Sou lisboeta. Talvez não de gema, porque os meus pais vieram de outras regiões do país; mas nem eles nem os meus avós tinham casas “na terra”, por isso criaram raízes na capital. Lisboa é a cidade onde tenho passado grande parte da minha vida e reclamo-a como minha, mesmo que sem exclusividade. Sou magnânima, não me importo de a partilhar com os outros.
A minha infância foi essencialmente passada num bairro periférico relativamente moderno para a época, onde os meus pais tinham uma loja de dimensão razoável com uma ampla zona privada, que nos permitia fazer ali a nossa vida diária e só regressarmos a casa, nos subúrbios, à noite. Estando na cidade, era quase como se vivesse numa aldeia em que todos se conheciam. O segundo pequeno-almoço era tomado sempre na mesma leitaria, os livros e as revistas comprados na única papelaria que existia naquela rua (ainda tenho exemplares da revista Tintin dessa época), o pão e os bolos na grande padaria com fabrico próprio quase ao lado da nossa loja, as fotografias tipo passe sempre tiradas pelo mesmo fotógrafo. Havia uma loja para cada coisa, e os donos e empregados eram uma espécie de círculo familiar alargado. E quando íamos à Baixa, ou a qualquer outro sítio que fosse mais no centro da cidade, dizíamos que íamos “a Lisboa”. Outros tempos e outros hábitos.
No final da minha pré-adolescência, a minha mãe decidiu regressar à sua profissão anterior e passou a trabalhar no centro de Lisboa. Também eu já mais autónoma, a minha área de vivência citadina começou a alargar-se: a Avenida da Liberdade era a meca dos cinemas, o Chiado (pré-incêndio) a zona preferida para as compras. Em São Bento visitava umas primas do lado materno, geralmente depois das aulas no Instituto Britânico. Cada ano e nova experiência acrescentaram bairros à minha vida lisboeta. Os cafés eram o ponto de encontro para os convívios, cada grupo de amigos tinha o seu local favorito. Vagueei do Calvário a Campo de Ourique, da Praça de Londres à de Alvalade, da Rua do Ouro às Avenidas Novas, da Cidade Universitária a Benfica, e mais tarde pela obrigatória vida nocturna do Bairro Alto – já então muito diferente do primeiro contacto que com ele tinha tido numa tarde de Verão, modorrento e intimidante, com personagens ocasionais que olhavam fixamente (ou assim me parecia) a adolescente meio perdida que ia fazer um exame ao Colégio dos Inglesinhos. Lisboa ia mudando aos poucos.
A vida profissional manteve-me em Lisboa, primeiro de forma intermitente, depois com constância. Aportei ao Chiado há mais de 20 anos, tempo suficiente para assistir à metamorfose contínua do bairro. Se um gato tem sete vidas, o Chiado faz-lhe concorrência, que eu já lhe conheço pelo menos três ou quatro. O Chiado dos meus tempos de adolescente tinha o Grandella e os Armazéns que davam nome ao bairro, com os seus elevadores emblemáticos, e a Jerónimo Martins ainda era só Casa, não Grupo. A loja da Ana Salazar era o supra-sumo da modernidade, com as suas montras minimalistas onde pairavam modelos sempre arrojados para a época. Na Brasileira ainda não havia a escultura do Pessoa. O poeta Chiado estava sozinho no meio do largo, sem a companhia da boca do Metro. Os carros passavam livremente pela Rua do Carmo, e o elevador de Santa Justa era operado pela Carris como qualquer outro equipamento – o passe era válido para subir e descer a qualquer hora, raramente havia filas, e qualquer um podia ir ver Lisboa da sua varanda. Era a maneira mais rápida e cómoda de ir da Baixa ao Largo do Carmo. Num dia de Agosto, ao passar de manhã a pé pela Rua da Prata, o fumo escurecia o céu. Só soube o que tinha sucedido quando cheguei ao escritório onde trabalhava na altura, na Praça da Figueira. Foi o início de um longo período negro para o Chiado, que ficou deserto durante anos. Por vezes passava por lá, a caminho de qualquer outro sítio, e era como se estivesse num filme pós-apocalíptico. O cenário era desolador: paredes negras, prédios vazios, lojas fechadas, apenas uma ou outra pessoa de passagem, como eu. Mesmo as áreas que tinham ficado a salvo do fogo se ressentiram. O bairro parecia ter perdido a sua alma: as pessoas em movimento.
Anos e anos em obras que pareciam não ter fim, os edifícios esventrados do Chiado foram sendo recompostos a pouco e pouco. Mais modernaços, com um ar mais “clean”, e na sua maioria com outros negócios. Ainda assim, a vida demorou a voltar. Durante muito tempo, o Chiado foi quase só de quem lá trabalhava ou morava. Ao cair da noite esvaziava-se, ficava tranquilo; só no Natal, com as iluminações e os mirones, o sossego nocturno era quebrado. As lojas, as que já existiam e outras que foram abrindo, mantiveram-se inalteradas durante vários anos. Nessa altura deixei praticamente de ir fazer compras aos centros comerciais dos arredores. Não precisava, ali tinha quase tudo. À hora de almoço passeava, ia vendo as montras, entrava quando estava à procura de alguma coisa em concreto, comprava se fosse caso disso. Sem pressas. Nas ruas secundárias havia sempre algum prédio em obras, às vezes mais do que um, e era obrigada a percorrer a rua aos ziguezagues, atravessando de um passeio para o outro, como se sofresse de uma crónica indecisão de não saber para onde ir. Se fosse uma remodelação total, os andaimes e tapumes ficavam a fazer parte da paisagem durante largos meses, até anos. O Chiado era um microcosmos da transformação que se alastrava pela cidade.
Distraída na minha vida, demorou algum tempo até perceber que Lisboa estava a tornar-se numa Meca turística. Primeiro foram as hordas de espanhóis na altura da Páscoa; depois o aumento de gente em calções e sandálias assim que o tempo aquecia, e das palavras em línguas desconhecidas ditas por quem passava por mim na rua; até que comecei a ter dificuldade em andar nos passeios ao meu ritmo normal, travada por grupos de turistas caminhando a passo de caracol ou parados a tirar a obrigatória selfie. Esta popularidade súbita criou em mim sentimentos mistos: orgulhosa por perceber que a “minha” cidade (e Portugal, na generalidade) estava finalmente a ter o reconhecimento que merecia, e ao mesmo tempo irritada pela apropriação meio selvática que dela estava a ser feita.
Há seis anos mudei-me para a “província”. São só 65 quilómetros de distância até Lisboa, 50 minutos em auto-estrada; mas neste nosso minúsculo rectângulo encaixado entre Espanha e o Atlântico isso é mais do que suficiente para ser considerado “província”. Continuei a trabalhar em Lisboa, para onde ia todos os dias até que a mudança de hábitos derivante da pandemia me permitiu trabalhar a partir de casa durante a maior parte do tempo. Se naqueles dois anos houve algum sossego na capital, para bem de uns e mal de muitos outros, o regresso à “normalidade” veio exacerbar a tendência pré-2020 de aumento do turismo. E as consequentes mudanças no ambiente da cidade. De repente, tudo me parece estranho. A proliferação de tuk-tuks e motoretas para entrega de comida, a música por todo o lado, as esplanadas cheias a qualquer hora do dia (e às vezes da noite), as ruas a abarrotar de gente, mesmo nos meses de Inverno, as filas intermináveis para as bilheteiras do metro e do comboio, o eléctrico 28 que agora virou coqueluche dos turistas e vai sempre apinhado, com tarifa de bordo a condizer. No Cais do Sodré já não ouço a chilreada dos estorninhos ao entardecer, não sei se por causa do aumento de outros ruídos, ou por terem debandado para algures, afugentados pela agitação humana. As obras “de fundo” multiplicam-se, todas para durarem anos, com tapumes brancos a estenderem-se aqui e acolá por centenas de metros, tapando indiferentemente o que é feio e também o que merece ser visto. As mudanças são tantas e tão rápidas que quando passo por algum sítio aonde já não ia há algum tempo, às vezes mal o reconheço. Habituada ao maior sossego de outras paragens, talvez a estranha agora seja eu.
Só que isto de amar uma cidade é um pouco como amar uma pessoa, com os seus encantos e os seus defeitos, nos dias bons e nos menos bons, quando nos faz feliz ou nos irrita, ou nos desilude. Quando vejo o roxo dos jacarandás em flor e sinto o seu perfume, e o céu se tinge de rosa e laranja ao fim da tarde, quando passo na Praça do Comércio de manhã cedo, ou desço uma rua e o azul brilhante do Tejo espreita lá ao fundo, entre as casas, a zanga esfuma-se e penso na sorte que tenho em estar ali, naquele instante. Lisboa continua a ser a “minha” cidade.