A história começa na vila medieval de Aljubarrota. As suas ruas estreitas e tortuosas são delimitadas por casas que ali foram construídas há muitos e muitos anos, algumas serão até anteriores à nacionalidade. Dizer que aquelas casas, por serem anteriores ao Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) instituído em 1951, estão dispensadas de licença de utilização, não explica quão antigas são.
É bastante provável que quando foram lavradas as inscrições no registo predial os nomes que identificavam as ruas não fossem unânimes ou oficiais e isso explica que a Certidão Predial de uma delas, a que nos traz aqui, a identifique como estando localizada na Vila Lado Sul. O número de polícia é uma outra modernidade, pelo que o que ali conta é a descrição dos confinantes.
Avançando umas boas décadas, a voluntariosa Junta de Freguesia (que até à agregação de 2013 eram duas) quis mostrar trabalho e decidiu que aquela rua deveria passar a ser conhecida por Rua Mosteiro de Alcobaça. Ao contrário do que o nome possa indicar, a rua é curta e esconsa, onde mal caberia um dos lados do Claustro do Silêncio. Mas isso não conta para o caso.
Saltando vários detalhes alheios ao propósito deste texto, num certo dia este vosso escriba dirigiu-se ao serviço de águas do Município de Alcobaça para pedir a ligação à rede e a instalação do respectivo contador. A zelosa funcionária avaliou compenetradamente os documentos que identificavam o imóvel. Subiu os cantos da boca e esboçou um sorriso torcido.
- Olhe que este prédio não existe.
- Como?
- Não tenho aqui no computador nenhuma Rua Vila Lado Sul.
- Sim, a rua agora chama-se Rua Mosteiro de Alcobaça.
- Pois pode ser, mas esta Certidão descreve um imóvel localizado numa rua que não existe.
- Eu sabia! - disse eu num rasgado sorriso.
- Sabia? Sabia o quê?
- Sabia que não ia conseguir resolver o assunto à primeira! Nos serviços públicos, há sempre uma alínea, um capítulo ou um compêndio contra mim.
Rir dos percalços com que se tem de lidar nos serviços públicos é uma maneira de tentar salvaguardar alguma sanidade mental. Pelo que tenho visto, sorrir, ou mesmo gargalhar, nestas horas gera sempre alguma surpresa aos funcionários, que estão muito mais habituados a lidar com resmungos e palavrões.
- Pois não é preciso ficar assim! Até pode ser que esteja enganado e eu consiga resolver o assunto! - respondeu quase despeitada.
- Sim. Realmente se sair daqui com o contrato da água assinado, estava eu enganado e a senhora certa.
Sem mais conversa a zelosa funcionária pegou no telefone. Poucos minutos e duas chamadas depois, desligou.
- Está com sorte que já consegui confirmar com os serviços técnicos. A rua é a mesma e podemos fazer o contrato.
- Epá! Com essa é que eu não contava! E eu a pensar que era só em casa que eu nunca tinha razão.
Avançou-se então para as normais formalidades do contrato de fornecimento de água que foram despachadas em poucos minutos.
- Agora vai fazer assim: vai aos serviços técnicos e pede uma certidão de localização do imóvel. Quando lha entregarem, passa cá para eu tirar uma cópia e juntar a este processo que fica aqui a aguardar. Vai precisar dessa certidão também para ir à conservatória para actualizar a descrição do registo. Está a ver que isto até é simples!
- Realmente tem razão. Passe bem e obrigado.
Pensei para mim que a psicologia invertida não funciona apenas com os adolescentes.
Menos de duas horas depois, e já aliviado de 20 euros pela dita certidão de localização, dei mais um assunto por iniciado. Garantiram-me que em menos de um mês iria ser avisado de que já podia ir levantar o documento. A futura alteração da descrição do imóvel na Conservatória iria acarretar mais esperas e custos. Nada que não me leve a voltar a rir, quiçá a bandeiras despregadas, em frente a um ou mais funcionários.
No caminho para casa, dei por mim a pensar que se naquela rua existissem 10 prédios com 10 fracções cada, este processo iria ser repetido 100 vezes e os serviços municipais iriam arrecadar 2000 euros em certidões de localização. Mais tarde seriam efectuadas 100 alterações às respectivas descrições no Registo Predial.
Veio-me este episódio à memória após as garantias de reforma do estado dadas por Luís Montenegro na sua tomada de posse.
Os serviços do estado exigem aos cidadãos documentos que são emitidos pelo próprio estado. Na sua labuta entre repartições e postos de atendimento, é banal ter de ir ao estado pagar por certidões e comprovativos, para então as levar a outro departamento do mesmo estado. Quando um cidadão recorre aos serviços públicos, sem dar por isso, torna-se num carteiro que, em vez de auferir de um salário, oferece o seu tempo e ainda tem de pagar pelas mensagens. Há uns tempos, um Einstein da burocracia inventou as mensagens temporárias. A validade dos códigos de acesso às várias certidões, que só para respirar é que ainda não são obrigatórias, foi um rasgo de genialidade. Quem teve a ideia deveria receber o prémio Nobel da Infâmia Burocrática. O cheque de 10 milhões de Coroas Suecas, que normalmente acompanha esse galardão, deveria ser substituído por 10 milhões de insultos, repetidos em 10 em 10 minutos.
Ofereço uma ideia. Em vez de digitalizar a burocracia, o estado devia recorrer àquela coisa chamada rede informática. Dizem-me que o blockchain garante a segurança e permitiria poupar anos de vida aos portugueses. Mas sabemos que existe demasiada gente a viver destes expedientes e por isso é impossível que o Governo tenha condições para um 25 de Abril deste calibre. Resta-me recordar Ruben A, quando disse que "em Portugal o óbvio é que é difícil". Eu, estóico, cumprirei com empenho a sentença de me rir às gargalhadas de cada vez que tenho de me armar em carteiro.