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Delito de Opinião

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 29.05.23

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Livro quatro: Biblioteca Pessoal, de Jorge Luis Borges

Reedição Quetzal, 2023

155 páginas

 

O último livro em que Jorge Luis Borges trabalhou, pouco antes de falecer, foi este guia dos seus gostos literários mais marcantes que funciona como bússola para o leitor comum. «Uma biblioteca de preferências», como salienta o autor no breve prólogo. Convicto, como havia escrito anos antes, que «todas as coisas do mundo conduzem a um encontro ou a um livro.»

Passam por aqui alguns clássicos, como seria de prever. Obras como As Mil e uma NoitesAs Viagens de Gulliver, a EneidaOs Nove Livros da História, de Heródoto, A Descrição do Mundo (Marco Polo), A Vida Amorosa de Moll Flanders (Daniel Defoe), Os Demónios (Dostoievski), dois títulos de Quevedo e um de Thomas de Quincey. Mas o século mais representado é aquele em que Borges (1899-1986) ganhou fama como um dos gigantes da literatura. Numa lista que privilegia o romance, mas sem excluir o conto (Voltaire, Poe, Kipling, Chesterton, Cortázar), o drama (Ibsen, Shaw, Eugene O'Neill), o ensaio (Oscar Wilde), a filosofia (Henry James, Kierkgaard), a literatura de viagens (Um Bárbaro na Ásia, de Henri Michaux) e até um dicionário de mitos gregos (compilado por Robert Graves).

Borges surpreende os leitores rejeitando escolhas óbvias. Kafka surge com América e não com O Processo; Melville é destacado com três títulos, nenhum deles Moby Dick; Flaubert está representado por A Tentação de Santo Antão em vez de Madame Bovary

Já doente, foi ditando estas notas a Maria Kodama -- algumas tão sucintas que são meras fichas de leitura. A sua morte deixou o projecto amputado: em vez das cem previstas, ficaram 85. Incluindo menções a obras-primas como A Máquina do TempoO Deserto dos Tártaros, Pedro PáramoO Coração das Trevas

Para o leitor português, eis a notícia mais relevante: um dos livros destacados é O Mandarim, do nosso Eça de Queiroz. Devia a editora ter corrigido um grave erro factual: o autor d' O Aleph diz que Eça viveu na China, quando nem sequer andou lá perto. Mas Borges não lhe poupa elogios: garante que «cada oração [dele] foi limada e temperada, cada cena da [sua] vasta obra múltipla foi imaginada com probidade».

Lembra que Eça e Wilde morreram no mesmo ano, 1900. Eram «dois homens de génio», sem favor algum.

 

Sugestão 4 de 2016:

Páginas de Melancolia e Contentamento, de António Sousa Homem (Bertrand)

Sugestão 4 de 2017:

Os Filipes, de António Borges Coelho (Caminho)

Sugestão 4 de 2018:

Não Respire, de Pedro Rolo Duarte (Manuscrito)

Sugestão 4 de 2019:

Dois Países, um Sistema, de Rui Ramos e outros (D. Quixote)

Sugestão 4 de 2020:

Que Nós Estamos Aqui, de João Tordo (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Sugestão 4 de 2021:

Uma História da ETA, de Diogo Noivo (E-primatur)

Sugestão 5 de 2022:

História de um Homem Comum, de George Orwell (E-primatur)

A esquerdalhada

jpt, 29.05.23

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Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

 

 

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.05.23

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Ana Vidal: «Azul-alfazema, azul-Quénia, azul-violeta, azul-lavanda, azul-anil, azul-lilás. Eu chamo-lhe azul-Leonor, como me ensinou a minha avó. A minha cor favorita.»

 

Bandeira: «O Euclides enrola cigarros porque não tem dinheiro para pacotes. Ele não fuma tanto quanto isso, é mais para matar o tédio, mas ainda assim o pai faz pressão para que corte no hábito. Um homem que não vê o filho há dezoito anos porque não pode pagar a viagem torna-se presa fácil para chamadas de atenção à moral. Mas eu estive com o Euclides nas horas de melancolia. Para quase toda a gente no bairro Clemente Vicente, partir é o outro nome da felicidade. “Para Santiago”, diz. “Plantar batatas?”, pergunto eu. “Plantar batatas”, ri-se. “E tu tens de ir também”.»

 

João André: «Quer eu concorde com as afirmações de Soares quer não (e até me parece que politicamente têm uma certa lógica), a verdade é que este tipo de acusações, dirigidas a ambos os partidos do governo (um por chantagear, outro por ser chantageado) não podem passar completamente em branco. É verdade que Soares tem o direito de dizer as asneiras que quiser, mas como antigo presidente e membro do conselho de estado, tem que mostrar mais responsabilidade.»

 

JPT: «De quando em vez encanto-me na televisão. Aconteceu-me há algum tempo com Boston Legal, então repetido e que não conhecera antes. E agora, por razões bem diversas, ando a seguir o Masterchef (USA), porventura também uma repetição no canal Fox. E sigo-o tão afincadamente que até a mim me surpreendo. Não sou um bom garfo, contrariamente ao que a minha barriga filha do sofá e das teclas (e de alguma cerveja) anunciará. E na cozinha nada percebo nem faço, para além de ocasionais ovos mexidos e uma ou outra lata de atum a misturar com Hellmann's. O que me prende ao Masterchef é outra coisa.»

 

Eu: «Há filmes que facilmente se associam a outros. E há filmes que não se parecem com nenhum outro. É este o caso do deslumbrante Lawrence da Arábia, que David Lean rodou durante mais de um ano em quatro países (Reino Unido, Espanha, Marrocos e Jordânia), por vezes sob um sol inclemente, quase insuportável, que chegou a originar queimaduras na pele de alguns actores. Nenhum filme é confundível com este porque a personagem central aqui é o deserto e a magia que dele emana vai-nos guiando de cena em cena ao som da hipnótica partitura de Maurice Jarre. Desde o plano-sequência - um dos mais famosos da história do cinema - que começa na chama do fósforo nos dedos de Lawrence e se prolonga pelo sol que começa a elevar-se, como bola em chamas, iluminando a vastidão das areias arábicas em alegoria à primeira aurora do mundo.»

Leituras

Pedro Correia, 28.05.23

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«A mesma etimologia latina acomuna a palavra meditação e termos como medicina ou medicamento. Meditar é curar o presente de alguma coisa.» 

José Tolentino de Mendonça, in Livro dos Prefácios à Obra de Agustina Bessa-Luís, p. 72

Ed. Relógio d'Água, 2022

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 28.05.23

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Livro três: Malina, de Ingeborg Bachmann

Edição Antígona, 2022

310 páginas

 

Digressão quase dilacerante (incluindo traços premonitórios da trágica morte da autora austríaca) aos abismos da depressão neste romance que caminha sobre uma camada de gelo muito frágil, ameaçando quebrar-se a qualquer momento. "Autoficção", é o que proclamam agora em parangonas, desde o recente Nobel atribuído à francesa Annie Ernaux, como se fosse novidade. Mas não é. Basta lembrar que este livro tem mais de meio século: apareceu em 1971.

Dramaturga, poetisa e romancista, Ingeborg Bachmann - nunca expressamente mencionada no texto, excepto pela inicial do nome, conferindo à obra reminiscências kafkianas - tenta exorcizar fantasmas pessoais, com alusões abertas ou veladas à ocupação da Áustria, primeiro pelos nazis, depois pelos soviéticos até 1955, mesclada na relação de amor-ódio face ao pai, presumível colaborador do ocupante germânico. Na idade adulta encontra dois pais "substitutos" na relação assexuada com homens de temperamentos muito diferentes, Ivan e Malina, mas nenhum será capaz de libertá-la do declive em que se afunda.

Notável, embora de leitura nada fácil, o capítulo dominado pela sucessão de pesadelos: o freudianismo anda aqui à solta. Num segmento do livro intitulado "O Terceiro Homem", em óbvia alusão à novela de Graham Greene também ambientada na Viena do pós-guerra. «Estou na câmara de gás, é o que é, é a maior câmara de gás do mundo e eu estou sozinha dentro dela. Não há defesa contra o gás. O meu pai desapareceu; ele sabia onde estava a porta e não ma indicou, e enquanto vou morrendo, morre também o meu desejo de voltar a vê-lo e de lhe dizer o mais importante.» (Tradução de Helena Topa.)

«Ingeborg Bachmann é a primeira mulher da literatura do pós-guerra no espaço de língua alemã a retratar, através de meios radicalmente poéticos, a continuação da guerra, da tortura, da aniquilação na sociedade e nas relações entre homens e mulheres», sublinha em posfácio outra escritora austríaca, Elfriede Jelinek (Nobel de 2004). Habitante de um Estado de fronteira, habituada a escutar e a falar italiano e esloveno, Bachmann viveu a entrada das tropas hitlerianas na Caríntia, aos 12 anos, como um quadro de horror em estado puro.

Eis um dos objectivos da literatura de qualidade: ajudar-nos a entender melhor a natureza humana, nas suas luzes e sombras. Malina aproxima-se da perturbante Campânula de Vidro (1963), de Sylvia Plath, embora em toada ainda mais agreste e radical. Viagem ao fim da noite sem vislumbre de resgate.

 

Sugestão 3 de 2016:

Política, de David Runciman (Objectiva)

Sugestão 3 de 2017:

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)

Sugestão 3 de 2018:

Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)

Sugestão 3 de 2019:

Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)

Sugestão 3 de 2020:

ABC da Tradução, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Sugestão 3 de 2021:

Intervenções, de Michel Houellebecq (Alfaguara)

Sugestão 3 de 2022:

O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral (Leya)

Pensamento da semana

Ana CB, 28.05.23

Precisamos de mais filosofia nas nossas vidas. Precisamos de aprender a pensar, a recusar adoptar o dogma “só porque sim”, porque é mais fácil, porque a ideia já nos aparece digerida, alinhada, bonitinha e aparentemente com sentido. Precisamos de compreender mais, e compreender melhor. Precisamos de pegar no que vemos, no que lemos, no que ouvimos e tentar isolar o que é verdadeiramente importante do que é só barulho. Olhar por outra perspectiva, e olhar para dentro de nós para perceber se o que defendemos ainda ressoa a verdade ou é só hábito, ou só preconceito.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.05.23

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Ana Vidal: «Parabens a Mia Couto, que acaba de ganhar o prémio Camões. É actualmente um dos meus escritores preferidos de língua portuguesa e o único (repito, o único) que me leva ao sacrifício de ler um livro escrito em acordês. Porquê? Porque, simplesmente, pior do que isso seria não poder lê-lo. Mas é pena que tenha cedido ao AO e ao enganador argumento da uniformização do português. Logo ele, que tem um vocabulário tão próprio e por isso contribui de forma tão expressiva para a diversidade da nossa língua

 

JPT: «Sou um mau leitor de Mia Couto, transporto-me com dificuldade para a sua ficção. E gosto muito dos seus textos de opinião, pelo que diz, pela forma como o apresenta. E nesse âmbito não esqueço nunca o seu extraordinário texto, de sentimento e de coragem, até física, lido no funeral do jornalista Carlos Cardoso, assassinado em 2000. Que mais me fez admirar o homem ali, sempre gentil no seu jeito muito próprio, para além do escritor afamado, reconhecido. E sempre amado pelos leitores, um tipo que não precisa de confrontar quem o aprecia, sinal de grandeza.»

 

Luís Menezes Leitão: «Acho que nunca uma capa do Economist teve uma imagem tão violenta como esta. Mas a seriedade da crise do euro justifica-a plenamente. Os líderes europeus parecem de facto um grupo de sonâmbulos caminhando para o abismo, insensíveis a tudo o que se passa à sua volta. Mas o mais chocante na imagem nem é o passo decidido dos que caminham à frente, liderados por Merkel e Draghi. O que mais me perturba é ver no canto direito Durão Barroso e Passos Coelho, irmanados e cabisbaixos, seguindo os líderes do grupo como cordeiros no caminho do suicídio.»

Centenário

Pedro Correia, 27.05.23

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«As dificuldades são também um desafio. Não têm de ser sempre um obstáculo.»

Henry Kissinger, The Economist (Maio de 1923)

 

Viveu muito, leu muito, viajou muito, conheceu muito.

Ensinou muito - e continua a fazê-lo, com plena lucidez intelectual, neste dia em que celebra cem anos.

Henry Albert Kissinger, nascido a 27 de Maio de 1923 na Baviera, fugido com os pais do regime nazi, refugiado em Nova Iorque aos 15 anos. Em 1943, naturalizou-se cidadão americano. Serviu no exército dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Escapou à morte, mas o sistema totalitário tocou-o de perto: 13 dos seus parentes sucumbiram no Holocausto.

Admirado, invejado e detestado em partes iguais, pontificou nas administrações Nixon e Ford entre 1969 e 1977. Primeiro como conselheiro da Segurança Interna, depois como secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia governamental. No auge do caso Watergate, chegou a ser ele a segurar no leme. Enquanto rasgava horizontes na política externa norte-americana: liderou o degelo diplomático com a República Popular da China ao avistar-se com Mao Tsé-tung, levou Washington a substituir os soviéticos como força dominante no Médio Oriente ao assumir-se como interlocutor entre israelitas e árabes, negociou a limitação de armas estratégicas com Moscovo em plena Guerra Fria. 

 

Doutorou-se com uma tese sobre Metternich (1773-1859), príncipe da diplomacia no império austríaco, expoente máximo da doutrina realista contra os idealistas, responsáveis por tantos conflitos bélicos.

Nos anos 50 e 60 foi um dos mais famosos professores em Harvard, onde leccionou Ciência Política antes de rumar aos palcos mundiais como comandante norte-americano para os assuntos externos. Com várias sombras entre muitas luzes, incluindo o apoio activo às ditaduras de Pinochet no Chile e de Suharto na Indonésia (dando cobertura à invasão de Timor em 1975) e a sua falhada visão de um Portugal mergulhado no comunismo em 1975, útil como «vacina para a Europa». Ao contrário do que previa, os comunistas foram derrotados aqui. Enquanto ganhavam terreno em África e no Sueste Asiático: o Nobel da Paz que recebeu em 1973 pelos acordos de Paris anteriores à retirada norte-americana do Vietname ainda suscita polémica.

Facto inegável: foi um dos mais brilhantes intelectuais que trabalharam nos últimos 60 anos na Casa Branca. Após abandonar funções públicas, tornou-se consultor de monarcas, presidentes e primeiros-ministros. Já nonagenário, continuou a percorrer o mundo: só a pandemia, em 2020, o reteve na sua casa rural no Connecticut. Mas ainda frequenta regularmente o seu escritório, no 33.º andar de um edifício art déco em Manhattan. E continua a publicar livros. Tem dois muito recentes. Um sobre inteligência artificial (tema que o fascina e preocupa), outro sobre seis políticos que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher (Liderança, já com edição portuguesa da Dom Quixote).

Do antigo Presidente francês, cita com frequência uma frase emblemática sobre comando político: «Assumir riscos constantes numa perpétua luta interior.»

 

Em recente entrevista ao Sunday Times, pronunciou-se sobre a invasão russa da Ucrânia. Elogiando Zelenski: «Não há dúvida de que cumpriu uma missão histórica.» E criticando Vladimir Putin: «Chefia um país em declínio e perdeu o sentido das proporções nesta crise.»

Judeu, aos 9 anos o pequeno Heinz (só viria a chamar-se Henry na América) viu Hitler ascender ao poder no seu país natal, onde em menino adorava jogar futebol. Nem o exílio forçado nem o incêndio da Europa que testemunhou ao vivo diminuíram o proverbial optimismo que muitos lhe reconhecem. Mas vai advertindo contra os sinais de crescente desagregação da ordem mundial que imperou nas últimas três décadas: «A segunda Guerra Fria será ainda mais perigosa do que a primeira.»

Um aviso que deve ser levado a sério. Vem de quem sabe mais e viu muito mais do que qualquer de nós.

Blogue da semana

Pedro Correia, 27.05.23

Confesso: gosto imenso de discos de vinil. Costumo até comparar os blogues a estes discos. Salvaguardadas as devidas distâncias, são ambos produtos vintage. Mesmo que pareçam passar de moda, isso nunca verdadeiramente acontece. 

Vem isto a propósito da minha escolha para blogue da semana: Gira-Discos. Com preciosas informações e curiosidades sobre muitos discos das nossas vidas.

Para ler e ouvir em simultâneo. Espero que apreciem tanto como eu.

A Carris Metropolitana

jpt, 27.05.23

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A Carris Metropolitana é uma complexa iniciativa, agregando transportes rodoviários em torno da grande Lisboa. Ao que me constou foi atribuída por um concurso público, ficou nas mãos de empresa espanhola que terá adjudicado este negócio a uns israelitas - talvez seja verdade, talvez não. Consta que importaram dezenas de motoristas caboverdianos, por défice de profissionais habilitados que para esta nova empresa quisessem trabalhar. Enfim, depois de uma longa gestação, na articulação inter-municipal, a empresa (julgo que criada para o efeito) começou a operar. De imediato surgiram inúmeras queixas da população sobre o seu funcionamento e planificação de trajectos - ou seja, e em linguagem mais apropriada à Margem Sul do Tejo, a mão-de-obra contestou como os municípios os conduziam até à labuta diária ao serviço do patronato, público ou privado.

Dito isto: passado um ano de funcionamento abeiro-me de um autocarro que me leve a sul do Tejo. Na página da empresa os horários estão afixados. Tal como estão nas paragens da linha do autocarro 4710. Mas a empresa alterou os horários sem que tenha modificado a informação digital e física, descurando-nos. Assim em vez do anunciado transporte das 12.30 agora há um às... 14.30! Duas horas de espera. 

Eu perco assim uma, consabidamente excelente cachupa, à qual me dirigia. Outros perderão o que bem sabem. Todos perdemos algo. Tempo, pelo menos. 

Os autarcas, diante desta inaceitável arrogância da empresa a quem adjudicaram este serviço, protestarão que nós clientes (e não utentes, como nos querem desvalorizar) temos a mania de protestar por tudo e por nada. Os donos da empresa continuarão a lucrar, os administradores a serem tonificados com bons bónus. 

E nós, povo, que nos lixemos. Em 2023. Como sempre até agora.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 27.05.23

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Livro dois: O Plantador de Malata, de Joseph Conrad

Edição Sistema Solar, 2023

123 páginas

 

Novela nebulosa, percorrida por uma aura de mistério. Como tantas vezes acontece com as obras de Joseph Conrad (1857-1924), um dos maiores estilistas da língua inglesa - que não era o idioma materno deste polaco nascido na Ucrânia na condição de súbdito do império russo e reconhecido como cidadão britânico só em 1886, no auge da sua carreira na marinha mercante que o levou a navegar em diversos mares do globo. Essas viagens por alguns dos lugares mais remotos do planeta, que foi fazendo até aos 35 anos, tornaram-se matéria-prima essencial da sua ficção literária. 

O Plantador de Malata - publicado inicialmente em 1915, num volume de quatro contos e novelas sob o título Within the Tides [Dentro das Marés] - confirma Conrad como hábil criador de atmosferas esotéricas, capaz de transformar vastos espaços físicos em labirintos opressivos, tornados espelhos da natureza humana. Do rio cheio de sinistros augúrios n' O Coração das Trevas à exasperante calmaria de Linha de Sombra, passando pelo vento demencial que ameaça corpos e espíritos em Tufão

Aqui somos conduzidos a uma pequena ilha plantada nos confins do Oriente, na fase culminante do império colonial britânico, povoado de gente desenraizada - uns em busca das emoções fortes sugeridas por aquelas paragens exóticas, outros para se reecontrarem ou perderem de vez. Parece ser o caso do enigmático protagonista, Geoffrey Renouard, proprietário da plantação a que o título alude - coleccionador de segredos que se apaixona pela mulher errada no momento mais inoportuno. Logo ele, que «já tinha vivido o suficiente para reflectir e compreender que os actos, as perspectivas e até as ideias de um homem podem estar muito abaixo do seu carácter».

Pessimista, depressivo, descrente na miragem do "progresso" que iludiu tantos contemporâneos naquele final do século XIX, Conrad legou-nos uma literatura que resiste à prova do tempo. Mesmo em obras aparentemente menores. Como em qualquer outro dos seus livros, prevalece aqui a linguagem elegante e requintada, neste caso com uma vantagem suplementar: a irrepreensível tradução de Aníbal Fernandes, que também assina o prefácio.

 

Sugestão 2 de 2016:

Nada, de Carmen Laforet (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2017:

Singularidades, de A. M. Pires Cabral (Cotovia)

Sugestão 2 de 2018:

Deuses de Barro, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d' Água)

Sugestão 2 de 2019:

A Língua Resgatada, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2020:

Três Retratos - Salazar, Cunhal, Soares, de António Barreto (Relógio d'Água)

Sugestão 2 de 2021:

Presos por um Fio, de Nuno Gonçalo Poças (Casa das Letras)

Sugestão 2 de 2022:

Primeira Memória, de Ana María Matute (Narrativa)

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 27.05.23

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Hoje lemos: Mário Zambujal " A Crónica dos Bons Malandros"

“Linhas paralelas que não tardaram a encontrar-se porque a vida não é assim tão geométrica.”

Passagem a L-Azular. Interfere com o conceito geral da criação. Deveria ler-se: "A nossa vida não é geometria nem é verdadeiramente nossa para calcular. Não escolhemos fazer a admissão e muito menos o check-out. Temos licença para viver e até essa poderá ser revogada a qualquer momento. É por isso que a vida é tão preciosa e é importante vivê-la bem, nos tempos de ouro e nos tempos de lixo".

Há de convir que o ouro não se come, não se bebe, não agasalha nem consola pela textura, e que o lixo, com vontade e paciência, tem sempre algum modo de ser reciclado. Um bom malandro é um bom reciclador. Mestre em paralelismos intersectados, consegue reciclar bosta em erva de cheiro e mostrar ao país que continua a ser um ás e que só não vê quem sofre de miopia progressiva. Aguardo o desfecho da JMJ, e o sequente acto de contricção, em que o país pedirá desculpa e indemnizará a igreja pela inépcia no tratamento de um acontecimento único. Após estes acertos, o malandro poderá mudar tranquilamente da esquina nacional para outra mais europeia. É o que os malandros fazem, mudam de esquina.

(Imagens Google)