Grandes contos (19): Torga
A ficção de formato curto é tão pouco valorizada no cânone literário português que até admira como vários escritores a têm cultivado ao longo dos últimos dois séculos. Um dos nossos melhores artífices de contos, nem sempre reconhecido como tal, foi Miguel Torga (pseudónimo do médico Adolfo Rocha, 1907-1995), mais conhecido como poeta e sobretudo como autor do monumental Diário, que se estendeu de 1932 a 1993 e constitui hoje um notável documento dessas décadas da vida portuguesa e da própria história do século XX.
Torga foi um produtor irregular de ficção, reunida essencialmente em três volumes de contos: Bichos (1940), Contos da Montanha (1941) e Novos Contos da Montanha (1944). São pequenas histórias -- às vezes simples quadros -- de um mundo agreste, duro, mineral, tantas vezes despojado dos mais singelos sentimentos. Um mundo povoado de sombras ancestrais, de superstições, de ritos cuja origem se perde nos confins dos tempos. Um mundo percorrido por um rasto de pobreza que irmana seres humanos e animais, ungidos pelo mesmo solo pedregoso e estéril.
«Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos», observava o autor no prefácio à segunda edição dos Novos Contos da Montanha, em Setembro de 1945. A data merece ser fixada pelo seu significado quase paradoxal: no preciso instante em que o mundo se despedia da devastação da guerra, o Portugal de Salazar que a ela ficara imune permanecia prisioneiro de uma opressão antiga.
Torga quis acentuar o contraste entre este imutável rincão de espectros e escarpas e a janela de esperança que naquele momento se rasgava à escala universal. Mas o rastilho político está ausente da sua ficção, o que o distingue da escola neo-realista, contemporânea destes livros, e o "herói colectivo" é uma noção totalmente alheia aos seus contos que germinam entre valados e penedias em páginas admiráveis de autenticidade e concisão. Páginas onde desfilam almocreves, pedintes, cavadores, deserdados da sorte, «almas penadas dum Portugal nuclear», como o escritor as classificava no prefácio à terceira edição dos Novos Contos da Montanha (1952).
Este livro contém alguns dos melhores contos portugueses. Mas nenhum me comove tanto como uma pequena narrativa simplesmente intitulada Natal -- história que evita todos os estereótipos da quadra para nos conduzir ao reduto essencial da solidão humana diluída na imensidão da natureza, história de um velho pedinte galgando quilómetros nas veredas serranas, de lugarejo em lugarejo, procurando o sustento mínimo com as forças que lhe sobram de longos anos a desafiar a meteorologia inclemente e o inelutável egoísmo dos homens.
É um conto de um homem só. O velho Garrinchas, desfavorecido pelo destino na recta final da vida, esquecido de todos e quase sem lembrança das horas doces há muito sepultadas na memória. Caminha pelos montes, em véspera natalícia, «com o coração a refilar», quando sobre ele se abate um forte nevão que lhe trava o passo.
Acolhe-se então no adro de uma ermida -- o mais inesperado e singular presente de Natal.
Esgueira-se na capela, encontrando a porta entreaberta, e perante a ameaça do frio nem hesita em deitar mão ao andor da procissão que descobre ali a um canto. «Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.»
Ocorre então, perante a fogueira acesa naquele adro perdido na vastidão da montanha, a mais original das consoadas quando o velho Garrinchas se senta a comer a broa e o naco de presunto que trazia no bornal. «Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate.» Retorna à entrada da ermida e vê a imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo. «A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.»
Chega-se ao altar, pega na imagem, instala-a junto dele, ao calor da fogueira: «A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.»
Um inesperado presépio, talhado à medida da fé pura e rude de quem tinha todos os motivos para descrer da providência divina.
Todos os Natais regresso a este Natal que tanto me deslumbrou ao ouvi-lo narrar, ainda criança, pela primeira vez. E logo a nostalgia dos Natais verdadeiros se enlaça nos ecos encantatórios deste Natal de ficção, unindo vida e literatura. Como só a melhor arte literária é capaz de fazer.
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Anteriores contos desta série:
Desatolado, de John Updike
O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith
Os Bons Serviços, de Julio Cortázar
Amor numa Rua Escura, de Irwin Shaw
Nevoeiro na Cidade, de Mário Dionísio