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Delito de Opinião

Livros que deixei a meio (16)

Pedro Correia, 09.11.13

 

 

ATÉ AMANHÃ, CAMARADAS

de Álvaro Cunhal

 

Nada há tão volúvel como as modas literárias. Reparem no neo-realismo: já esteve completamente na moda, erigido em cânone; já esteve totalmente fora de moda, alvo de dichotes que o punham a ridículo. Basta uma geração suceder a outra para tudo parecer mudar.

Um dos ingredientes fundamentais do neo-realismo era a luta de classes, quase sempre ambientada em meio rural para suavizar os focos da censura salazarista, menos rigorosa em relação aos trabalhadores de arado e enxada do que ao cenário fabril, propício como nenhum outro à difusão da mensagem comunista.

 

Comecei cedo, até por imposição do programa dos estabelecimentos de ensino oficial que sempre frequentei, a conhecer algumas das obras mais emblemáticas do neo-realismo, variante portuguesa do realismo socialista -- baptizado daquela forma, segundo a lenda da época, para driblar os censores tanto na expressão escrita como na expressão pictórica (de que constitui notável exemplo o quadro O Almoço do Trolha, do grande Júlio Pomar).

Ao contrário de muita gente da minha geração, nunca tive nenhum preconceito contra o neo-realismo nem levantei a bandeira dos Pessoas e das Agustinas para argumentar contra a sua suposta menos-valia literária. Cada caso é um caso -- e há bons e maus autores em todos os géneros.

Esteiros foi talvez o primeiro romance neo-realista que li. Havia ali influências nítidas dos Capitães da Areia, de Jorge Amado, como mais tarde me apercebi, mas um certo lirismo de fundo e a manifesta qualidade da escrita diluíam neste livro o mais óbvio defeito imputado aos expoentes desta escola: colocarem a arte ao serviço da política.

Nunca mais li Esteiros -- que no início dos anos 70 inaugurou a célebre colecção de livros de bolso da Europa-América -- mas julgo tratar-se de uma obra que sobreviveu ao seu tempo e ao contexto em que foi escrita. Como várias outras de autores neo-realistas ou aparentados -- os contos de Jogos de Azar, de José Cardoso Pires, ou O Dia Cinzento, de Mário Dionísio, e romances como A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, Casa na Duna, de Carlos de Oliveira -- um nome que não deve ser esquecido -- ou Vagão J, de Vergílio Ferreira, que foi neo-realista antes de renegar a tribo e se tornar odiado por ela.

Em sentido inverso está uma obra como Engrenagem, também de Soeiro Pereira Gomes, no seu esquematismo rudimentar do capitalista mau que explora os operários bons -- obra que aliás o autor não pôde rever por se encontrar já muito afectado pela doença que viria a matá-lo prematuramente nos anos de chumbo da ditadura em que se destacou como dirigente da estrutura do PCP na clandestinidade.

 

A relação dos comunistas com a literatura teve com frequência um carácter instrumental em casos muito conhecidos -- de Roger Vailland a Pablo Neruda. Lenine e Estaline eram leitores compulsivos de romances e nunca perderam de vista as imensas possibilidades de divulgarem a mensagem revolucionária do "socialismo científico" por este meio.

Álvaro Cunhal, figura histórica do PCP e do movimento comunista internacional, foi ainda mais longe: escreveu ele próprio contos e romances, nomeadamente quando se encontrava encarcerado, como preso político, no forte de Peniche. Uma dessas obras foi transposta para o cinema por José Fonseca e Costa, em 1996, com certo êxito: Cinco Dias, Cinco Noites.

 

Mas nas duas décadas anteriores ao filme o Cunhal escritor não se chamava assim: chamava-se Manuel Tiago. E o Partido Comunista Português alimentou um mito em torno da sua obra mais emblemática, o romance Até Amanhã, Camaradas (1974), assegurando desconhecer quem fosse o autor. "Só, numa pequena folha apensa e agrafada, podia ler-se, em rabisco apressado, o nome Manuel Tiago, pseudónimo de certeza", esclareciam as edições Avante em introdução à obra, acentuando o mistério.

Este secretismo, que em parte pode ser explicado pelas características da personalidade do próprio Cunhal, entroncava com outro mito muito caro aos comunistas: o do herói anónimo, imerso no meio do povo, do qual emana e à vontade do qual obedece. No fundo, um mito que percorre Até Amanhã, Camaradas -- pelo menos até à página 100, onde parei.

Anos antes de morrer, Cunhal assumiu publicamente ser Manuel Tiago, o que conferiu autenticidade à sua obra literária mas anulou a aura de mistério que a envolvia e era de algum modo justificada por esses tempos de duro combate político. A realidade chã destes dias democráticos é muito mais banal do que o mundo cifrado, fruto de pequenos gestos de heroicidade quotidiana, em que os comunistas se moviam no covil de sombras da ditadura.

 

Ignoro se Cunhal obteve ajuda de algum confrade das letras na revisão deste romance. Mas estamos certamente perante uma escrita desenvolta, sem gorduras nem artifícios, como era bom timbre da escola neo-realista, influenciada em Portugal também por uma plêiade de bons narradores norte-americanos do século XX, incluindo o Hemingway de Por Quem os Sinos Dobram (livro que, no entanto, esteve proibido na União Soviética), o Steinbeck d' As Vinhas da Ira ou o Caldwell d' A Estrada do Tabaco.

A certa altura do romance, no entanto, percebi que Cunhal escreveu este romance sobretudo para falar de si próprio. O homem da bicicleta, que pedalava sem cessar com a mirada no futuro, não era mais ninguém senão ele. Em torno do ex-secretário-geral do PCP gerou-se uma forma enviezada de culto da personalidade: o do Álvaro, filho da burguesia, que atraiçoa os interesses egoístas da sua classe para abraçar a causa proletária e se tornar um devotado servidor do povo.

Comecei a perceber igualmente quanto de convencional havia ali -- não apenas na prosa escorreita mas meramente descritiva mas também ao nível de alguns conceitos. As mulheres, por exemplo, limitavam-se a assegurar a retaguarda logística dos camaradas envolvidos na luta, não se esperando delas tarefas de maior responsabilidade. E foi-me desagradando a componente de propaganda partidária. "Rita e Isabel não poderiam existir se não existisse o Partido" -- sempre escrito assim, em letra maiúscula.

 

O livro é longo: o meu exemplar tem mais de 400 páginas. E as edições Avante, responsáveis pelo espólio literário de Cunhal, cometeram o erro de imprimi-lo com letra demasiado diminuta. Confesso que não gosto de corpos de letra muito reduzidos, tanto em livros como em jornais.

Isto contribuiu para o meu cansaço: fiquei-me por um quarto do livro. Tenciono ver o filme homónimo, realizado por Joaquim Leitão e estreado anteontem. Mas só quem acredita convictamente na ideologia comunista pode idolatrar Até Amanhã, Camaradas. Não é o meu caso.

E no entanto há trechos que merecem especial atenção. Aqueles em que Cunhal -- enquanto criador literário -- traça o auto-retrato: "Só então a mulher pareceu reparar naquele que tinha na frente. Viu o fato e o boné repassados de chuva, os sapatos e as calças enlameados, a bicicleta inútil naquele caminho. Olhou-lhe o rosto seco, pálido e severo. Reparou-lhe nos olhos fixos e serenos" (p. 18); "Em silêncio, a severa expressão inalterável, o camarada pôs-se a comer a broa com o toucinho" (p. 25).

Cunhal par lui-même: apesar desta minha fracassada experiência como leitor do falso Manuel Tiago, mantenho um fascínio antigo pelo neo-realismo -- um pouco como me acontece com as aventuras marítimas ou de capa e espada que li na infância.

 

 

Redescobri esse fascínio em recente deslocação ao excelente Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira -- visita que recomendo. Por ser também um retrato de uma época em que a escrita era uma forma de resistência cívica, imperativo categórico sob o signo da urgência.

A máquina de escrever era uma espécie de bicicleta, com o escritor a pedalar nas teclas, crente de que nenhum homem é uma ilha mas todos somos parcelas de um vasto continente ao qual jamais se diz até nunca mas até sempre.

 

Imagens: quadro O Almoço do Trolha, de Júlio Pomar (1946-50); capas de romances neo-realistas, pertencentes ao Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira (retiradas do blogue Fazer por Salvaterra, Fazer por Todos Nós)

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