A segunda morte de Raul Solnado
Raul Solnado era uma das raras personalidades unânimes em Portugal. Por mérito próprio, figurava entre os genuínos artistas populares que também eram apreciados pelas chamadas elites. Estava, nesse aspecto, ao nível de Amália Rodrigues - de algum modo sobreviveu à sua própria celebridade, já tornada intemporal ainda em vida, facto ainda mais raro entre nós. Depois dele, sobram poucos no nosso mundo do espectáculo: um Rui de Carvalho, um Carlos do Carmo, uma Simone de Oliveira, um Nicolau Breyner. Vinha do teatro de revista, dos filmes a preto e branco, dos tempos em que televisão e RTP significavam exactamente a mesma coisa. Herdeiro directo dos grandes cómicos de outras eras, como Vasco Santana ou António Silva, jamais se confundiu com qualquer deles: tinha uma voz própria, singular. Que se distinguia mesmo nos filmes menores em que entrou, logo no início da carreira, como O Noivo das Caldas ou O Tarzan do Quinto Esquerdo. E se prolongou por notáveis registos dramáticos, infelizmente a um ritmo muito irregular, como ficou bem patente no melhor dos seus papéis cinematográficos, como inspector Elias Santana n' A Balada da Praia dos Cães, de Fonseca e Costa. Teve ainda, no plano cívico, uma atitude exemplar: antes e depois do 25 de Abril, soube bater-se pela liberdade, sem equívocos de qualquer espécie.
Por tudo isto, é incompreensível que a RTP - que tanto deve a Solnado - não tenha produzido em tempo útil um bom documentário sobre a vida e a obra deste lisboeta da Madragoa que foi um dos nossos cidadãos universais. Pior que isso: é um insulto à memória deste grande actor e dos seus milhões de admiradores que o canal público de TV não tenha guardado nos arquivos as emissões integrais do Zip-Zip, um dos melhores programas de sempre da televisão portuguesa. Ainda pior: é um crime de lesa-património que a RTP tenha apagado todas as emissões d' A Visita da Cornélia, outro célebre programa de Solnado que obteve um enorme êxito em Portugal. O inesquecível intérprete d' A Guerra de 1908 merecia que a televisão pública que agora lamenta a sua morte o tivesse tratado com dignidade em vida. Preservando a memória do seu talento para as gerações que nunca terão o privilégio de o conhecer.