Democracia e candidatos arguidos
Muito se tem falado sobre a inclusão nas listas de deputados e a admissibilidade de candidaturas autárquicas de cidadãos/políticos arguidos em processos-crime. A discussão tem alternado entre um certo moralismo anódino, para o qual um arguido é um condenado, e a aceitação sem recurso do julgamento popular e mediático. Marques Mendes, um dos figurantes da nossa democracia, em determinada altura e enquanto líder do PSD promoveu o princípio de que um arguido não podia ser candidato. Mas até neste caso houve excepções. Se não me falha a memória uma delas foi a de Isabel Damasceno, em Leiria. Por aqui se percebeu que havia arguidos inocentes e outros culpados. Uns de primeira e outros de segunda. O PS também já foi tocado por essa onda. Certo é que os sucessivos escândalos que têm abalado a democracia portuguesa não têm contribuído para uma separação de águas. Os critérios vão e vêm com a corrente. Não tem o mesmo peso ser arguido num processo por falsificação de documentos, burla, corrupção ou branqueamento de capitais ou num processo por difamação a pessoa singular ou ofensa a pessoa colectiva. A condição de arguido apenas tem servido para mascarar e branquear de acordo com as conveniências do momento. A cada opinador o seu arguido, a cada partido o seu critério. Mas o problema tem implicações mais sérias e radica num outro patamar de discussão. Antes de se discutir o que pode ou não pode um arguido na política, seria bom saber que democracia queremos, que partidos nos servem e que gente deve estar na política. Saber se Isaltino Morais se deve candidatar ou se António Preto deve estar nas listas será sempre uma discussão estéril enquanto as condições do exercício da cidadania e da participação política em democracia não forem absolutamente claras para todos. A começar para os eleitores. A justiça pode dar-se ao luxo de não ser transparente, ainda que as consequências sejam graves na sua imagem pública e na confiança dos cidadãos. Os juízes decidem, o Estado paga. De vez em quando lá vem um acórdão uniformizador de jurisprudência, mas para o cidadão comum isso não passa de mais uma bizarria indecifrável. A política não pode dar-se a esses luxos sob pena da democracia se ir esfumando, das suas instituições irem definhando. E não será por os actores se mostrarem preocupados e compungidos com o que vai acontecendo que as coisas mudarão. Tão importante como ter partidos, eleições regulares, competitivas e participadas, é saber com quê e com quem se poderá contar antes do jogo começar. Responder à questão de saber se arguidos podem ou não ser candidatos é tão importante, por exemplo, como saber se é admissível que os presidentes dos governos regionais critiquem as instituições da República nos termos desabridos em que o têm feito e por tudo e por nada. Os tribunais já demonstraram ser irreformáveis e impermeáveis à mudança. Por falta de força, de critérios consequentes e de coragem das instituições democráticas do Estado. Por isso é que já ninguém estranha, e até há quem goze com isso, que o que é verde na 1ª instância se torne amarelo nas Relações e acabe preto no Supremo. Os cidadãos podem ficar vermelhos e, nalguns casos, tesos que isso será coisa passageira. Os sete anos de Isaltino de Morais podem muito bem ter o destino do processo de Tavares Moreira ou do Apito Dourado. É só uma questão de tempo. O absurdo é hoje uma parte importante da nossa democracia. Como já era antes do 25 de Abril e é há muitas décadas do nosso sistema de justiça, que neste particular se tem aprimorado. Num contexto destes, os arguidos servirão sempre como armas na luta política. Os partidos continuarão a ser usados como refúgio de arrivistas e, também, de culpados disfarçados de arguidos. Ou de culpados a aguardarem a constituição como arguidos. A participação ficará cada vez mais pobre, a democracia estará condenada a prazo. A democracia. Não os arguidos que, justa ou injustamente, com culpa ou sem ela, se irão safando. Quem não vir isto também não verá a falência do sistema.