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Delito de Opinião

Cabelos curtos na noite mais longa

Pedro Correia, 25.02.13

 

Não é todas as vezes que surge uma figura quase lendária do cinema ao vivo no televisor. Aconteceu-me esta noite, ao ver Emmanuelle Riva na longa festa dos Óscares: estava nomeada pelo principal papel feminino em Amor, de Michael Haneke - um dos melhores filmes que vi nos últimos anos. Gostaria que a inesquecível intérprete de Hiroxima, Meu Amor levasse o prémio na viagem de regresso a Paris, sobretudo no dia em que fez 86 anos, mas a estatueta acabou por ficar bem entregue: a melhor actriz do ano, na opinião dos jurados da Academia de Hollywood, é Jennifer Lawrence - pura explosão de talento num filme que me cativou, Guia para um Final Feliz, de David O. Russell.

O melhor actor, sem surpresa, foi Daniel Day-Lewis, com um inexcedível desempenho em Lincoln que o torna campeão no seu género: nenhum outro intérprete havia conquistado até hoje três estatuetas (proeza que ele conseguiu com O Meu Pé Esquerdo, de Jim Sheridan, e Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson, além deste, sob a competente direcção de Steven Spielberg).

Mas o momento da noite foi a surpreendente aparição da primeira dama norte-americana para anunciar o Óscar de melhor filme entre as nove longas-metragens nomeadas. Em directo da Casa Branca, com pompa e circunstância, Michelle Obama abriu o envelope para pronunciar a palavra de quatro letras que fez vibrar Ben Affleck de satisfação: Argo, realizado com mão segura, foi proclamado grande vencedor nesta despudorada intromissão da propaganda governamental na festa dos Óscares. Se algo semelhante tivesse sucedido por bandas cá da velha Europa, não faltariam almas indignadas bradando justamente contra a ligação promíscua do espectáculo ao poder político.

Ang Lee, que dirigiu A Vida de Pi, foi considerado o melhor realizador de 2012, como já fora em 2005, com O Segredo de Brokeback Mountain. O cineasta de Taiwan dirigiu uma palavra de carinho à mulher com quem está casado há 30 anos, gesto repetido pouco depois com Daniel Day-Lewis em relação à mulher, Rebecca Miller, com quem deu o nó em 1996. Hollywood, em matéria de separações, já não é o que era...

 

E que mais?

Barbra Streisand pisou pela primeira vez o palco em cerimónias do género desde 1977, para homenagear o falecido Melvin Hamlisch, cantando The Way We Were, uma das canções da minha vida. Jack Nicholson, o mestre-de-cerimónias final, está consideravelmente mais velho e mais gordo. Catherine Zeta-Jones e Jane Fonda, pelo contrário, estão bastante mais esbeltas e muito mais novas. Quase tão jovens como Anne Hathaway, que levou para casa a estatueta destinada a premiar o desempenho de melhor actriz secundária pela sua interpretação cantada em Os Miseráveis. Nada esbelta está Adele, vencedora do Óscar da melhor canção (em parceria com Paul Epworth), mas parece que ela não se rala nada com isso.

E eu também não, desde que ela continue a cantar desta maneira.

 

O meu filme favorito, 00.30 Hora Negra, levou apenas o Óscar de melhor montagem de som - a meias com Skyfall, num dos raríssimos empates até hoje registados em noites de distribuição de estatuetas. Amor, realizado pelo austríaco Michael Haneke, recebeu justamente o prémio para melhor filme de língua não-inglesa. Christoph Waltz é melhor actor secundário por Django Libertado, película que também valeu ao seu realizador, Quentin Tarantino, o Óscar de melhor argumento original - repetindo assim a proeza alcançada em 1994 com Pulp Fiction.

Seth MacFarlane, como anfitrião estreante, esteve em grande nível, sobretudo ao cantar We Saw Your Boobs - uma das melhores surpresas da noite. E Charlize Theron, coadjuvada por Anne Hathaway, relançou a moda do cabelo curto, que não tardará a pegar como fogo na pradaria.

E agora, se me dão licença, vou dormir.

O jornalismo que não se surpreende

Pedro Correia, 27.02.12

 

Já escutei hoje mais de dez vezes a frase "sem surpresas" referente à distribuição dos Óscares. Se não há surpresa, não há notícia. Mas houve notícia. O cineasta galardoado com a estatueta de melhor realizador é francês (quantas vezes isso já sucedeu na história da Academia de Hollywood, ó jornalistas nada surpreendidos?). A película vencedora, O Artista, é uma produção franco-belga (lembram-se da última vez em que isto sucedeu ou se alguma vez ocorreu nestas oito décadas de distribuição dos Óscares, caros amigos?). O actor que recebeu o prémio para o melhor desempenho masculino, Jean Dujardin, é também francês (digam-me, por favor, qual foi o actor fancês que antes dele levou um Óscar para casa). E Christopher Plummer, veterano de longas-metragens que há muito fazem parte do imaginário universal, como Música no Coração, foi o mais velho actor de sempre a conquistar uma estatueta, neste caso destinada a premiar o melhor desempenho secundário: triunfou aos 82 anos numa indústria rendida ao culto da juventude.

Limitei-me a anotar algumas novidades em poucos minutos, ao correr da pena. Outras houve que poderia igualmente sublinhar aqui -- do Óscar de melhor argumento original para Woody Allen por um filme de produção europeia até ao cineasta iraniano distinguido com o prémio para melhor filme de fala não-inglesa.

Mas reconheço que é muito mais fácil iniciar notícias com o chavão "não houve novidades". Marca de um certo jornalismo preguiçoso que permanece instalado entre nós.

Imagem: Jean Dujardin e Bérénice Bejo numa cena d' O Artista

Ainda os Oscars

José Maria Gui Pimentel, 27.02.12

 

Nesta “época festiva” reemerge sempre quem se revele completamente alheio ao frenesim dos Oscars e restantes prémios do cinema americano. Os argumentos são variados, mas desembocam quase invariavelmente no facto de a Academia ter como fim último o lucro e a promoção dos seus filmes, tornando, assim, as escolhas previsíveis e redutoras. Outra razão mais mundana é o facto de a Academia ter uma composição muito enviesada, com preponderância de elementos do sexo masculino (77%), brancos (94%), idade superior a 60 anos (54%) e sem qualquer nomeação para um Oscar (64%). Ainda outro motivo invocado prende-se com a obrigação de os filmes nomeados serem americanos, o que restringe substancialmente o mercado disponível. Quanto a isso, nada a fazer. Quanto às restantes duas críticas, embora pertinentes, a verdade é que o seu efeito (particularmente o da primeira) não é tão grande quanto poderia ser. Com efeito, se é verdade que as escolhas da Academia são perfeitamente discutíveis (caso qualquer um de nós fizesse um top dos filmes de um ano, dificilmente este se intersectaria com as escolhas dos jurados), também é verdade que não se pode afirmar que sejam completamente previsíveis, muito menos mono-temáticas. Os filmes deste ano eram muito diversos entre si, e mais diferentes ainda de outros nomeados em anos anteriores (e.g. Slumdog Millionaire, O Cisne Negro, Este país não é para velhos, Juno, Babel, só para citar exemplos recentes). Sim, os dramas do tipo As Serviçais e Milk costumam ser beneficiados, e os filmes biográficos também. Mas, fora disso não há tanta previsibilidade assim. É isso que mantém as pessoas interessadas no evento. Só com a red carpet não iam lá.

Despojos dos Óscares

José António Abreu, 26.02.12

A cerimónia de entrega dos Óscares de 2012 é esta noite. Ainda não vi qualquer dos nomeados para melhor filme. No ano passado, o Óscar foi para O Discurso do Rei – um filme simpático, que podia perfeitamente ser uma mini-série da BBC (só em parte isto pretende ser um insulto). Entre os grandes derrotados estiveram A Origem, um bom filme (ou não tivesse sido realizado por Christopher Nolan), com todos os efeitos especiais necessários para maravilhar o público actual de cinema, A Rede Social, outro bom filme (ou não tivesse sido realizado por David Fincher – mas porquê refazer a trilogia Millennium, David?), sobre a ânsia, tão intensa nos dias que correm, de constituir o centro das atenções sem o esforço de produzir algo que o justifique, e Indomável, mais um bom filme (ou não tivesse sido realizado pelos manos Coen), sobre uma rapariga em busca de justiça num mundo violento – e masculino. Na minha opinião, qualquer dos três era mais merecedor do Óscar do que O Discurso do Rei – mas talvez não tanto como o nomeado que vi apenas ontem, em DVD.

 

Despojos de Inverno tem um ponto de contacto com Indomável: é acerca da luta de uma rapariga num mundo violento. Porém, em comparação com o filme dos Coen ou qualquer dos outros mencionados acima, é um filme simples, realizado com pouco dinheiro, sem efeitos especiais ou recurso a grandes estrelas – mas com imenso cinema. A história é simples: nas montanhas Ozark (centro do Estados Unidos), nuns USA muito longe do glamour e da riqueza que esta noite veremos na televisão, Ree Dolly (fabulosa Jennifer Lawrence, a seguir com atenção), uma rapariga de dezassete anos, toma conta do irmão e da irmã, ambos mais novos, e da mãe, mentalmente ausente. O dinheiro escasseia e muitas vezes a família depende da ajuda dos vizinhos mais próximos. O pai de Ree dedicava-se ao fabrico de metanfetaminas antes de ser preso, solto sob fiança e desaparecer em parte incerta. Ree é informada de que a propriedade da família foi dada como garantia da fiança e que, se o pai não aparecer no tribunal dentro de dez dias, ela, os irmãos e a mãe serão despejados. Ree decide tentar encontrar o pai e fazê-lo apresentar-se perante o tribunal. Mas – e sabe-o à partida – vai enfrentar muitas desconfianças, muitas resistências, muita gente que pode ter motivos tão ou mais fortes para manter o pai de Ree desaparecido como ela tem para o fazer aparecer.

 

A estrutura do filme dificilmente podia ser mais perfeita. Começa por mostrar-nos o ambiente em que Ree se insere, apresenta-nos o problema, faz-nos acompanhar Ree nos contactos com pessoas que parecem todas estranhamente hostis (até as que se presumiria estarem do lado dela, como os familiares mais próximos, parecem opor-se-lhe) e, lentamente, vai-nos deixando perceber o que realmente se passa, as razões para tanta hostilidade e por que se encontra afinal a tarefa de Ree praticamente votada ao fracasso. De um modo ou de outro, quase todas os personagens em Despojos de Inverno são violentas (os irmãos e a mãe de Ree constituem as excepções mais óbvias, eles por ainda não entenderem o que se passa – são as únicas personagens capazes de brincar –, ela por ter desistido de entender) mas a violência parece manifestar-se de modo diferente nos homens e nas mulheres. Eles são duros, agressivos, inacessíveis, preocupados com não mostrar fragilidades. Elas são tão ou mais duras mas a sua dureza – e violência – é uma espécie de resistência, de subjugação raivosa aos desígnios masculinos, nascida da necessidade de terem sido forçadas a adaptar-se ao mundo em que estão inseridas: à maneira de ser dos homens e aos seus problemas frequentes com a lei, aos casamentos precoces e aos filhos que deles resultam, à falta de dinheiro e de perspectivas. Se a sombra dos homens e da sua inflexibilidade é permanente ao longo do filme, são as mulheres quem mais tempo passa no ecrã e quem – desconfia o espectador – acaba por ter mais influência no modo como tudo acaba. Despojos de Inverno é um filme com uma fortíssima componente feminina e não será coincidência ter sido realizado por uma mulher, Debra Granik.

 

Gostaria de realçar dois últimos pontos, provavelmente também relacionados com esse eventual carácter feminino. O primeiro é que, tratando-se de um filme violento (muito violento), quase não mostra violência física. Antecipa-a, mostra-lhe os efeitos – mas não se detém sobre ela. Num tempo em que os filmes fazem questão de mostrar muito mais do que sugerir, é sempre agradável constatar como a sugestão consegue ser eficaz. Finalmente, encontrando-nos submersos por filmes em que os heróis se riem do perigo e avançam com uma frase cáustica para as mais inverosímeis lutas, é também bom relembrar que são afinal os heróis relutantes, os heróis que fazem o que tem de ser feito porque não há mais ninguém para o fazer, quem mais empatia consegue gerar num ecrã de cinema. Esta constitui, aliás, uma diferença importante entre Indomável e Despojos de Inverno: Mattie Ross é uma rapariga voluntariosa em busca de uma vingança de que pode prescindir, Ree Dolly uma rapariga encurralada que só pode escolher entre dois males – enfrentar quem nunca poderá vencer ou perder casa e família. O verdadeiro heroísmo é não desistir.

 

Quanto aos Óscares, who cares?

 

A Dama de Ferro

Teresa Ribeiro, 26.02.12

Fui ver a Meryl no filme sobre a Thatcher e afinal quem eu vi foi a Thatcher e não a Meryl. Nem os olhos lhe descortinei. Eclipsou-se atrás da personagem e deixou-me boquiaberta a pensar que depois de Mamma Mia eu achava que ela já não tinha como me surpreender. The oscar goes to her (I hope).

Fiquei, pois, com a Thatcher, a mulher de quem sempre tive uma visão unidimensional por força das circunstâncias. A sua imagem pública era muito forte, logo redutora e a minha trincheira política já nesse tempo era outra, o que naturalmente me condicionava o olhar.

Resumir a sua vida em duas horas de filme exige que se façam escolhas, mas Phyllida Lloyd (também a realizadora de Mamma Mia) não nos apresenta um biopic parcelar, desses que privilegiam claramente uma das facetas do biografado. A solução que ela nos apresenta é a menos radical, mas a mais arriscada, pelas óbvias dificuldades que coloca, na gestão do tempo e do volume de informação, fazer uma síntese com pés e cabeça.

O resultado é um esboço, tanto da figura pública como da persona que a explica. Inevitável. Quem espera ver neste filme a Maggie que se escondia por detrás da máscara de ferro, fica à espera de mais. Quem quer uma biografia política, desilude-se. Ainda assim não considero A Dama de Ferro um filme falhado, porque apesar de tudo dá-nos muito: uma narrativa com um ponto de partida inesperado, que é o da decadência do fim da vida, e um perfil psicológico que embora limitado, nos ajuda a perceber melhor a mulher que governou, durante onze anos, o Reino Unido.

Ainda que incipiente, o retrato humanizou a meus olhos a senhora que em tempos inspirou a minha ira enquanto trauteava, solidária com os mineiros em greve de fome, o Don't Give Up, de Peter Gabriel. A dama a quem dedicaram covers de Maggie's Farm, transformando o original de Bob Dylan num hino de ódio à sua política, era dura como todos os que sobem a pulso. E tal como a generalidade dos self made (wo)men, insensível aos queixumes dos mais desfavorecidos, porque não lhes reconhecia mais dificuldades do que as que teve para vencer na vida. Thatcher acreditava também no que fazia: "o medicamento é forte, mas o doente precisa dele", argumentava, no auge da contestação às duras medidas que tomou para reabilitar a economia britânica. Afirmava também que estava na política "para fazer e não para ser", uma atitude muito ética mas pouco sexy, que lhe valeu o afastamento dos seus pares.

Phyllida Lloyd deixa-nos também entrever o universo familiar de Maggie: as relações privilegiadas com o pai, que lhe incutiu a ambição e o orgulho, a distância em relação à mãe, a preferência pelo filho e a ligação ao seu Dennis. Sabemos isto tudo apoiados em cenas fugazes, curtas pinceladas de um quadro que ficará por completar, mas que ainda assim revela o carácter e a coragem de um ícone que passei, graças a este filme, a ver com cara de gente.

É, porém, a política que sai mais sacrificada neste biopic. Quem estiver mal informado perde-se no carrossel de imagens que ilustram os momentos mais marcantes do thatcherismo e jamais terá possibilidade de fazer uma avaliação. Esta é a maior fragilidade de A Dama de Ferro.

 

 A Dama de Ferro (The Iron Lady), 2011. Realz: Phyllida Lloyd. Int.: Meryl Streep, Jim Broadbent, Richard E. Grant, Susan Brown

Palpites para uma longa noite

Pedro Correia, 26.02.12

 

Só vi quatro dos nove filmes que concorrem ao Óscar da Academia destinado a premiar a melhor longa-metragem de ficção de 2011. Não posso, por isso, tecer considerações fundamentadas sobre aquele que merece levar a estatueta. Mas como gosto de apostas adianto o meu palpite sobre o vencedor: O Artista, de Michel Hazanavicius - fascinante revisitação dos anos pioneiros de Hollywood num filme que recupera a estética do cinema mudo que parecia sepultada a oito décadas de distância. Já alguém lhe chamou, e com razão, "a quintessência da nostalgia".

Estas (filme e realizador) são as vitórias que me parecem mais prováveis. Mas, entre os concorrentes nomeados pela academia, o filme que eu gostaria de ver contemplado com o supremo galardão do ano foi talvez aquele que mais fascinou de quantos vi em 2011: A Árvore da Vida, de Terrence Malick. Há filmes que nos tocam de uma forma tão radical, tão surpreendente, tão prolongada que a partir desse momento se tornam parte integrante do nosso património afectivo. Este é um deles.

Quanto aos prémios restantes, estimáveis mas de segunda linha, deixo apenas dois palpites: Meryl Streep conquista o seu terceiro Óscar (após Kramer contra Kramer em 1979 e A Escolha de Sofia em 1982) pelo seu imbatível desempenho como Margaret Thatcher em A Dama de FerroMax von Sydow ganha enfim uma estatueta como actor secundário em Extremamente Alto, Incrivelmente Perto, de Stephen Daldry. O equivalente a prémio de carreira para compensar omissões anteriores - algo muito frequente em Hollywood. Uma lógica que pode aplicar-se também a outro veterano destes lides: Christopher Plummer, nomeado pela actuação em Assim é o Amor, de Mike Mills.

E mais não digo. A festa é mais logo, na TVI. Uma das noites mais compridas do ano.

 

Imagem: fotograma d' A Árvore da Vida, de Terrence Malick

"(...) não percebeste bem o filme!"

José Maria Gui Pimentel, 26.02.12

Afortunados os cientistas que não têm de se preocupar senão com os do próprio meio. Já os artistas são obrigados a tolerar uma horda de chicos-espertos a comentar o seu trabalho, como se percebessem verdadeiramente da poda. Como a arte, contrariamente à ciência, é subjectiva, não é difícil a um leigo fazer parecer que tem algo para dizer. Pior que isso: não é difícil a um leigo pensar que tem algo para dizer. Mesmo consciente desse facto, não resisto em enveredar pela quinta-essência dessa chico-espertice aplicada ao cinema: uma (parcial e desajeitada) análise dos filmes nomeados para os Oscars (e de um que não está, mas devia).

 

 “O Artista” – 4.5 estrelas.

 

É um filme absolutamente fantástico, pela história, pela ideia de fazer uma película muda na época do 3D, mas, principalmente, pela realização. Michel Hazanavicius transforma com mestria uma aparente escassez de recursos numa vantagem, enfatizando magistralmente as funções da representação física e da banda-sonora (que aqui recupera a razão do seu nome). Jean Dujardin faz um enorme papel, com uma expressividade insuperável. Bérénice Bejo está também muito bem.

 

 

“Hugo” – 3.5 estrelas

 

Junta uma boa ideia a uma história razoável. Não pude ver em 3D, mas Martin Scorsese faz o habitual uso magistral das câmaras, mesmo em 2D. Todavia, confesso que o filme não me seduziu muito. A história poderia ter descolado mais do género em que se insere e algumas personagens poderiam ter sido mais bem exploradas. Em todo o caso, tem alguns trunfos: Cativaram-me por exemplo, as várias pequenas histórias que se vão desenrolando, (aparentemente) em paralelo à trama principal, apenas para depois se interceptarem, num final feliz conjunto. É um truque habitual, mas que aqui foi especialmente bem empregue.

 

“O Artista” e “Hugo” são os dois favoritos para o Oscar de melhor filme. É curioso o facto de ambos abordarem o mesmo período da história do cinema, o fim do cinema mudo. Mais curioso ainda é o facto de um o fazer recorrendo à técnica de então, enquanto o outro faz uso do 3D. Nesse aspecto, um golpe brilhante de Scorsese, que, duma penada, reconcilia o público com a tecnologia moderna e faz a devida homenagem aos primórdios do cinema.

 

"Os Descendentes” – 3 estrelas

 

Apenas mediano, com uma complexidade mais aparente do que real. Ademais, continuo sem achar George Clooney um grande actor. É um papel diferente, de facto, mas que não achei particularmente bem desempenhado.

 

"As Serviçais" – 4 estrelas

 

É um tipo de narrativa relativamente comum, o que é uma desvantagem, mas bem conseguida. Compensa essa previsibilidade com a qualidade da história, que inevitavelmente cativa o espectador. Viola Davis e Emma Stone têm notáveis desempenhos. O da primeira trazendo muitas subtilezas a um papel aparentemente simples. A segunda revelando aqui uma polivalência inesperada (tanto é capaz de fazer de miúda gira da escola como, pelos vistos, de maria-rapaz). Por fim, descobri no filme um pormenor interessante. Numa indústria incrivelmente machista como é a de hollywood (hei-de escrever aqui sobre isso), é admirável o sucesso alcançado por um filme quase sem homens.

 

"Meia Noite em Paris" – 3 estrelas

 

Este filme que, como não poderia deixar de ser (sendo de Woody Alen), saiu fora de época de Oscars, já aqui foi discutido profusamente no nosso espaço: aqui, aqui e aqui. Mantenho que é um filme agradável, e com uma mensagem interessante, mas com pouco sumo, cheio de clichés. Pareceu-me mais uma ode a Paris do que um filme amadurecido.

 

"Moneyball" – 4 estrelas

 

Tal como “The Help” é um género de narrativa algo gasto, porém igualmente bem gizado, ademais possivelmente superando aquele em originalidade da trama e em qualidade de filmagens (um bom trabalho de Bennett Miller). Acresce que é um filme sobre desporto, o que é sempre um handicap. Para quem, como eu, nada percebe de basebol, torna-se por vezes difícil de acompanhar, mas o essencial está lá. Brad Pitt mostra, mais uma vez, ser, ao contrário do “homólogo” citado acima, mais do que um sex symbol, confirmando a sua grande versatilidade. Ainda assim, não me parece suficiente para privar Jean Dujardin do prémio.

 

"Cavalo de Guerra" – 3 estrelas

 

Não há muito a dizer sobre este filme. Visualmente muito bem realizado e com uma boa banda sonora, cortesia da parelha habitual Steven Spielberg / John Williams. Mas muito atrás das obras-primas de Spielberg. Mesmo tendo em conta o género em que se abertamente, não achei que merecesse a nomeação.

 

"Os Homens que Odeiam as Mulheres" – 4 estrelas

 

Um policial de qualidade, realizado por David Fincher (não sei se bem ou mal adaptado, pois nunca li o livro). Daniel Craig cumpre e Rooney Mara revela-se, embora não deva ser suficiente para levar o Oscar.

 

"A Melhor Despedida de Solteira" – 3,5 estrelas

 

Uma comédia romântica de um estilo de que não sou grande fã. Ainda assim, consegue ser relativamente original. Pelo menos meia estrela deve-se ao desempenho de Melissa McCarthy. Lembro-me duma entrevista do Herman em que ele dizia que nenhum tipo de humor é mau, desde que seja bem feito. Melissa McCarthy prova isso mesmo.

 

"A Dama de Ferro" – 3,5 estrelas

 

É uma fita difícil de avaliar. Sendo um filme, e não um documentário, justifica-se perfeitamente a opção por uma narrativa diferente, neste caso focada no sofrimento da personagem principal, Margaret Thatcher, após morte do marido. A ideia é boa mas não especialmente bem executada, com o realizador a parecer não ter a certeza em relação a de que perspectiva adoptar. Ainda assim, é muito hábil o modo como são geridas as sempre polémicas políticas de Thatcher, sem juízos de valor. Estes vêm sempre das personagens, e não do realizador, cada uma representando os vários pontos de vista existentes. Acresce o desempenho notável de Meryl Streep, que confirma ser das únicas atrizes (quiçá a única) a conseguir sobressair num mundo em que os papéis de relevo são quase sempre masculinos.

 

 

"J. Edgar" – 4 estrelas

 

Discordando do Pedro Correia (até nestas matérias se discorda neste blogue!), acho o filme bem conseguido. Confesso-me: Leonardo Dicaprio é, provavelmente, o meu actor americano preferido. O homem não sabe fazer maus filmes: escolhe os guiões a dedo, e interpreta-os quase sempre com mestria. Não compreendo como ainda não ganhou sequer um Oscar. Tal como o filme sobre Margaret Thatcher, o realizador (Clint Eastwood neste caso) tenta seguir uma linha diferente, afastando-se do filme biográfico tradicional. Não acho, Pedro, que o objectivo tenha sido narrar uma novela gay, o próprio Eastwood numa entrevista antes de o filme ser divulgado parecia pouco interessado em seguir esse caminho. Na verdade, os rumores sobre a vida privada de Hoover teriam, caso o realizador quisesse ir por aí, dado para muito mais do que aquela relação casta que é retratada no filme (os boatos incluíam cross-dressing e orgias homossexuais). Posto isto, o filme adopta, propositadamente, uma ênfase no lado pessoal de Hoover, não deixando de contar a história da sua carreira pública, mas deixando esta em função daquela. É uma perspectiva lícita para um filme, e aqui, na minha opinião, mais bem conseguida do que na “Dama de Ferro”.

 

Mesmo tendo presente não ter conseguido ver todos os filmes, apontaria para os seguintes vencedores (não são previsões, são opiniões):

 

Melhor Filme: “O Artista”

Melhor Realizador: Michel Hazanavicius (“O Artista”)

Melhor Actor Principal: Jean Dujardin (“O Artista”)

Melhor Actriz Principal: Meryl Streep (“A Dama de Ferro”)

Melhor Actor Secundário: *

Melhor Actriz Secundária: Melissa McCarthy (“A Melhor Despedida de Solteira”)

*só vi um dos filmes seleccionados

Kirk Douglas e Eli Wallach

Pedro Correia, 07.03.11

               

 

Gostei de ver, faz hoje uma semana, dois sobreviventes dos anos de ouro do cinema americano no palco do teatro Kodak, em Hollywood: Kirk Douglas, de 94 anos, entregou o Óscar de melhor actriz secundária (bem merecido) a Melissa Leo, pelo seu magnífico desempenho na película O Último Round; Eli Wallach, de 95 anos, recebeu um prémio honorário, destinado a homenagear a sua longa carreira que parece não ter fim – ainda há pouco o vimos em Wall Street 2.

Dois actores que entraram em filmes inesquecíveis: Carta a Três Mulheres (Joseph L. Mankiewicz, 1949), Algemas de Cristal (Irving Ropper, 1950), O Grande Carnaval (Billy Wilder, 1951), História de um Detective (William Wyler, 1951), Cativos do Mal (Vincente Minnelli, 1952), Vinte Mil Léguas Submarinas (Richard Fleischer, 1954), A Vida de Van Gogh (Minnelli, 1956), A Voz do Desejo (Elia Kazan, 1956), Horizontes de Glória (Stanley Kubrick, 1957), Os Sete Magníficos (John Sturges, 1960), Spartacus (Kubrick, 1960), Os Inadaptados (John Huston, 1961), Duelo ao Pôr-do-Sol (Sturges, 1961), Duas Semanas noutra Cidade (Minnelli, 1962), Sete Dias em Maio (John Frankenheimer, 1964), O Bom, o Mau e o Vilão (Sergio Leone, 1966), O Compromisso (Kazan, 1969) e tantos outros.

O público ali presente dispensou-lhes calorosas e prolongadas ovações. Bem merecidas: Douglas e Wallach, em conjunto, totalizam 120 anos de presença activa no cinema americano. Casos raros de longevidade. Casos raros de indiscutível qualidade.

Daqui, na minha modesta condição de espectador grato por tantas horas de bom cinema que ambos me propiciaram, também lhes presto o meu tributo.

Quando o Óscar chega tarde de mais

Pedro Correia, 27.02.11

 

Em cada temporada dos Óscares, lembro-me sempre de Howard Hawks. Foi um dos gigantes da arte de realizar filmes. E também um cineasta que nunca recebeu um Óscar em competição. Não por falta de obras-primas no seu currículo. Mas porque, por algum motivo obscuro, a Academia de Hollywood sempre o considerou um realizador “menor”. Algo muito estranho, já que raros cineastas produziram tantos filmes memoráveis como Hawks, que iniciou a sua actividade ainda no tempo do cinema mudo. Filmes como As Duas Feras (1938), Paraíso Infernal (1939), Sargento York (1941), À Beira do Abismo (1946), Rio Vermelho (1948), A Culpa foi do Macaco (1952), Rio Bravo (1959) e El Dorado (1967). Foi ele quem reuniu pela primeira vez Humphrey Bogart e Lauren Bacall, em Ter e Não Ter (1944). Foi ele quem juntou Marilyn Monroe e Jane Russell, em Os Homens Preferem as Louras (1953).

O reconhecimento foi tardio – e só surgiu por efeito de ricochete da crítica francesa, que idolatrava Hawks. Hollywood deu-lhe enfim um Óscar honorário em 1974 quando Hawks, de 78 anos, já deixara de filmar. A consagração surgiu demasiado tarde, tal como sucedeu, por exemplo, com Charles Chaplin e Groucho Marx (Óscares honorários de 1971 e 1973, quando tinham 82 e 83 anos, respectivamente).

O génio é muitas vezes reconhecido tarde de mais. Lá como cá.

Good luck, Mr. Darcy!

Laura Ramos, 11.02.11

 

Finalmente!

Na calha para o Óscar de Melhor Actor pelo papel em The King's Speech.

Raramente concordaram comigo... mas Colin Firth é, há muito tempo, um dos meus fingidores favoritos.

Por isso, embora estas coisas de Hollywood costumem despertar-me um interesse morno, este ano vou torcer muito, mesmo muito, para que o meu Mr. Darcy predilecto ganhe a estatueta (aposto que nas suas mãos até perdia aquele ar de troféu do volfrâmio).

Seria absolutamente merecida.

Há quem tenha alergia à alegria

Pedro Correia, 09.03.09

 

Vários críticos de cinema acolheram da pior maneira Quem Quer Ser Bilionário? (Slumbog Millionaire), o filme de Danny Boyle agora contemplado com oito Óscares. Um pouco por toda a parte, neste tempo de grave crise económica, financeira e social, a película tem vindo a ser muito bem acolhida, cativando legiões de espectadores de todas as idades, culturas e condições sociais. Não custa perceber porquê: muita gente sente-se um pouco melhor depois de a ter visto. Em perfeito contraste com a generalidade das notícias que nos chegam ao domicílio, sempre com uma carga depressiva nas linhas e entrelinhas.
 
Brindar Quem Quer Ser Bilionário? com bola preta, como houve quem fizesse em Portugal, é pura desonestidade intelectual: significa um sinal de alerta aos espectadores, intimando-os a não verem este filme, assim remetido para a galeria dos piores de sempre com frases absurdas como esta: “Boyle nem sequer conhece a distância que permite criar uma verdadeira perspectiva sobre as coisas e limita-se aqui a oferecer-nos o Outro (o Oriente) como travesti do Mesmo (o Ocidente).” Felizmente a intuição dos espectadores – e a publicidade de bouche a l’oreille – pesa muito mais do que frases como aquela.
 
Talvez o motivo por que vários críticos detestam a película de Boyle tenha sido o mesmo de sempre: o mundo das cotações cinematográficas com chancela ‘artística’ costuma ser adverso aos filmes com final feliz. Um texto do Guardian, há dias, ajudava-nos a perceber a estranheza de alguns perante o Óscar de melhor filme a Slumdog Millionaire: das cinco longas-metragens em competição, esta era a única com happy ending. As outras falam-nos de um amor impossível (O Estranho Caso de Benjamin Button), do julgamento de uma carcereira nazi (O Leitor), de um ídolo da cultura gay que morreu assassinado (Milk) ou de um político que saiu de cena pela porta mais pequena da História (Frost/Nixon). Muitos críticos, ainda que inconscientemente, tendem a valorizar sobretudo o que termina mal. Em regra, o drama recebe mais estrelas do que a comédia. E também recebe mais Óscares: nos dois anos anteriores, os vencedores tinham sido Entre Inimigos (de Martin Scorsese) e Este País Não É Para Velhos (dos irmãos Coen).
 
Nada comparável ao filme agora vencedor. “Para onde quer que vão, os membros da equipa de Slumdog Millionaire parecem estar a divertir-se", escreve Jeremy Kay no Guardian. E nós acabamos por nos divertir com eles – até na noite dos Óscares, a mais bem conseguida em muitos anos, isso se viu. Alguns não apreciam o estilo: em tempo de crise planetária, todo o indício de optimismo é punido com bola preta por quem sente alergia a qualquer forma de alegria.

Onde está o Óscar?

João Carvalho, 23.02.09

Por mim, o Óscar vai para os que conseguiram demonstrar, aqui em baixo, que a emoção de quem se interessa pela Sétima Arte e segue ao vivo a festa anual da Academia de Hollywood pode ser transcrita, momento a momento, para a blogosfera e, mais ainda, comentada com acerto e opiniões de quem sabe do que fala. Eu próprio segui tudo com regularidade, sem me intrometer entre o grupo de entendidos.

O resultado está à vista: post atrás de post, foram dezenas e dezenas de comentários (em tempo real, que é como se usa dizer); cerca de 90 comentários, só no último post, o que é um recorde no DELITO DE OPINIÃO. Fica a preciosa estatueta com o André Couto (que garantiu a «actualização ao segundo») e restantes cinéfilos (externos e internos) que os assinaram, pelo esforço que ajudou a abrilhantar a longa noite. E que pareceu realizado sem esse esforço.

Em São Francisco, com Jerry Lewis

Pedro Correia, 22.02.09
 
 
Certos actores são inimitáveis: Jerry Lewis é um deles. Vi-o, como qualquer de nós, em dezenas de filmes. Mas também o vi uma vez em palco, já ele andava nos 70 anos. Ninguém diria que tinha essa idade: cantava, dançava, cabriolava com uma energia inesgotável no musical Damn Yankees, de George Abbott, Douglass Wakllop (letra), Richard Adler e Jerry Ross (música), nas tábuas do Golden Gate Theater, em Market Street, no centro de São Francisco.
Ainda hesitei em aguardar por ele à saída, para lhe caçar um autógrafo, ao princípio dessa noite de Setembro de 1996: afinal, Jerry Lewis foi um dos ídolos da minha infância. Mal surgia no ecrã, despertava um festival de gargalhadas nas suas comédias de início de carreira em parceria com Dean Martin. O último filme que rodaram juntos – Pintores e Raparigas, de Frank Tashlin, película de 1955, o mesmo ano em que Damn Yankees estreou na Broadway – é uma obra-prima do género, com a vantagem acrescida de incluir uma esplendorosa Shirley MacLaine, então a dar os primeiros passos no cinema.
Dez anos depois, sempre em registo de comédia, o actor nascido com o nome de Joseph Levitch a 16 de Março de 1926, em Newark, Nova Jérsia, protagonizou um dos raros filmes que me fizeram rir até às lágrimas: Boeing, Boeing, hilariante longa-metragem sobre troca de identidades realizada por John Rich em que Jerry se revelava no auge das suas magníficas capacidades como comediante.
Mas talvez o seu melhor filme tenha sido afinal um drama: O Rei da Comédia, de Martin Scorsese (1983), ao lado de Robert de Niro. A Academia de Hollywood podia e devia ter-lhe dado um Óscar por esse trabalho que desmontava com implacável lucidez os frágeis mecanismos do sucesso televisivo. Nada feito: os académicos costumam torcer o nariz a actores oriundos do reino da comédia, esse género que teimam em considerar menor. Pelo mesmíssimo motivo, nem um gigante como Chaplin conseguiu uma estatueta com clássicos como Luzes da Cidade ou O Grande Ditador.
Naquele dia, acabei por trocar o autógrafo de Jerry Lewis pelo de Suzanne Vega, que actuava a curta distância, na Virgin, também em Market Street. Improvisando um recital com uma simples viola na mão e um ar doce, quase tímido, como se pedisse desculpa pela súbita fama de que gozava.
Confesso: gosto de ver o meu nome escrito por ela na dedicatória que me deixou no disco Nine Objects of Desire, que tem uma canção deliciosa: World Before Columbus, com uma letra que rapidamente memorizei: "If your love were taken from me / Every color would be black and white / It would be as flat as the world before Columbus / That's the day that I lose half my sight // If your life were taken from me/ All the trees would freeze in this cold ground / It would be as cruel as the world before Columbus / Sail to the edge and I'd be there looking down."
Mas ainda hoje me arrependo de não ter esperado antes por Jerry Lewis à porta dos actores no Golden Gate.
 
Jerry Lewis vai receber esta noite - com inteira justiça - um Óscar honorário em Hollywood.
 
 
Texto publicado no Corta-Fitas e agora reeditado