Livros que deixei a meio (9)
A NÁUSEA
de Jean-Paul Sartre
Certa vez a revista francesa Lire perguntou a António Lobo Antunes por que motivo escrevia. A resposta foi lapidar: "Porque não sei dançar como o Fred Astaire."
Nunca esqueci esta frase -- um modelo de ironia, concisão, argúcia e engenho. Houve uma época em que também eu me questionava por que motivo lia tanto. A resposta que me parecia mais óbvia estava de algum modo relacionada com a frase que citei. Lia para um dia poder responder a um questionário desses com a mesma ironia, a mesma concisão, o mesmo engenho.
Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo, na adolescência, em que comecei a ler com regularidade simplesmente por me ter apercebido que essa era a melhor forma de captar a atenção das miúdas mais interessantes da turma. Não eram necessariamente as mais atraentes para outros, mas eram para mim. Eu andava com o Hemingway debaixo do braço, mas esse autor não parecia dizer-lhes nada.
Uma delas era devota de Jean-Paul Sartre. Estes eram os tempos, no Portugal do final da década de 70, em que parecia bem ter um maître a penser. Isto soa hoje tão anacrónico como a própria expressão, num tempo em que a cultura francesa cedeu por completo lugar à outrora tão odiada cultura norte-americana, omnipresente até à náusea.
Pois naquele tempo tão dicotómico não era assim. Havia direita e esquerda, francófilos e anglófilos, burgueses e proletários, classe operária e classe exploradora. Alguns destes termos, cunhados por Marx, eram dominantes no discurso de Jean-Paul Sartre, um dos seus principais divulgadores, sem dúvida o mais mediático à época.
Sartre definia as traves mestras da correcção política e fazia suspirar as meninas embaladas nas suas frases tão sonoras: "O inferno são os outros"; "a existência precede a essência"; "o homem está condenado a ser livre".
E eu vi-me condenado a saber alguma coisa a respeito dele para entabular conversa com a mais interessante do grupo. Nada interessado no existencialismo nem na "relação pouco convencional" que o papa da Rive Gauche mantinha com Simone de Beauvoir.
Comprei A Náusea, da Colecção Livros de Bolso Europa-América. Interrompi a leitura de M. Gallet, Décédé (lia no original Georges Simenon, autor que nunca me desiludiu) para mergulhar no primeiro e mais célebre romance de Sartre, publicado em 1938.
Mas logo nas primeiras páginas deparei com umas reticências que produziram em mim o efeito de um travão.
Sabem com certeza a que me refiro: houve um tempo em que os escritores, para não mencionarem determinada data ou determinado nome ou determinado local, substituíam essas referências por... reticências. Sempre considerei isso uma estupidez e nunca percebi a lógica de escrever assim.
Fui virando as páginas mas logo voltei atrás, às tais reticências. E achei um disparate aquela omissão ao nome ou ao ano (não posso confirmar agora, não tenho nenhum exemplar do livro à mão e faço questão de escrever todos estes apontamentos de memória).
Interrompi A Náusea. Até hoje. Foi, de todos os livros que deixei a meio, aquele que deixei maior porção por ler.
Isso também se explica pela circunstância -- vivíamos em 1979 -- de a aura de Sartre estar a extinguir-se com muita rapidez. Pois se ele nos garantira anos antes que a "exploração" do povo vietnamita se devia apenas à intervenção "imperialista" norte-americana, como se explicava o fenómeno dos boat people?
Nesse ano, largos milhares de vietnamitas fugiam em embarcações improvisadas da sociedade "socialista" instaurada pelos "libertadores" de Hanói. Travara-se uma rápida guerra entre o Vietname e o Camboja, também "socialista". E agora era a própria China que invadia o Vietname. Meses depois, a URSS igualmente "socialista" invadia o Afeganistão.
O "socialismo" também podia ser "imperialista"?
O guru não explicou. Começava nesses anos, devido a todos estes factos, o fim da hegemonia cultural da esquerda no Ocidente de que Sartre fora talvez o maior expoente. A sua morte física, no ano seguinte, acentuou o fim do seu prestígio como referência intelectual. Já não seria a minha geração a fazer-lhe vénias.
Continuei portanto sem ler A Náusea. Os seus Problemas do Marxismo, também da Europa-América, permaneceram igualmente intocáveis na minha estante. Mas anos depois gostei de conhecer o jovem Sartre que transparece d' As Palavras, uma das melhores obras de cunho autobiográfico que já li (outra foi Confesso que Vivi, de Pablo Neruda).
Bastante mais tarde, leria com muito interesse a polémica epistolar de 1951 entre Sartre e Albert Camus nas páginas da revista Les Temps Modernes que pôs fim à amizade entre ambos. E comovi-me com o fabuloso elogio póstumo no France Observateur do autor d' O Ser e o Nada ao seu antigo amigo, três dias após o trágico desaparecimento de Camus num acidente de viação, em Janeiro de 1960.
Concretizei o meu objectivo. Quando o ano lectivo chegou ao fim, tinha conseguido namorar sucessivamente com as duas miúdas mais interessantes da turma. Uma delas, fervorosa sartriana, viria mesmo a ser minha namorada por vários anos.
Um dia apercebi-me de que algo mudara nela: encontrei-a a ler O Velho e o Mar.




