Arrumar a biblioteca (VIII)
Dylan, Maigret e Vital Moreira
Nesta fase, procuro livros um pouco por toda a casa.
E a verdade é que os tenho encontrado nos mais diversos recantos: onze num armário da cozinha, 21 num velho divã, 16 numa gaveta, 49 no fundo de um guarda-fatos.
Ali a Cartuxa de Parma; acolá, Orgulho e Preconceito; adiante, Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (um livro que tanto procurei); na tal gaveta, entre outros, a Autobiografia de Norberto Bobbio e a História dos Estados Unidos desde 1865. E, claro, lá vêm à tona títulos tão diversos como Responsabilidade e Juízo, de Hannah Arendt, A Expansão Quatrocentista Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho, e a Pena Capital, de Mário Cesariny.
Entre os que estavam entrincheirados na cozinha incluíam-se o Livro de Bem Comer, de José Quitério -- oferta, em dia de aniversário, de um grande amigo de Macau --, e As Boas Receitas de Simenon e Maigret. Estes permanecerão na cozinha, como é evidente. Tal como a sala continuará a dar guarida à Bíblia, a Os Lusíadas, a um exemplar encadernado da Constituição da República Portuguesa anotada e comentada por Vital Moreira e Gomes Canotilho, e ao vetusto Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, grande hoje em dia só no espaço que ocupa.
Descubro mais livros repetidos. Luz de Agosto, de William Faulkner, e O Poder e a Glória, de Graham Greene, por exemplo. Mas este último sei porque o tenho a dobrar: o meu velho exemplar da Colecção Dois Mundos estava tão usado e tão gasto -- das leituras, das mudanças, das viagens -- que nem hesitei ao ver num escaparate a mesma obra, da mesma colecção, mas numa impressão nova.
Reparo nas datas que anotei no final: 3 de Abril de 1983 e 30 de Agosto de 2004, no primeiro; 13 de Julho de 2012, no segundo. Três décadas, três leituras do romance, três olhares necessariamente diferentes. Porque nunca lemos o mesmo livro da mesma maneira: a idade, o saber acumulado, as ilusões perdidas e as mais diversas circunstâncias alteram sempre a nossa visão de leitores e a nossa capacidade de valorizar o que ficou escrito.
Nestes casos não consigo desfazer-me do exemplar mais antigo devido aos sublinhados e às anotações que ali deixei. Sublinhados e anotações irrepetíveis.
Sim, porque eu tenho a mania de sublinhar livros. Hei-de falar disso noutro dia, com mais vagar.
Todos os discos servem para ir escutando enquanto se faz uma arrumação geral de livros?
Nem por sombras. Avanço com o primeiro exemplo que me vem à cabeça: fazer isto ao som de Bob Dylan dá pouco jeito. Porque Dylan serve para desarrumar, não é uma figura que inspire arrumações. Apesar de um dos livros que aguardam arrumação ser precisamente do inconfundível autor de Blowin' in the Wind.
É o primeiro volume das memórias de Dylan, intitulado Chronicles. Um paperback editado pela Simon & Schuster que em 2004 foi eleito um dos livros do ano por publicações tão diversas como o New York Times, o Washington Post, a Economist e a Rolling Stone, além dos jornais britânicos Guardian e Daily Telegraph.
Abro o volume ao acaso, deparo com o início do terceiro capítulo, intitulado "New Morning": "I had just returned to Woodstock from the Midwest from my father's funeral."
Dylan não sabe só agarrar o ouvinte: sabe também agarrar o leitor.
Mas para arrumar os livros prefiro outro som. Este que agora escuto: a gravação integral da música de Heitor Villa-Lobos para guitarra, com Turíbio Santos como solista.
Deixo-vos um excerto deste fabuloso disco. Dylan pode esperar.
Até amanhã.