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Delito de Opinião

Livros que deixei a meio (14)

Pedro Correia, 26.10.13

 

 

O SOM E A FÚRIA

de William Faulkner

 

Já houve um tempo, vejam lá, em que tive a pretensão de ler obras de todos os galardoados com o Nobel da Literatura. Mesmo os de figuras para mim tão ignotas como Sully Prudhomme (o primeiro contemplado, em 1901), Theodor Mommsen (1902), Bjørnstjerne Bjørnson (1903), Gerhart Hauptmann (1912), Verner von Heidenstam (1916), Karl Adolph Gjellerup (1917), Carl Spitteler (1919), Władysław Reymont (1924), Grazia Deledda (1926), Sigrid Undset (1928), Erik Axel Karlfeldt (1931), Frans Eemil Sillanpää (1939), Johannes Vilhelm Jensen (1944), Shmuel Yosef Agnon (1966), Harry Martinson (1974), Odysséas Elýtis (1979), Jaroslav Seifert (1984), Wisława Szymborska (1996) e Elfriede Jelinek (2004).

Tive de contentar-me com muito menos: li até hoje obras de 28 escritores que receberam o Nobel -- incluindo alguns que nunca se aventuraram pelos rumos da ficção literária, como T. S. Eliot, Bertrand Russell e Octavio Paz, e também Winston Churchill, autor de um só romance, intitulado Sevrola, mas distinguido pelo Comité Nobel devido à sua monumental obra como historiador, designadamente da II Guerra Mundial, de que foi um dos mais notáveis protagonistas.

 

Sempre gostei de estatísticas. Pelas minhas contas terei lido 78 livros destes 28 escritores, mais de metade dos quais saídos da pena de oito magníficos: Ernest Hemingway (Nobel de 1954), Albert Camus (1957), John Steinbeck (1962), Alexandre Soljenitsine (1970), Gabriel García Márquez (1982), José Saramago (1998), J. M. Coetzee (2003) e Mario Vargas Llosa (2010).

Entre os norte-americanos, e além dos já mencionados, li obras de Sinclair Lewis (1930), Pearl Buck (1938), William Faulkner (1949) e Saul Bellow (1976). Autores bem diferentes, cada qual representativo de uma época e do imaginário dominante que se lhe encontra associado -- o proselitismo missionário protestante em regiões remotas, sobretudo na China, no caso de Pearl Buck; a América do sul profundo, com sólidas raízes rurais, no caso de Faulkner; a América da comunidade judaica, urbana e cosmopolita, no caso de Bellow; as mudanças sociais no interior dos EUA, designadamente entre as duas guerras, no caso de Lewis.

 

 

Dos escritores com maior fama, Faulkner foi o último a que cheguei. Talvez por ser aquele de cuja temática me encontrava mais distante. Ao contrário de muitos dos seus confrades das letras, este patriarca do Mississípi foi essencialmente um homem sedentário, fiel na vida e nos livros à região que o viu nascer. Criou até um condado de nome impronunciável -- Yoknapatawpha -- para situar várias das suas histórias de uma América que parecia condenada a ficar à margem da História.

Deste Sul profundo nos chegaram, e não por acaso, alguns dos melhores escritores norte-americanos -- de Mark Twain a Harper Lee, passando por Tennesse Williams, Carson McCullers, Truman Capote e Flannery O'Connor.

O mais complexo, na forma e no tom, é Faulkner -- elogiado com maior fervor pela crítica europeia do que pela norte-americana, por vezes insensível às suas obsessões temáticas, ao seu peculiar regionalismo e sobretudo aos seus exercícios de linguagem, dinamitando convenções literárias.

 

Há escritores para ler no Inverno e há escritores para ler no Verão. Faulkner deve ser lido no Verão, com temperaturas altas e o sol a morder-nos a pele, em sintonia com os extensos cenários rurais dos seus romances, povoados de paisagens por vezes áridas, à semelhança das relações humanas.

Comecei precisamente num Verão a ler aquele que é talvez o mais célebre dos seus romances: O Som e a Fúria, que toma emprestada uma expressão idiomática popularizada por Shakespeare em Macbeth e que o mundo inteiro adoptou. É um romance também para ler no Verão porque exige tempo e disponibilidade física e mental: tem uma estrutura complexa, com a cronologia diluída e as frases das personagens sobrepondo-se como num coro polifónico -- uma técnica que Vargas Llosa utilizaria mais tarde, de forma brilhante, no melhor dos seus romances, Conversa n' A Catedral.

Faulkner exige muito de nós também por isso. Devemos estar atentos à minúcia do idioma -- aos sotaques, às imprecisões do discurso oral transpostas para a escrita. É um esforço que compensa: estamos perante um dos monumentos da literatura do século XX.

 

Fui lendo O Som e a Fúria crescentemente fascinado. Confesso que por vezes parava, voltava atrás, relia algo que me parecia não ter ficado suficientemente descodificado.

Como um puzzle a ser construído, peça a peça, esta escrita labiríntica vai-nos iluminando à medida que a desvendamos.

Li cerca de dois terços do livro, pertencente à excelente colecção Ficção Universal, da editora Dom Quixote.

Mas cometi um erro: interrompi a leitura para dar prioridade já nem sei a quê. O Som e a Fúria exige dedicação exclusiva, não é obra para ser partilhada com outros títulos.

Fui castigado: quando pretendi voltar, semanas mais tarde, havia uma espécie de barreira entre mim e este romance do norte-americano distinguido em 1949 com o mais célebre galardão literário (no mesmo ano em que o português Egas Moniz recebeu o seu controverso Nobel da Medicina).

 

Sou forçado a cumprir a penitência: terei de o ler novamente de início, mas desta vez sem interrupções de qualquer espécie.

Enquanto leitor, julgo que será a penitência que cumprirei com maior gosto em toda a minha vida.

 

Imagem do meio: Faulkner na sua casa em Oxford, Mississípi, fotografado por Henri Cartier-Bresson (1947)

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