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Delito de Opinião

Sophia em acordês? Não, muito obrigado

Pedro Correia, 30.10.13

 

I

Entro na Livraria Barata, espreito os títulos nos escaparates. Atrai-me a atenção um livro de contos de Sophia de Mello Breyner Andresen, da Porto Editora, intitulado Quatro Contos Dispersos. Contos que não conheço. Tratando-se ainda por cima de um género literário que tanto aprecio, pego num exemplar. Já disposto a levá-lo.

Mas eis que uma campainha de alarme soa dentro de mim: consulto a ficha técnica desta obra, editada em 2012. Lá surge o aviso aos incautos: "Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa." Por outras palavras, muito menos eufemísticas: o livro vem redigido não como a autora o escreveu mas segundo as absurdas normas do pseudo-acordo ortográfico de 1990 que apenas a administração pública portuguesa aplica, felizmente ainda sem carácter obrigatório, e o resto do mundo lusófono ignora.

Esclarece a ficha técnica que os herdeiros de Sophia deram o necessário consentimento a esta edição, apesar das consoantes mutiladas. Algo que me deixa admirado, pois Miguel Sousa Tavares, um dos herdeiros da autora do Livro Sexto, é um dos mais notórios adversários do AOLP.

Poiso o livro, devolvendo-o ao seu lugar. Gosto muito da obra desta grande escritora, mas nem de borla levaria um volume que lhe desfigura a escrita. Ainda por cima com a chancela de uma editora cujo administrador e director editorial, Vasco Teixeira, se assume como crítico do convénio que se propôs "unificar" a grafia portuguesa sem ter atingido este objectivo, aliás indesejável.

 

II

Dirijo-me à secção de livros usados, na mesma livraria -- uma secção em expansão crescente pois há cada vez mais bibliotecas domésticas a desfazer-se na sequência de óbitos e divórcios e desentendimentos familiares de diversa ordem e dos efeitos da crise económica -- e descubro um exemplar da primeira edição d' O Secreto Adeus, o romance de estreia de Baptista-Bastos, faz agora precisamente meio século.

É uma das raras obras portuguesas de ficção centradas no jornalismo e numa redacção de jornal. Li-a há quase 30 anos, numa edição muito posterior a esta, que tem a nobre chancela da velha Portugália Editora e capa desenhada por João da Câmara Leme (1930-84), um dos nossos melhores ilustradores do século XX, também responsável pelo grafismo das edições originais de Felizmente Há Luar, de Luís Sttau Monteiro, Barranco de Cegos, de Alves Redol, e Apelo da Noite, de Vergílio Ferreira, entre tantas outras.

É uma edição em muito bom estado, integrada numa colecção então intitulada "novos romancistas", o que demonstra a velocidade de esgotamento deste género de rótulos. E traz, como atracção suplementar, um autógrafo do autor, datado de Junho de 1968 e dirigido a uma "confrade das letras", cujo nome menciona.

Nem hesito: trago comigo O Secreto Adeus (título de que sempre gostei). Custou-me 25 euros, preço módico atendendo à data da edição e ao autógrafo personalizado.

E com a vantagem suplementar de ter impressas todas as vogais e consoantes. Sem mutilações.

 

III

Lamento, caríssimos herdeiros de Sophia, mas tenho demasiada consideração pela autora dos Contos Exemplares para lê-la numa grafia que ela não escolheu nem certamente defenderia. Como nem o próprio editor defende.

Felizmente restam as edições antigas, cada vez mais disponíveis por aí. Felizmente também há ainda muitas editoras que resistem em render-se ao acordês, recusando perpetuar delitos de lesa-cultura em páginas impressas. Felizmente, neste ano de 2013, podemos ver Sophia bem reeditada. Abro a décima edição de Coral, por exemplo, lançada há poucos meses pela Assírio & Alvim (por ironia, pertencente ao grupo Porto Editora), escolho um poema ao acaso: "Nardo / Pesado e denso, / Opaco e branco, / Feito / De obscura respiração / E de nocturno embalo."

Assim mesmo. Sem a supressão de supostas consoantes mudas.

À memória de Sophia e daqueles que sabem respeitar o seu legado literário, aqui fica a calorosa homenagem deste leitor atento.

 

Leitura complementar:

Há males que vêm por bem

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3 comentários

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    João Campos 30.10.2013

    A pergunta não era para mim, mas dou-lhe resposta: optaria pela tradução inglesa. Com a vantagem acrescida de que a compraria por metade do preço da edição portuguesa, ou menos.
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    Pedro Correia 30.10.2013

    E eu acrescento: língua inglesa que nunca precisou nem precisa de acordo ortográfico algum.
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