Postal de aniversário
Ao nosso leitor José Sejeiro
Num blogue onde até hoje já foram publicados quase 200 mil comentários, é natural que muitos tenham marcado cada um de nós. A mim nenhum marcou tanto como um texto de poucas linhas, inscrito já não sei em que caixa de comentários, da autoria de uma criança ainda, ou de uma pré-adolescente, que só aqui apareceu uma vez.
Dizia essa pequena mensagem que o bisavô da menina, por irreparáveis dificuldades de visão, já não podia comentar mais aquilo que por cá ia sendo escrito. Limitar-se-ia a escutar se alguém lesse para ele, designadamente esta bisneta. Mesmo assim, não queria -- ao menos por esta via -- deixar-nos uma última palavra de incentivo e saudação.
Recordo sempre este textinho, que tanto me comoveu, como expressão evidente daquilo que ainda há dias aqui mencionei como um dos principais atributos da blogosfera, que tantos vêm condenando antecipadamente ao ostracismo: é um poderoso exercício contra a solidão. Porque aqui se comunica, aqui se forjam elos, aqui se estabelecem amizades até com quem pensa de maneira muito diferente da nossa, aqui adquirimos a certeza de que estamos menos isolados. Contra a iniquidade, contra a depressão, contra o devastador silêncio que alastra como um cancro nas sociedades contemporâneas, onde demasiada gente não consegue ouvir mais do que o eco enfraquecido da própria voz.
Aquele senhor, bisavô da menina que nos escreveu, foi uma presença constante das nossas caixas de comentários nos primeiros dois anos de existência do DELITO DE OPINIÃO. Assinava José Sejeiro (ou José Sejeiro Velho, num saudável assomo de auto-ironia) e aos poucos ia-nos contando algo de si: vivia num daqueles estabelecimentos que se convencionou chamar de "lar da terceira idade", evitava consumir as energias que lhe sobravam a falar exclusivamente de doenças com quem o rodeava e aprendeu a utilizar o computador para continuar a rasgar horizontes apesar da sua precária condição física. Uma das suas mensagens chegou a ser eleita comentário da semana -- rubrica que é um dos mais persistentes traços de originalidade deste blogue -- e vários de nós travámos com ele estimulantes e saborosos diálogos.
Nunca mais aqui houve notícia de José Sejeiro. Mas o registo das apreciações que nos deixou permanece, inapagável. Como memória viva de um momento irrepetível do DELITO, que hoje festeja cinco anos de existência fiel ao mote aqui traçado no primeiro texto do primeiro dia: este é um blogue "aberto a comentários, que pretende acolher e estimular, na convicção de que a interactividade com os leitores é indissociável deste meio de comunicação".
Não sei se o senhor que assinava José Sejeiro Velho -- alguém que nunca cheguei a conhecer pessoalmente -- se encontra ainda connosco. Gosto de imaginar que sim, e que a bisneta lhe continua a ler textos nossos. Mas, esteja onde estiver, é a ele que dedico este postal de aniversário. Fazendo questão de acentuar que o DELITO DE OPINIÃO prosseguirá a sua trajectória, já documentada em 22.550 textos de quatro dezenas de autores.
Continuaremos. Mesmo que alguns, sempre prontos a renegar a moda de anteontem para aderirem à moda que renegarão depois de amanhã, insistam em proclamar que os blogues já eram, que não adianta remar contra a maré, que isto de procurar escrever prosas que ultrapassem os 140 caracteres é coisa do passado.
Há dias prestei aqui homenagem a 242 resistentes do bloguismo que fui lendo em 2013, com maior ou menor regularidade. Chega agora a vez de prestar também homenagem aos restantes, muitas vezes sem nome próprio, muitas vezes sem outra voz. Refiro-me aos nossos leitores, aos que chegam cá e nos deixam uma palavra de crítica ou elogio nas caixas de comentários.
A todos eles, que simbolizo naquele senhor que só deixou de nos ler quando deixou de ver, endereço hoje uma calorosa palavra de gratidão.
Estes cinco anos passaram num instante. Mas temos muito mais a dizer. E aqui continuaremos, ao encontro de novos e velhos leitores, sabendo resistir a caprichos da moda e a ventos adversos.
Combatendo o silêncio, mesmo quando surge mascarado de palavras. Fazendo deste blogue um exercício contínuo de resistência. Contra a apatia e a solidão.