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Delito de Opinião

Mataram a minha praia

Teresa Ribeiro, 13.06.09

Tal como acontece com certas pessoas, também há lugares que não têm sorte. É esse o caso da Costa de Caparica. Diz o meu pai, que a frequenta desde a adolescência, que até ter sido inaugurada a Ponte 25 de Abril, em 1966, ir a banhos naquele local era um privilégio de algumas dezenas de famílias. Sei também por ele que as dunas enormes que orlavam os quilómetros de areal que vai da Trafaria à Fonte da Telha um dia foram literalmente roubadas dali, abrindo ao mar uma via rápida que, ano após ano, acabou por reduzir as praias que vão de S. João ao centro da vila à miséria que hoje conhecemos.

Autêntico paraíso na Terra, as condições excepcionais da Caparica, com aquele fabuloso areal e uma densa mata acompanhando toda a costa foram, nos anos 50, objecto de um plano urbanístico assinado por Cassiano Branco que só nunca viu a luz do dia porque o lobby da Costa do Estoril receou que a concorrência ditasse o declínio da "linha", indiscutivelmente menos dotada em termos ambientais.

Mas foi já depois do 25 de Abril que acabaram com ela. A Câmara Municipal de Almada nunca perdoou à Caparica não votar PCP. Por mero revanchismo abandonou-a aos patos bravos deixando que ali se instalasse o caos urbanístico, com muitas torres e bairros clandestinos - porque o povo também tem direito a uma casa de férias.

Tal como uma mulher desprezada, a Caparica degradou-se. Tornou-se feia, porca e parola. Mas foi a minha primeira praia e a ela voltei todos os verões da minha vida. Sinto-a, pois, como território meu, como a tia desdentada que embaraça a família mas é do meu sangue. E como não é uma pessoa mas um lugar, tem defesas que eu sempre soube aproveitar. Marcas territoriais, traços fisionómicos em que me fixo para vê-la como quero, defendendo-me do que não quero ver.

Mesmo nas horrorosas praias do centro, pejadas de veraneantes chinelantes, de barriga de cerveja e anel no mindinho, eu tinha os meus redutos, que eram partilhados por quem, como eu, conhecia os segredos da Costa. Havia um barzinho de surfistas, com uns salgadinhos fabulosos, onde me acoitava para apanhar sol. Feito de madeira rangente, com uma esplanada ampla rasgada para o mar, era frágil, despretensioso e risonho como um bar de praia deve ser. Nele juntavam mesas os habitués, formando animados grupos com miúdos a cirandar entre a praia, mesmo em frente, e a arca da Olá.

Há dias fui à Costa. Já não ia lá desde o Verão passado. Subi a Rua dos Pescadores em direcção à praia, como de costume, e alunei em estado de choque numa espécie de unidade fabril. Da minha praia, nem sinais. O fantástico Pólis, a que Sócrates - famoso pelas obras de engenharia que tem assinado - deu orgulhosamente luz verde quando ainda era ministro do Ambiente, acabou com a praia da Caparica.

Tapou o areal da envolvente do que resta das praias do centro com uma pasta castanha que parece macadame, acentuando ainda mais a sua exiguidade, e acabou com TODAS as esplanadas. Dir-se-ia que este plano foi concebido por quem odeia praia. Os restaurantes foram substituídos por pavilhões enormes, fechados e uniformes, num total de 27. Por serem rigorosamente iguais e em forma de caixote, sem qualquer rasgo arquitectónico digno desse nome, lembram os pré-fabricados que costumamos ver nas obras.

Na praia onde eu vi o mar pela primeira vez e tive os meus primeiros flirts de Verão, já não é possível estender as pernas ao sol numa esplanada. Aqueles bunkers têm, em abono da verdade, uma área descoberta, mas que é tão reduzida que só permite que nela se instalem duas filas de mesas para dois. Por isso, nada de grupos, nada de juntar mesas, nada de pernas esticadas, nada de vaivém de miúdos entre a praia e a arca da Olá. Aquilo são varandas, não estão sequer ao nível do pontão. São unidades fabris onde se aviam umas coca-colas. Locais onde gajos grávidos de cerveja e anel no mindinho vão levar as suas gajas a pastar caracóis. Tudo igual, não há escolha possível. O povo vai ali arrotar umas praias e depois segue para a camineta. E é só. Os habitués que alcem. Foram espoliados. Já não há nada ali para ver.

Fiquei em estado de choque. Mataram a minha praia e eu não sabia. Quantos são? Já saquei da pistola. Acho que tenho direito a dar-lhes um tiro. Onde é que eles estão?

 

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