Da efabulação e outras artes, também menores
I
Há imensas coisas que se aprendem ao folhear um jornal ou uma revista. Às vezes sobre nós próprios. Ontem, por exemplo, fiquei a saber que participei em manobras destinadas a colocar o actual primeiro-ministro no poder. Está lá, com o meu nome e tudo, numa versão avalizada por uma fonte supostamente idónea e -- como é costume no jornalismo pós-moderno, contaminado pelos automatismos das chamadas "redes sociais" -- não sujeita a um esforço mínimo de contraditório. Não fosse alguma versão contrária estragar aquilo que parece uma boa história.
Diz essa fonte que eu terei participado numa conspiração que envolveu manipulação de fóruns radiofónicos e televisivos, disseminou contra-informação e destruiu reputações nas redes sociais e outras malfeitorias. Tudo a partir de um blogue chamado Albergue Espanhol quando Passos Coelho ainda se encontrava na oposição.
É espantoso como pode alguém convencer-se de que um blogue, tenha a força que tiver, é capaz de conduzir um determinado político ao poder. É também espantoso alguém convencer-se de que um blogue, a partir da oposição, pode no fundo ser mais do que aquilo que é.
II
Lamento desiludir aqueles que embarcam em qualquer tese sensacionalista, mas um blogue é apenas um blogue. Funciona como veículo privilegiado de reflexão e discussão de ideias, designadamente na esfera política: nada menos mas também nada mais que isso.
O Albergue Espanhol foi um blogue que existiu entre Janeiro de 2010 e Agosto de 2011 e juntou pessoas que tinham posições críticas em relação ao executivo de José Sócrates: se havia "linha editorial" naquele projecto era essa e mais nenhuma. Não fazia sentido prolongar a sua existência após a derrota eleitoral do anterior primeiro-ministro e por isso terminou naquele Verão, julgo até que por sugestão minha. Mas enquanto durou deu bastante que falar. Não por ser monolítico, longe disso. A prova é que entre os seus membros contava-se o professor José Adelino Maltez, um dos nomes mais respeitados do comentário político em Portugal. E o Luís Osório, que nunca ninguém identificou com o PSD. E o Luís Menezes Leitão, que mais tarde tive o gosto de convidar para o DELITO DE OPINIÃO e cujas posições extremamente críticas de Passos Coelho e do executivo PSD/CDS, na blogosfera e na imprensa, são de todos bem conhecidas.
"Conspiradores", todos eles? Acredite quem quiser. Há crenças para tudo.
III
E por falar em monolitismo: conversei sumariamente com alguns amigos por ocasião do lançamento do Albergue e deixei logo muito claro que nas eleições presidenciais do ano seguinte -- que mereceram grande atenção do blogue, como já se esperava -- a minha simpatia, à partida, recaía em Manuel Alegre. E recordo com satisfação ter sido eu o primeiro, numa série de 35 textos sob o título "Presidenciáveis", a sugerir em Janeiro de 2010 o nome de Fernando Nobre como possível candidato a Belém, o que viria a suceder um mês depois.
Por curiosidade, lembro aqui também os textos que, no âmbito dessa série, escrevi sobre Manuel Carvalho da Silva, António Barreto, Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres, Pedro Santana Lopes e o actual presidente da câmara do Porto, Rui Moreira. Vários deles manterão plena actualidade quando começarem a aquecer os motores para a próxima corrida a Belém.
IV
Lamento decepcionar os adeptos das teorias da conspiração, mas pela parte que me toca limitei-me a isto: exprimir ideias, escrever o que penso, expressar-me de acordo com a minha consciência, exercendo enfim um direito de cidadania em nome próprio. Que em certos casos é mais do que um direito: é também um dever.
Nas semanas que antecederam as legislativas de 2011 participei num almoço e num jantar entre Passos Coelho, dirigente do principal partido da oposição, e gente muito diversa da blogosfera, como a Ana Matos Pires e o Paulo Guinote, que tive o prazer de conhecer na altura. Mas teria feito o mesmo com qualquer outra iniciativa do género organizada por qualquer outro candidato. Nada mais normal que isso.
Nunca usei pseudónimo, nunca escrevi a pedido fosse de quem fosse, não obedeci a nenhum estado-maior partidário, nada sei sobre fóruns televisivos e radiofónicos a não ser como ouvinte ou telespectador, nunca tuitei na vida, não tenho nem tenciono ter Facebook.
O meu pensamento, de 2006 para cá, está patente na blogosfera e pode ser escrutinado a qualquer momento. Nos blogues Corta-Fitas, Forte Apache e És a nossa Fé, além do Albergue e deste DELITO DE OPINIÃO, que surgiu em Janeiro de 2009 e foi desde o primeiro dia um espaço de liberdade e pluralismo. Se há projecto na blogosfera que sempre congregou pessoas das mais diversas tendências, em saudável intercâmbio de ideias, é este mesmo. Faz parte da sua matriz genética, a liberdade vem-lhe da raiz.
V
Dir-me-ão: mas os bloguistas partiram dos blogues noutras direcções. Até para o Governo, para a Assembleia da República (do Carlos Abreu Amorim ao João Galamba, da Inês Teotónio Pereira à Mariana Mortágua), para os partidos e para as empresas. A actual ministra da Agricultura, Assunção Cristas, começou a tornar-se conhecida num blogue que defendia o não no referendo ao aborto. Álvaro Santos Pereira, ex-titular da pasta da Economia, foi um bloguista muito lido antes de receber o convite para integrar o executivo. Miguel Poiares Maduro escreveu no blogue Geração de 60, em cuja ficha técnica ainda figura. E não faltam secretários de Estado, como o Carlos Moedas, o Pedro Lomba, o Bruno Maçães e o nosso colega Adolfo Mesquita Nunes, que também começaram por notabilizar-se na bloga.
Também não faltam bloguistas nos gabinetes governamentais, começando no do primeiro-ministro. Durante 22 meses, como é público, exerci eu próprio funções de adjunto no gabinete do ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares. Uns continuam, outros saíram, alguns entraram: nada mais normal. O próximo executivo, tenha a cor que tiver, contará igualmente com pessoas que escrevem ou escreveram em blogues.
Haveria algum motivo para não ser assim?
Sucede isto em toda a parte onde existe opinião livre: constitui uma homenagem implícita dos poderes fácticos ao potencial analítico da escrita blogosférica. Mas reparem: onde se nota mais a influência bloguística é nos órgãos de informação. É incontável, por um lado, o número de jornalistas que têm blogues. E, por outro, os blogues foram e são viveiros de talentos que permitiram renovar e rejuvenescer em anos recentes o elenco de comentadores em todos os jornais e todos os canais televisivos, tornando a opinião mais acutilante, mais estimulante e mais plural. Gente tão diversa como o Pedro Mexia, o Pedro Marques Lopes, o Tiago Mota Saraiva, o Pedro Adão e Silva, o André Abrantes Amaral, o Henrique Raposo, o Daniel Oliveira, o Rui Tavares, o José Mário Silva, a Helena Matos, a Carla Quevedo, o Alberto Gonçalves, o João Pereira Coutinho, o Luciano Amaral, o Hugo Mendes, o Joel Neto, o Luís Januário, a Maria João Marques, o Francisco Mendes da Silva, o Alexandre Homem Cristo, o Pedro Lains, o Tomás Vasques, o Bernardo Pires de Lima, o José Pedro Lopes Nunes, o Francisco Proença de Carvalho, o Luís Rainha, o Ricardo Arroja.
A lista é quase interminável.
VI
Há hoje bloguistas em todo o lado. Até no desemprego: a alguns deles mal sobra o dinheiro para ir comprando revistas e jornais -- acreditem que sei bem do que falo.
Tal como há mitómanos por toda a parte: alguns confundem desejos com realidades, imaginam-se pequenos reis-sóis ou génios do manobrismo político. Efabulam enredos e chegam ao ponto de acreditar neles.
Sem terem sequer a lucidez de um Groucho Marx, incapaz de pertencer a um clube que o aceitasse como membro.