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Delito de Opinião

Livros que deixei a meio (8)

Pedro Correia, 14.09.13

 

O ESTADO E A REVOLUÇÃO

de Lenine

 

Muitos de vocês não fazem ideia do que isto era, mas acreditem: cresci num tempo em que havia comícios partidários todos os dias e em que se ouvia gritar nesses comícios uma trilogia de nomes que logo se fixaram na memória colectiva: "Marx! Engels! Lenine!" Certos partidos acrescentavam dois outros nomes: Estaline e Mao Tsé-tung (ainda ninguém escrevia Mao Zedong naquele tempo).

Muita gente, na minha geração, formou-se politicamente em reacção instintiva e quase visceral àqueles comícios frenéticos onde vozes desvairadas apelavam à ocupação imediata de terras e fábricas, socorrendo-se dos profetas que menciono acima como supremos argumentos de autoridade. As imagens difundidas até à exaustão nos telediários desse país pós-ditadura e pré-constitucional provocaram um efeito de saturação e acabaram por ser contraproducentes, causando uma espécie de cansaço generalizado por antecipação.

 

Já tinha há muito passado a adolescência quando li pela primeira vez, em versão espanhola, uma obra de Marx: O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Estaline, na minha geração, fora já equiparado a Hitler. E Mao nunca me atraiu, em poesia ou prosa, ainda antes de saber in loco, na década de 80, a marca devastadora que deixou na China.

Com Lenine, confesso, foi diferente. Lenine fundara um estado -- a União Soviética -- e instaurara ali, nesses anos de brasa, o chamado "terror revolucionário". Mas -- ao contrário de Mao, que morrera velho e decrépito -- a sua morte prematura permitia abrir espaço à especulação: o que teria sucedido na Rússia dos sovietes caso Lenine não houvesse sucumbido a uma hemorragia cerebral em Janeiro de 1924, com apenas 53 anos?

Dizia-se até que, já no seu leito de doente, ditara à mulher, Nadia, uma carta dirigida ao Comité Central em que alertava os camaradas contra a personalidade maléfica de Estaline.

O estalinismo seria uma sequência lógica do leninismo ou a sua perversão?

 

Nesses anos abundava em Portugal a chamada "literatura revolucionária". Lenine era um dos autores mais procurados. Uma editora, salvo erro a Estampa, lançou por essa altura O Estado e a Revolução: vi o livrinho em casa de um amigo, numa daquelas tardes intermináveis da adolescência em que falávamos muito de cinema e futebol, e pedi-lho emprestado. Ele disse-me logo que sim: percebi que não o lera nem fazia intenção disso.

Comecei a ler e logo vislumbrei naquelas linhas a capacidade encantatória de Lenine, um homem que transmitia a impressão de nunca padecer de estados d'alma. Era convicto, era categórico, parecia convincente. Na altura eu não sabia, mas tinha nas mãos um verdadeiro manual de conquista do poder. Política pura e muito dura. Sem contemplações face aos adversários ideológicos e dos "inimigos de classe". Lenine não se detinha perante as "ilusões" da chamada Revolução de Fevereiro de 1917, conduzida pela pequena burguesia com o apoio tácito -- mas cheio de reservas mentais -- dos sovietes. Que triunfariam escassos oito meses depois.

Mesmo sendo minoria, alcançaram o poder absoluto. E logo se apressaram a encerrar de vez o parlamento.

 

Lenine não chegou a concluir a obra. E eu não cheguei a terminar a leitura d' O Estado e a Revolução: pus o livro temporariamente de lado, para regressar a ele num futuro incerto, e a verdade é que não voltei a encontrá-lo. Perdi-o sem saber como. E sem o devolver ao seu legítimo proprietário, hoje cirurgião num dos principais hospitais de Lisboa e que (aposto) não terá voltado a pensar nele.

Para usar um termo caro aos leninistas, tratou-se de uma expropriação -- embora involuntária.

 

Acho curioso o paralelismo entre o livro que não acabou de ser escrito e que eu próprio não acabei de ler. Uma espécie de alegoria da revolução traída, que prometia libertar o ser humano para o condenar afinal a uma nova espécie de escravatura destinada a marcar como ferro em brasa todo aquele século contaminado pelo vírus totalitário.

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