Grandes romances (10)
O VELHO NOVO MUNDO
O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald
Era uma época festiva nos Estados Unidos da América, cheia de sinais de abundância e prosperidade. Mas o escritor de talento tem o dom de ver para lá da superfície das coisas. Francis Scott Fitzgerald (1896-1940) percebeu como era ilusório esse brilho. E expôs o seu reverso num conciso romance composto por nove capítulos em que nenhuma palavra sobra e nenhuma palavra falta, um romance que levou décadas a tornar-se um êxito à escala planetária para glória póstuma do autor, em suposto desmentido do mais célebre dos seus aforismos: "Não há segundos actos nas vidas americanas."
A época era a terceira década do século XX, o local era Long Island, às portas de Nova Iorque, pórtico de entrada no Novo Mundo, ponto supremo do sonho americano. Época de todos os devaneios, época de todas as aspirações -- na sociedade, na política, na economia, nas finanças, nas artes e nas letras. Um mundo terminava -- o que fora selado com o armistício de Novembro de 1918, pondo fim à Grande Guerra -- e outro tinha início. Com novas regras, novas etiquetas, novos usos, novas modas, nova moral. Decretava-se a Lei Seca mas todos bebiam como se não houvesse amanhã. Ao som do foxtrot, do charleston e do jazz, cresciam arranha-céus, multiplicavam-se fortunas, a indústria cinematográfica e as editoras discográficas mudavam mentalidades à velocidade a que saíam automóveis das linhas de montagem. Tudo iluminado por faiscantes clarões de néon.
E no entanto havia sombras ocultas pelo brilho destas luzes. É disso que Fitzgerald nos fala, com visionária lucidez. E é também isso que ajuda a explicar o lento sucesso alcançado junto do público por esta obra que nos abre sucessivos horizontes a cada releitura e figura hoje invariavelmente nas listas dos dez melhores romances de sempre em língua inglesa, tendo já vendido 25 milhões de exemplares em todo o mundo. Porque O Grande Gatsby sabe ler como nenhum outro os sinais da sua época mas isso só se torna evidente aos olhos das gerações que lhe sucederam. Quando a ilusória rota de optimismo dessa década já desembocara no crash da Bolsa em 1929, na Grande Depressão com o seu cortejo de misérias e no pesadelo da II Guerra Mundial.
As ilusões têm aqui um corpo e um nome: Jay Gatsby. Nunca houve festas tão efusivas e tão efémeras como as que este homem vindo do nada dava na sua sumptuosa mansão do West Egg, em Long Island. "Todas as noites acrescentavam alguma pincelada ao quadro das suas fantasias, até o sono descer, num abraço de esquecimento, num cenário cheio de cor" (uso a tradução de Ana Luísa Faria para a Relógio d'Água, em 1996, embora haja uma versão anterior, e superior, de José Rodrigues Miguéis).
O anfitrião dessas festas magnificentes queria a todo o custo fugir do passado mas também recuperá-lo na pessoa de Daisy Fay Buchanan, paixão desmedida, mulher fatal em todos os sentidos da expressão, com o encanto inesgotável da sua "voz cheia de dinheiro", como o próprio Gatsby confessa ao perplexo narrador, Nick Carraway, desvendando assim uma parcela daquela atracção tão mórbida.
Aquilo que mais o fascinava nela não era o sexo, mas a superioridade social proporcionada por um apelido com fortuna. Gatsby, nascido num humilde lar de lavradores, nunca tinha conhecido uma rapariga de "boas famílias" guiando um descapotável branco aos 18 anos e jamais esqueceu a sensação de deslumbramento sentida ao entrar pela primeira vez na majestosa residência dos pais dela, em Louisville.
Reinventa-se para conquistar aquela jovem "brilhante como prata, segura e altiva, acima das duras lutas dos pobres", transmitindo a sensação de que tinha o mundo a seus pés. No entanto Daisy preferiu juntar o seu destino ao rude e cavernícola Tom Buchanan, assumido racista e mulherengo inveterado, mas com uma conta bancária assente em bases muito mais sólidas do que a de Gatsby, comparável a um castelo erguido na areia.
Porque o mundo de que O Grande Gatsby nos fala é feito de aparências sem necessária correspondência com os factos, à mercê do olhar nada neutro do narrador. Um mundo composto de um acentuado jogo de contrastes (tradição/modernidade, cidade/província, ricos/pobres, sonho/realidade) com personagens que mal precisam de sair do esboço para se tornarem credíveis.
Personagens sem lugar fixo: todos os intervenientes neste "romance perfeito", como lhe chamou Anthony Burgess, estão em permanente movimento. Ou acabam de chegar de algum lado ou preparam-se para partir noutra direcção qualquer. Algo só possível nos EUA, um país com enorme mobilidade social. E é em parte por isso que este romance capaz de comover milhões de leitores nos cinco continentes é ao mesmo tempo profundamente americano.
Eis-nos perante a América desenraizada, a moderna América entediada com o luxo, que é também a América desapossada dos seus valores ancestrais, bem simbolizada na ruptura ocorrida entre o falso Jay Gatsby e o pai, talvez a única personagem sem mácula, não por acaso a última a surgir no romance, num claro contraponto às restantes.
Uma América nostálgica do tempo dos pioneiros, quando no lugar da mansão de Gatsby havia uma floresta. E todo o continente era uma imensidão por desbravar. E todas as páginas permaneciam por escrever.
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