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O terrorismo, sob as suas diversas formas, é um fenómeno que esteve sempre presente na Europa. Se formos a ver bem, o rastilho da I Guerra Mundial é aceso com um acto terrorista. Ao longo das décadas posteriores, o Velho Continente foi assistindo à emergência de vários grupos terroristas, com inspirações ideológicas várias e objectivos circunscritos a uma específica realidade, mas nunca estando em causa a ameaça generalizada a um determinado estilo de sociedade ocidental. Mesmo movimentos terroristas muçulmanos (alguns ligados à causa palestiniana) que surgiram nos anos 70, 80 e 90 tinham nas suas “declarações de guerra” fins muitos bem definidos que pouco ou nada tinham a ver com a destruição do modo de vida ocidental.
A Globalização que ganha força no início dos anos 90 após a queda do sistema bipolar das Relações Internacionais veio tornar o mundo mais igual, mais “flat” (pedindo emprestada uma expressão a Thomas Friedman), mas este movimento acaba por criar um paradoxo. Porque, se, por um lado, vai tornando o mundo cada vez mais interdependente e comunicativo entre os países, culturas e religiões, por outro, vai realçando as fracturas dos diferentes paradigmas de sociedade, criando fricções ou, se preferirmos, os tais “choques” de civilizações de que Huntington falava.
Se é verdade que Huntington identificava zonas geográficas claras de confronto entre civilizações, o terrorismo global fundado por Osama bin Laden acabaria por levar esse “choque” para as ruas de cidades como Nova Iorque, Paris, Bélgica ou Londres. A al Qaeda é a primeira “multinacional” do terrorismo, com “franchisados” em quase todo o mundo, e a partir desse momento vai inspirando cada vez mais seguidores. Os ataques de 11 de Setembro de 2001 a Nova Iorque e a Washington são uma espécie de “apresentação” hollywoodesca ao “mercado”, sendo que já antes a al Qaeda tinha actividade e era sobejamente conhecida das autoridades, mas totalmente desconhecida do grande público e jornalistas. As imagens dos aviões a embater nas Torres Gémeas a sua consequente queda foram de tal maneira impressivas, com quase três mil mortos, que a al Qaeda ganhou a tal notoriedade que pretendia para poder mobilizar, recrutar e inspirar milhares de militantes radicais em diferentes partes do mundo que estavam “adormecidos”. Tudo o resto, nomeadamente o Estado Islâmico, já é uma consequência disso.
Se verificarmos a lista dos principais atentados do terrorismo islâmico na Europa desde 2004, chegamos ao número 642. É o número de pessoas que morreram desde aquele ano até hoje. É certo que a ETA matou mais de 800 pessoas desde a sua fundação em 1959 e o IRA Provisório terá matado cerca de 1800 pessoas entre 1969 e 1997, mas escusado será sublinhar as diferenças evidentes nos tipos de terrorismo em causa e das suas finalidades. Numa análise fria, convenhamos, foram tantas as notícias de mortes em Espanha e no Reino Unido por causa daqueles movimentos e, para lá da comoção momentânea, as pessoas nos vários países europeus nunca sentiram que os seus modelos de sociedade estivessem em causa e muito menos a segurança dos seus estilos de vida. Era um conflito lá “deles”, ou seja, não havia uma sensação de ameaça generalizada na Europa.
Ora, ataques como o de ontem em Manchester resultam de uma guerra generalizada e arbitrária à Europa, infligindo o medo e o receio transversais a todos os seus cidadãos, estejam onde estiver, vivam onde viver. E o pior é se cada cidadão começa a pensar que podia fazer parte daquelas 642 pessoas que morreram nos últimos anos em várias cidades europeias, em locais tão comuns, como um mercado ou uma sala de concerto, e isso condicionar a sua liberdade. Se isso vier a acontecer, é a partir desse momento que o terrorismo começa a vencer.