Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

O tempura, o mores

Rui Rocha, 03.01.14

Perguntamo-nos, desde tempos ancestrais, sobre o momento determinante para a humanidade. Terá sido a descoberta do fogo ou a invenção da roda? O século passado, não por acaso o do automóvel, parecia ter apresentado a resposta definitiva. O proclamado fim da história aparentava coincidir com a fase derradeira da evolução da espécie. O longínquo homo erectus teria levantado os membros dianteiros com um único propósito: o de milhares de anos depois os utilizar para assinar um pedido de empréstimo no BES e segurar um volante de uma viatura. Tudo corria, é um dizer, sobre rodas. Acontece que não só a história não acabou como Detroit faliu. E aquilo que parecia um triunfo claro e duradouro da roda não foi mais do que um episódio destinado a perder-se na poeira do tempo. O século XXI, sabemo-lo agora, trouxe a vitória inexorável do fogo. Isto é, da descendente directa do fogo que é, obviamente, a cozinha. E do seu principal protagonista: o chef. O chef  é o herói da contemporaneidade. As crianças já não brincam com carrinhos. Mas os seus olhos brilham quando lhes oferecemos um trem de cozinha. E já não querem ser cowboys, bombeiros ou astronautas quando forem grandes. Querem ser chefs. De cozinha. O adolescente do século XXI não precisa de sacar cavalos na lambreta ou de fazer piões com o carro do pai para impressionar as raparigas. Em contrapartida, será rigorosamente avaliado pela destreza com que pica o alho ou parte a cebola. Sejamos claros. O sucesso nos dias que correm não é revelado por teres uma bomba equipada com pneus Goodyear. O acesso ao clube dos eleitos depende agora de teres, ou não, uma estrela Michelin. Nos States, o status de ter um Corvette foi substituído pela forma como recheias a courgette. Na Europa, mais importante que teres um Ferrari, é a forma como preparas os fusili. A própria imagem do chef evoluiu. A pança do saudoso Chefe Silva já não cabe na cozinha do nosso tempo. Tão importante como temperar o anho de véspera é ter uma barba de três dias. Depilar as sobrancelhas e dominar a técnica de confecção das castanhas piladas são a cara e a coroa de um mesmo destino. O chef deve ser criativo, controlado, inspirador, sonhador, consistente, contido, desafiador, rebelde, original, tudo ao mesmo tempo. E  ter uma farda impecável, um jogo irrepreensível de facas com cabo preto e a bancada a brilhar. Note-se que a emoção estava outrora reservada ao cliente. Se as coisas corressem bem, era o cliente que comia e chorava por mais. Agora, é o chef que deve ser emotivo. O prato evocará memórias e lançará, simultaneamente, desafios em direcção ao futuro. Não é confusão. É fusão. O chef pode por isso derramar uma lágrima, se as memórias a isso obrigarem. Ponto é que não seja por causa da cebola. Claro que a confecção de um prato sublime, de um risotto, de uma ameixa confitada, de uma espuma agridoce, de uma crosta estaladiça, é um processo longo e trabalhoso. Todo esse trabalho, todavia, de nada vale, e o chef sabe-o, se falhar o momento fulcral: o de empratar. O homem do século XX devia ter umas noções básicas de mecânica para não ficar mal. Trocar um pneu, mudar umas velas, eram conhecimentos de que podia depender a reputação de qualquer um. No século XXI, a fasquia subiu. O homem contemporâneo pode não saber fazer mais nada, mas deve saber empratar. O empratamento é o momento coolminante de toda a obra coolinária. O sentido último da presença do homem no mundo pode muito bem ser empratar. É como se séculos e séculos de interrogação filosófica se sintetizassem num prato e no que pomos nele. Empratar é, pode dizer-se, um emprativo categórico. Mas se esta é a resposta, é urgente mudar a pergunta. De nada adianta, de agora em diante, interrogarmo-nos sobre de onde vimos e para onde vamos. Vimos, sabemo-lo, das cavernas e, antes disso, das profundezas dos cursos de água ou, para outros, de Adão e das suas costelas. E vamos, com total segurança o podemos dizer, para um curso de coolinária. Aprender a temperar costeletas e a empratar. A evolução da espécie conclui-se no conhecimento profundo das especiarias. A pergunta que faz agora sentido é sobre textura: consegues senti-la, Faustino? É óbvio que nos diferenciámos dos australopitecos há milhões de anos para chegarmos a ser chefs. Ainda que não o pudéssemos antecipar, era este o maravilhoso destino que estava guardado para o homem no dia seguinte àquele em que foi declarado pós-moderno. Resta-nos, portanto, enfiar o barrete.

39 comentários

Comentar post

Pág. 1/2