrada de restaurantes e de trabalhadores nas empresas. Praias com lotação limitada - algo jamais visto neste país, nem sequer em períodos de ditadura. Interdição da prática de cultos religiosos, em flagrante contraste com o culto dos rituais do Estado, que continuam a praticar-se. Perseguição a velhos nos jardins públicos e a jovens surfistas nas águas do mar. "Cercas sanitárias" decretadas em vários perímetros municipais, mesmo em concelhos com apenas dez casos de infecção por coronavírus detectados. Mecanismos de "reconhecimento facial" em avaliação para possível réplica local dos métodos que já são correntes na China. Câmaras térmicas para detectar trabalhadores com febre. Drones com altifalantes exigindo às pessoas para recolherem a casa, como cães-pastores empurrando ovelhas para o curral. Desenvolvimento de tecnologias intrusivas para "medir o nível de confinamento" e "analisar a mobilidade dos cidadãos". Preparação para a chamada "geolocalização de contágios" por aplicação em telemóvel. Monolitismo de opiniões, a pretexto da obediência às autoridades sanitárias, transformando qualquer crítica em delito de lesa-patriotismo

Dia da liberdade. Festejemos, pois. 

Inaceitável

Pedro Correia, 23.04.20

img_1280x720$2019_11_01_00_41_29_898895.jpg

 

Amarga ironia: a única deputada independente do parlamento português é impedida de falar na sessão solene alusiva ao Dia da Liberdade.

Por mais que discorde do que Joacine Katar Moreira possa dizer, defenderei sempre o seu direito a falar no hemiciclo. Sobretudo num dia como este.

Se ela continuar impedida de subir à tribuna parlamentar no 25 de Abril, Ferro Rodrigues volta a cobrir-se de vergonha. Com máscara ou sem máscara.

Dedicado às beatas do regime

Paulo Sousa, 22.04.20

Depois do meu texto anterior relativo aos velhos marretas que “orgulhosamente sós” e do alto da sua bancada insistem, de dedo em riste e voz grossa, em mostrar aos portugueses que lhes devemos obediência e gratidão pelo regime que temos, achei que importava acrescentar algumas considerações.

Afirmo que desde a sua criação e consolidação, o actual regime constituiu um tremendo avanço em relação ao anterior, que só pelo facto de ser uma ditadura fazia dele algo execrável, desprezível e anacrónico.

A democracia razoavelmente decente que temos, constitui um patamar de evolução abaixo do qual o país nunca poderá regressar. 

O primado da liberdade nas suas diferentes vertentes, do respeito pelos direitos humanos, com especial enfoque pelos direitos das mulheres e das minorias, não é nem nunca deve ser um luxo da situação, mas apenas uma base de decência mínima.

Eu, que ainda usava fraldas quando a nossa democracia liberal foi instituída, cresci a acompanhar a sua evolução. Na escola primária cantei o hino da época de “Uma gaivota voava, voava, somos livres”, cheio de significado para quem nos ensinava a letra, mas banal e repetitivo para quem o aprendia. Para a minha geração essa liberdade, felizmente, foi sempre um dado adquirido. Pode incomodar os mais ortodoxos, mas a banalidade e indiferença das gerações mais novas perante as conquistas de Abril são o indicador maior do seu sucesso.

Para a minha geração, e para os mais novos que eu, a paz, a inexistência de censura formal, as eleições livres, as fronteiras abertas, mas também a constituição, a república, a separação do estado e da igreja, o conceito de propriedade privada, assim como o sistema heliocêntrico, são tudo conquistas do passado. Todos nós, sem excepção, temos uma dívida moral para com aqueles que contribuíram para o mundo que hoje temos, desde Galileu Galilei, a Magalhães, a Darwin, a Pasteur e a Salgueiro Maia.

Por isso, quando digo que está a chegar a hora de exigirmos mais e oiço de imediato as forças conservadoras da actualidade, a que chamo de beatas do regime, a chamaram-me facho, acabo por achar piada, pois sem darem por isso imitam as reacções das beatas do Estado Novo quando alguém exigia o fim da guerra colonial e uma democracia ocidental. Claro que já não me podem mandar prender por delito de opinião, mas isso agora é apenas normal.

Cresci e vivo em liberdade e por isso recuso-me a não poder exigir mais crescimento económico e mais oportunidades para os jovens. O actual sistema de reformas foi desenhado num Portugal com uma estrutura etária completamente diferente e há muito que deixou de ser sustentável. Isto é público e sabido e só não foi ainda corrigido por puro calculismo eleitoral. E não são as reformas miseráveis das pessoas simples que ferem o sistema, mas sim as muito elevadas que são imensas. Já aqui falei disso.

Para os que estão bem estacionados na pirâmide do regime e que insistem que o que temos é perfeito, eu lembro-lhes que um quinto dos portugueses vive na pobreza e os seus filhos não podem aspirar a muito mais do que isso. Estes portugueses não têm voz e não sentem que ir votar faça a diferença. A abstenção é a prova de que a linguagem dos políticos não consegue fazer-se ouvir fora da bolha onde vivem.

Lembro-lhes também o sufoco financeiro que os jovens sentem em tornar-se independentes dos seus pais, lembro-lhes que temos uma justiça labiríntica onde só os poderosos sabem navegar, lembro-lhes que as várias falências do país não são obra do destino, lembro-lhes que cada bébé que nasce hoje deve dinheiro suficiente para comprar um chaimite daqueles ilustram o 25 de Abril, e lembro-lhes que a dimensão da imigração dos anos 60 era um indicador tão fidedigno dos desequilíbrios do Estado Novo como o é do actual regime.

Por tudo isto, só quem vive alienado não reconhece que entre o regime e demasiados portugueses existe um vazio que politicamente alguém irá preencher.

Insistir em chamar facho a quem diz que o que temos não é suficiente é negar a realidade, é adiar reformas e alimentar radicalismos.

A ler

Sérgio de Almeida Correia, 22.04.20

Para além de colega e actualmente meu bastonário, o Luís Menezes Leitão é, igualmente, companheiro nesta casa que nos acolhe. Espero que, apesar disso, o autor me perdoe.

Faltando-me a paciência e a disposição para sobre o tema escrever alguma coisa, não podia deixar de aqui trazer o que ele escreveu na sua crónica do jornal i sobre as comemorações do 25 de Abril pela Assembleia da República.

Para se concordar não é preciso estar no mesmo campo político. Tal como para criticar também não se exige estar do outro lado da barricada.

É que há coisas que me parecem de tal forma evidentes que só por birra ou ausência completa de bom senso se pode insistir. E nesta insistência temos tido dirigentes que são imbatíveis, conseguindo mostrar dentro e fora do Parlamento que é possível articular as duas na perfeição.

Absurdo, chocante, inaceitável

Pedro Correia, 21.04.20

IMG-20200417-WA0014.jpg

 

«A forma como se comemora o 25 de Abril na Assembleia da República está a dar cabo da imagem do 25 de Abril.»

Miguel Sousa Tavares, ontem, na TVI



É absurdo que o Estado festeje a liberdade num momento em que os direitos, liberdades e garantias estão severamente restringidos - o que sucede pela primeira vez desde a instauração do actual regime constitucional - e há pessoas a ser detidas por "crime de desobediência".



É chocante que os deputados fechem os olhos à dor que alastra na sociedade, com um português a morrer de Covid-19 a cada hora que passa, e prefiram celebrar efemérides em flagrante violação das regras de confinamento que eles próprios impuseram aos compatriotas ao aprovarem o estado de emergência.

 

É totalmente inaceitável que alguns políticos e comentadores pretendam passar atestados de lesa-democracia a quem, precisamente em nome da liberdade de discordar, ousa contestar a inadequada e descabida cerimónia celebrativa que teimam em levar avante num momento de luto nacional.