Grandes contos (18): John Updike
As telenovelas e a literatura de cordel costumam parar precisamente no ponto onde o mundo de John Updike começa. Na fase (e na frase) "casaram e viveram felizes para sempre".
A melhor ficção contemporânea desvenda o lado oculto do conto de fadas, sem a menor concessão ao imaginário pseudo-romântico das revistas cor-de-rosa. E se há escritor capaz de nos transmitir sem lamechices nem ridículos sentimentalismos como é delicada e precária a frágil arquitectura das relações humanas, esse escritor é o norte-americano Updike (1932-2009). Galardoado com o Pulitzer em 1982 e 1991, mas injustamente esquecido pelo júri do Nobel, mais propenso a distinguir autores envolvidos nas chamadas grandes causas do que a literatura dos pequenos quadros da rotina quotidiana, sugeridos e não proclamados, como é próprio dos melhores escritores.
«O homem não foi destinado para viver no paraíso.»
Esta frase, que encerra um dos seus contos, pode servir de mote a muita da ficção de Updike, por onde desfilam todos quantos não chegaram a ser fadados pelo dom da felicidade, ao alcance de poucos. Talvez porque não exista sequer felicidade, mas apenas uma rara sucessão de momentos felizes. Que nem todos sabem aproveitar.
Alguns taxidermistas de turno, disfarçados de críticos literários, apressaram-se a colar neste escritor o rótulo de especialista em "ficções domésticas". Mas toda a etiqueta é redutora: a questão dos géneros, como nos ensinou Fernando Savater, é «mera ervanária académica».
Grande romancista, como se percebeu logo após a publicação do seu segundo romance, Corre, Coelho (1960), Updike também cultivou a arte do conto em livros como The Same Door, Pigeon Feathers e Olinger Stories, povoados de histórias de famílias fragmentadas e desamparadas pela esterilidade dos elos no mundo contemporâneo. A várias das suas personagens bem poderiam aplicar-se estas palavras de Giovanni Papini: «O homem paga a sua grandeza com muitas insignificâncias, a sua vitória com muitas derrotas, a sua riqueza com muitos fracassos.»
Há um conto dele -- com poucas páginas e de uma aparente simplicidade capaz de propiciar vários níveis de leitura, como é característica dos grandes contos -- a que regresso com frequência. Foi publicado originalmente em 1962 na revista New Yorker e reunido em volume só um quarto de século mais tarde, numa colectânea de contos intitulada Trust Me (Uma Questão de Confiança, na edição portuguesa da Difel, com data de 1988). O conto chama-se Unstuck -- Desatolado, na versão que lhe deu o tradutor, Daniel Gonçalves -- e tem um jovem casal sem filhos como personagens centrais.
Percebemos desde o início, por várias frases em discurso directo ou indirecto, que aquela relação está tensa. Mas o maior indício é-nos fornecido simbolicamente pela meteorologia: é de manhã cedo, caiu um nevão durante a noite, cercando a moradia de um vasto «deserto branco».
O homem chama-se Mark, mas o nome dela nunca é mencionado: como se, ao casar-se, tivesse sofrido um golpe irreparável na sua individualidade.
A marca de um grande escritor detecta-se em pormenores como este.
Aquele casal, residente num casarão demasiado grande e demasiado vazio da Nova Inglaterra, perdeu de vez a inocência do olhar -- algo vital para continuar a crer nas virtudes da partilha conjugal.
Sabemos isso por uma frase desgarrada que ela profere, como se pretendesse capturar fragmentos de felicidade há muito perdidos: «Eu costumava adorar tempestades de neve.» Ele, obviamente, ignora este súbito assomo de nostalgia e limita-se a pedir-lhe uma pá para tentar desobstruir o acesso à rua.
Ignorando os apelos dela, o homem insiste em ir trabalhar nessa manhã tão fria. Mas vê-se incapaz de utilizar o carro, cercado pelo manto de neve. Bloqueado fisicamente, bloqueado também num nível simbólico, incapaz de encontrar um meio de saída, Mark só conseguirá mover-se graças ao contributo da mulher sem nome neste conto que nos fala ao ouvido, quase num sussurro, sobre os ténues laços do amor. Além de nos recordar como é sempre desigual a luta do ser humano contra os intangíveis caprichos da natureza.
A capa da Time com John Updike em destaque é de 26 de Abril de 1968
Anteriores contos desta série:
O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith
Os Bons Serviços, de Julio Cortázar
Amor numa Rua Escura, de Irwin Shaw
Nevoeiro na Cidade, de Mário Dionísio
Empresta-nos o Seu Marido?, de Graham Greene