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Delito de Opinião

O melhor crítico é o tempo

Pedro Correia, 21.12.13

Uma vez mais, reflicto sobre os juízos críticos. Ao ver na televisão um velho filme português: Nazaré, de Manuel de Guimarães, com Virgílio Teixeira e Artur Semedo. Quando este filme estreou no cinema Eden, em 1952, uma grande parte da crítica portuguesa celebrou-o como marco da Sétima Arte à escala nacional. "É tão bom que nem parece português", entusiasmou-se o crítico de turno no vespertino República.

Intelectuais cotados não regatearam elogios ao jovem cineasta, que com esta obra e Saltimbancos (do mesmo ano) trazia o neo-realismo para o cinema português, rompendo com a chamada comédia pequeno-burguesa de Lisboa. Alves Redol proclamou: "É um primeiro passo para um cinema melhor." Fernando Namora deixou-se de contenções, exclamando em título de crónica: "Bravo, Manuel de Guimarães!" E José Cardoso Pires, também rendido, não fez a coisa por menos: "Fica na história do cinema como o primeiro filme inteiro, de intenção firmemente honesta e nada transigente, que se produziu em Portugal."

 

Não vejo Saltimbancos há muitos anos. Mas este Nazaré é um dramalhão intragável e previsível, recheado de lugares-comuns sobre a faina dos pescadores e os seus dramas cíclicos, associados ao capricho das marés. É uma tentativa, sem dúvida louvável mas inegavelmente frustrada, de importar para Portugal a escola cinematográfica italiana, então muito em voga com filmes como La Terra Trema, de Luchino Visconti, e Stromboli, de Roberto Rossellini.

O resultado, visto a esta distância, é confrangedor: todo o filme peca por amadorismo. Já dizia o outro: faz-se péssima arte com excelente intenções.

 

O que sobrevive do cinema português dessa época é precisamente aquilo que os críticos de então - incluindo os tais intelectuais cheios de pergaminhos - mais detestavam: as comédias protagonizadas por Vasco Santana, António Silva, Maria Matos, Beatriz Costa, Ribeirinho, Costinha, Laura Alves, Artur Agostinho, Milu, Curado Ribeiro, Barroso Lopes, Teresa Gomes e tantos outros nomes dessa geração de ouro da comédia portuguesa, caldeada no teatro de revista e logo transposta para o celulóide. Filmes como a Canção de Lisboa, O Pai Tirano, O Pátio das Cantigas, O Costa do Castelo, A Menina da Rádio, O Leão da Estrela e O Grande Elias nunca perdem o interesse nem deixam de conquistar novas camadas de espectadores.

Enquanto só pretendia brincar, o cinema português era um caso sério. Quando começou a ficar sisudo, tornou-se involuntariamente risível. Durante décadas, não houve sorrisos num filme português. Ao longo de todo esse tempo, o público divorciou-se do cinema nacional, que não soube aproveitar duas gerações de actores cómicos - mal ou bem, os melhores que tivemos e ainda temos.

Lidas à distância, aquelas críticas motivadas por "solidariedade" de doutrina estética parecem tão deslocadas e soam tanto a falso como alguns dos diálogos de Nazaré. O melhor e mais implacável juízo crítico é sempre o que surge do transcorrer do tempo.

4 comentários

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    Pedro Correia 22.12.2013

    Estes filmes nada tinham de "politicamente correctos", Lucky. Pelo contrário, eram até tentativas de mostrar realidades sociais à revelia do discurso dominante no regime daquela época. O problema era a sua confrangedora mediocridade no plano artístico.
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    lucklucky 22.12.2013

    O que escrevi é sobre o seu comentário sobre o cinema português em geral não sobre este filme particular e a sua cópia do "realismo" italiano.
    As décadas sem sorrisos tem tudo que ver com a politização do cinema.

    Podemos também discutir se é também por as gerações terem ficado mais iguais uma vez que recebem a mesma informação enquanto no passado as limitações das comunicações tendiam proporcionar mais diferença entre as pessoas.

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    Pedro Correia 22.12.2013

    Sim as décadas sem sorrisos resultavam de uma atitude política. Tal como o prolongamento da estética a preto e branco muito para além dos hábitos reinantes noutras latitudes e do próprio gosto do público - em filmes tão tardios como 'Domingo à Tarde' (1966), 'O Cerco' (1969), 'Sofia e a Educação Sexual' (1973) e 'O Mal Amado' (1973). Basta lembrar que 'E Tudo o Vento Levou' e 'O Feiticeiro de Oz', ambos de 1939, foram produzidos em 'technicolor'. E mesmo em Portugal filmes como 'Sangue Toureiro' (1958), 'A Costureirinha da Sé' (1958) e 'Passarinho da Ribeira' também já tinham sido rodados a cores.
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