Oi dona, me dá carona?
O liberalíssimo Expresso, pioneiro do acordês na imprensa generalista portuguesa, confina todos quantos discordam do desacordo ortográfico a uma espécie de reserva de índios, colando-lhes este gentilíssimo rótulo: "Fulano de Tal escreve de acordo com a antiga ortografia".
Por mim, agradeço este esforço permanente do semanário de colar etiquetas supostamente retrógradas aos seus colaboradores anti-acordistas. É uma forma de sinalizar espaços de qualidade naquele imenso jornal: na minha perspectiva, os textos mais interessantes do Expresso são precisamente estes, saídos das penas recalcitrantes de um Miguel Sousa Tavares, um Pedro Mexia ou um Manuel S. Fonseca.
Falta no entanto ao jornal dirigido por Ricardo Costa sinalizar outros textos, em sentido inverso. Os daqueles que também desrespeitam o desacordo ortográfico não por manterem apego às chamadas consoantes mudas mas por terem passado a uma fase mais evoluída da revolução ortográfica em curso ao suprimirem as próprias consoantes sonoras. É o caso de Clara Ferreira Alves, que na sua crónica da revista demonstra hoje como o convénio de 1990, na sua ânsia de tudo "unificar", só induziu uma diversidade ainda maior de opções ortográficas no nosso idioma.
A Presidência da República, escreve Ferreira Alves, "é um dos melhores empregos deste país". Porquê? Porque "dá direito a morar numa das melhores residências do país, na zona de Belém. Com um staff, umas dezenas de assessores e conselheiros, uns sofríveis redatores(sic) de discursos e uns competentes produtores de fatos(sic) políticos".
O destaque a negro é da minha lavra, com a devida vénia. Não é todos os dias que lemos a expressão "fatos políticos" consagrada por tão caprichosa pluma num jornal de referência. Na sequência dos notabilíssimos vocábulos pato (em vez de paCto), impato (em vez de impaCto) e contato (em vez de contaCto) já consagrados sem direito a errata no Diário da República, ultrapassando em vanguardismo ortográfico a anacrónica protecção que os progenitores da mistela acordística haviam concedido às consoantes sonoras.
Facto vira fato. Este, por sua vez, há-de virar terno. Resta-nos, a todos quantos ainda escrevemos "de acordo com a antiga ortografia" portuguesa, apanhar de vez a boleia brasileira. Perdão: boleia não. Carona. Oi dona, me dá carona?