Carta ao João
Fazes cá falta, João.
Deixei de receber os teus telefonemas para trocarmos ideias, entre múltiplas piadas -- novas ideias alternando com velhas histórias de que sempre ríamos, em espiral contínua -- e pistas para valorizar o blogue, este projecto em comum que lançámos e alimentámos com textos de todo o género. Um blogue que concebemos como ponte e não como trincheira. Um dos problemas deste país é haver trincheiras em excesso, aos mais diversos níveis. Convergíamos nessa opinião, como em quase tudo o resto.
As pontes unem, as trincheiras separam -- e tu tinhas o condão de saber unir. Palavras, ideias, pessoas.
Fazes cá falta, João.
Nunca mais recebi as tuas mensagens dando nota de atentas patrulhas à caça das mais inconcebíveis gralhas. O DELITO DE OPINIÃO -- e orgulhavas-te justamente disso -- foi, em grande parte graças a ti, um blogue bem editado desde o início. Porque estavas convencido, e com toda a razão, de que só ficaremos à altura de receber os melhores leitores se soubermos proporcionar-lhes os melhores textos. Limpos de erros.
Tocava tantas vezes o telefone e eras tu: "Não achas que aquele título está mal partido?"; "nem todos aprenderam ainda a justificar os textos para evitar que uma das colunas fique desalinhada"; "as etiquetas só funcionam enquanto servirem para agregar posts, por isso terão de ser em número limitado"; "demasiadas linhas de intervalo ou fotos gigantescas tornam o blogue feio".
Pertencias a uma espécie rara: eras um perfeccionista, abominavas a vulgaridade, só te contentavas com o melhor. No estilo, no grafismo, no respeito pelo idioma que é património de todos. Nunca conheci um copy desk tão eficaz como tu -- e este blogue deve-te muito também por isso, desde a primeira hora.
Mas deve-te mais. Deve-te o sentido de humor, a frase inspirada e inspiradora, a capacidade de mobilizar até pessoas que nem chegaste a conhecer. Não regateavas uma palavra amiga, não deixavas um texto sem comentários, não toleravas que alguém desconsiderasse "as nossas meninas", não esquecias um aniversário (o teu último texto por cá, sintomaticamente, foi um postal de aniversário).
Lembro-me daquela vez que vieste de propósito dos Açores, para um jantar de blogue, trazendo pequenas lembranças que foste distribuindo pelos colegas. Vieste outra vez, para um animado jantar pré-natalício que funcionou como primeiro ponto de encontro para vários de nós, e era espantoso testemunhar a tua capacidade de fazer novos amigos a partir da mais simples troca de palavras.
Pensei em ti há dias quando aqui escrevi que devíamos "adquirir o talento de unir o que vemos fragmentado, de congregar o que está disperso". Esse era um dom que tinhas -- um entre vários outros.
E até por isso foi ainda maior o vazio que sentimos quando partiste, há precisamente um ano.
E é também por isso que fazes cá imensa falta.