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Delito de Opinião

Livros que deixei a meio (11)

Pedro Correia, 05.10.13

 

 

A CAVERNA

de José Saramago

 

Conheço muita gente que não gosta de José Saramago. Já não gostava dele em vida, continuaram sem gostar dele depois de morto.

Alguma da aversão que o nosso único Nobel da Literatura desperta relaciona-se com aquela animosidade tão portuguesa a tudo quanto tenha êxito. É uma das nossas piores características. Detestamos Saramago, Manoel de Oliveira, Paula Rego, Maria João Pires, José Mourinho, Cristiano Ronaldo e Joana Vasconcelos porque não necessitam da comiseração nacional para colherem aplausos. São apreciados "lá fora", o que potencia novas camadas de detractores. Convivemos mal com o sucesso alheio.

 

Em relação a Saramago confunde-se muito o indivíduo com a obra: muitos recusam ler-lhe os livros porque detestavam o homem enquanto figura pública por lhes parecer profundamente antipático. Conheci-o pessoalmente e sei do que falo: o autor do Memorial do Convento era uma pessoa tímida que procurava disfarçar essa característica com um rosto severo onde raras vezes despontava um sorriso. Questão de feitio.

Muitos confundiam isso com sobranceria ou arrogância. Mas este jornalista que ficou desempregado aos 53 anos e ao qual nem o partido em que militava ajudou nessa difícil fase da sua vida teve de reinventar-se até surgir levantado do chão, certamente sem grandes ilusões sobre a espécie humana e sobre esse terreno armadilhado que é a fama.

Mas mesmo que fosse uma personalidade execrável a sua obra não deveria pagar por isso. Personalidades detestáveis nunca faltaram na história da literatura -- de Céline, com os seus repugnantes panfletos anti-semitas, a Christa Wolf, informadora da infame polícia política da ex-RDA, a lista é imensa.

Há ainda os que condenam as suas ideias políticas, mas também aqui deve ser feita a indispensável separação entre o escritor e o militante. Neruda foi estalinista, Ezra Pound era adepto de Mussolini e Heidegger manteve um prolongado flirt com os nazis sem que isso contaminasse necessariamente a obra de qualquer deles.

 

O teste mais infalível é sempre o da passagem do tempo. Quando eu era miúdo o maior autor de best sellers em Portugal chamava-se Fernando Namora. Cada livro dele alcançava tiragens monstruosas, a Bertrand tinha-o como principal "activo" (como agora se diz) do seu catálogo. Cada livro que publicava era um acontecimento mediático consagrado com múltiplas entrevistas. Dois deles, Resposta a Matilde e O Rio Triste, foram acolhidos quase como acontecimento nacional. Li ambos, com notória dificuldade: nunca consegui perceber a razão de tanto espalhafato.

Hoje Namora é um autor praticamente desconhecido: os seus livros vendem-se a preços de saldo em alfarrabistas. O que tem muito de injustiça póstuma, pois títulos como O Trigo e o Joio e Retalhos da Vida de um Médico merecem releitura atenta.

De Saramago podemos dizer, com relativa segurança, que deixou obras destinadas a não passar de moda. O Memorial, claro. O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a Cegueira, a sua incomparável Viagem a Portugal e essa deliciosa novela quase testamentária que se intitula As Intermitências da Morte.

 

Conheci Saramago no início da minha carreira jornalística, fiz-lhe duas longas entrevistas e nunca deixei de acompanhar o seu percurso. Orgulhei-me como português do Nobel que recebeu em 1998 e achei comovente a mensagem de amor pelos avós analfabetos que deixou à requintada assistência que o escutava em Estocolmo.

Conhecia, claro, a sua outra faceta. A dos editoriais incendiários no Diário de Notícias em 1975. Li-os todos, no arquivo do jornal, com crescente perplexidade. E sempre me questionei até que ponto Saramago ainda se reveria neles tantos anos depois do Thermidor de 25 de Novembro de 1975.

Julgo que jamais terei resposta cabal a esta questão.

Esse Saramago iluminado pelas "vanguardas" revolucionárias parecia ressurgir esporadicamente em certas páginas dos seus Cadernos de Lanzarote, essencialmente um exercício falhado de diarística, e sobretudo num romance obviamente menor intitulado A Caverna. É um romance profundamente ideológico, amargo e ressentido com as sociedades contemporâneas, descrente da economia de mercado e do seu corolário político, a democracia liberal. Vi lampejos do editorialista de 1975 naquele libelo contra a Corporação, representada por um imponente arranha-céus citadino e aquela absurda nostalgia de uma sociedade que andava ao trote de uma carroça, desconfiada da modernidade.

 

Devo ter lido pouco mais de um terço deste livro. Ia virando as páginas com progressiva relutância até não me apetecer mais. Já me encontrava então numa fase em que abandonava um livro a meio sem remorsos de espécie alguma.

Cada escritor tem direito de ter no currículo a sua Resposta a Matilde. É o caso da Caverna de Saramago.

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