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Delito de Opinião

Livros que deixei a meio (12)

Pedro Correia, 13.10.13

 

BALADA DA PRAIA DOS CÃES

de José Cardoso Pires

 

Sou um privilegiado enquanto cinéfilo: ainda assisti à estreia de filmes de realizadores hoje quase míticos como Alfred Hitchcock, Billy Wilder e Elia Kazan. Hoje devemos todos considerar-nos igualmente privilegiados: mais tarde poderemos sempre dizer que chegámos a assistir à estreia de filmes de Clint Eastwood, Martin Scorsese e Woody Allen.

 

Passando do cinema para a literatura: eu ainda sou do tempo em que o lançamento de um livro de um grande escritor português tinha chamada de capa obrigatória nos jornais e figurava entre as principais notícias de um telediário. E lembro-me de anos de excelentes colheitas literárias, em que era possível haver vários romances de sucesso, escritos pelos melhores autores nacionais, nos mesmos tops de vendas. E cada um tinha mesmo as suas claques de apoio: havia quem amasse e odiasse um Torga, um Rodrigues Miguéis, um Manuel da Fonseca, um Redol, um Régio, um Abelaira, um Sena, um Tomaz de Figueiredo, um Urbano, um Carlos de Oliveira, um Ruben A.

Lembro-me por exemplo de 1982/83, biénio de excepcional produção literária entre nós. Foi um período em que as tais claques se mobilizaram em defesa e justificação e apologia dos respectivos autores de cabeceira. Um período em que, com poucos meses de intervalo, surgiram nas livrarias o Memorial do Convento, de José Saramago, Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, Os Meninos de Ouro, de Agustina Bessa-Luís, e Para Sempre, de Vergílio Ferreira. Um verdadeiro luxo, já para a época. Algo impensável nos tempos actuais, em que uma certa sacralização dos escritores e da sua obra parece coisa irremediavelmente do passado.

 

Também eu tinha um campo de estimação nestas leituras: Vergílio Ferreira era um dos meus autores preferidos. Gatinhava ainda em termos jornalísticos, com 20 anos mal cumpridos, e já dava nota entusiástica da Conta Corrente, um dos livros que mais polarizaram opiniões no início da década de 80.

Bem amado, mal amado: poucos ficavam indiferentes nas polémicas que estalavam nas redacções de jornais nesse tempo em que ainda era possível reflectir e discutir e em que a obsessão de preencher a todo o instante as exigências da intensa produção on line não tinham transformado os jornalistas em formiguinhas laboriosas e proletárias acarretando sem cessar o grãozinho noticioso para que, serão após serão, às aristocratas cigarras do comentário jamais falte matéria para perorar interminavelmente nas pantalhas.

Havia os fãs de Agustina, os indefectíveis de Cardoso Pires, os primeiros entusiastas de Saramago e aqueles que, como eu, se prendiam sobretudo à obra de Vergílio Ferreira, descobrindo-a com crescente interesse de título para título -- Vagão J, Manhã Submersa, Aparição, Cântico Final, Alegria Breve.

De Cardoso Pires interessavam-me sobretudo os contos, reunidos em Jogos de Azar e O Burro em Pé, embora também tivesse gostado muito d' O Anjo Ancorado, O Hóspede de Job e principalmente O Delfim. Mas a obra dele, na altura, parecia-me algo sobrevalorizada atendendo até ao facto de se tratar de um autor "bissexto" -- publicava num ano e descansava nos três seguintes.

 

A Balada da Praia dos Cães interrompeu um longo silêncio literário de Cardoso Pires, autor também bissexto de crónicas jornalísticas, várias delas excepcionais. Foi, como já salientei, um acontecimento. Rodeado de um sábio marketing da editora o jornal, recém-surgida, com muito boa imprensa.

Eu preferia o Cardoso Pires anterior, editado pela Moraes, com uma feliz foto do autor na contracapa e um desenho gráfico muito avançado para a época -- o Cardoso Pires d' O Delfim e O Render dos Heróis, peça teatral igualmente muito celebrada. Mas também, como tantos outros leitores, adquiri a Balada da Praia dos Cães, que julgo ter sido o campeão de vendas nesse ano em boa parte alicerçado com a conquista do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, na sua edição inaugural.

 

O livro, sendo ficção, baseava-se num episódio verídico dissecado à época por toda a imprensa com o depoimento de vários protagonistas. A história era, portanto, conhecida -- sob vários ângulos. Isto terá diminuído o meu interesse pela obra. E confesso que a escrita demasiado trabalhada -- "castigada", como naquele tempo se dizia -- do Cardoso Pires da década de 80, distante da tensa secura dos seus primeiros títulos, me deixava algo frio enquanto leitor.

Sucedeu-me isso enquanto travava conhecimento com o inspector Elias Santana, autor de relatórios sobre uma investigação em torno da aparição de um cadáver na praia do Guincho com indícios de ter sido parcialmente devorado por cães.

Havia ali matéria com abundância para metáforas políticas e até para a análise crítica de uma certa identidade nacional. Mas o livro continuava a deixar-me frio e nele reconhecia com dificuldade o admirável estilista d' O Anjo Ancorado e O Hóspede de Job, que ajudou a limpar da prosa portuguesa quilos de excrescências e gorduras.

 

 

Pousei o livro marcando novo encontro com ele, em data a definir. Depois surgiu o filme de Fonseca e Costa, com Raul Solnado no papel de Elias Santana -- uma das melhores interpretações de sempre do cinema português. E ao contrário do que tantas vezes me acontece (ainda há pouco sucedeu com Mystic River, de Clint Eastwood, remetendo-me com proveito para o romance de Dennis Lehane), o filme afastou-me do livro em vez de me reeencaminhar para ele.

Não me perguntem porquê: ainda estou para saber. Mas a verdade é que o meu Elias Santana é o do filme, não o do livro onde nasceu.

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