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Delito de Opinião

A mulher, a bebé e o cão

José António Abreu, 10.08.13

A minha mulher quer um cão. Já tem uma bebé. A bebé tem quase dois anos. A minha mulher diz que a bebé quer o cão.

Há já muito tempo que a minha mulher quer um cão. Tive de ser eu a dizer-lhe que não podia ser. Mas agora a bebé quer um cão, diz a minha mulher. Talvez seja verdade. A bebé é muito chegada à minha mulher. Vão juntas para toda a parte, agarradas uma à outra com muita força. Pergunto à bebé: – És a filha querida de quem? És a filha querida do papá? – E a bebé responde: – Mamã –, e não se limita a dizer isto uma vez, repete-o vezes sem conta: – Mamã mamã mamã. – Não vejo porque é que hei-de comprar um cão que me vai custar cem dólares só para fazer a vontade ao raio da bebé.

A raça do cão que a bebé quer, diz a minha mulher, é um Cairn terrier. Os cães desta raça, diz a minha mulher, são presbiterianos como ela própria e a bebé. No ano passado, a bebé era baptista, isto é, a minha mulher levava-a duas vezes por semana ao Programa de Apoio às Mães da Primeira Igreja Baptista. Este ano é presbiteriana porque os presbiterianos têm mais baloiços e escorregas e essas coisas. Acho isto uma grande pouca-vergonha, e já o disse. A minha mulher é presbiteriana de gema desde a infância e diz que assim não faz mal; nos seus tempos de criança, ia à Primeira Igreja Presbiteriana de Evansville, no Illinois. Eu não ia à igreja porque era a ovelha negra. Os meus pais tiveram cinco filhos, e os rapazes revezavam-se no papel de ovelha negra, o qual foi ocupado pelo mais velho durante uns tempos enquanto estava na sua fase de bebedeiras ao volante ou outra coisa qualquer, e depois ficou mais cinzento quando arranjou um emprego ou então quando fez a tropa, nem sei ao certo, até que finalmente se converteu numa ovelha branca quando casou e teve um neto. A minha irmã nunca chegou a ser a ovelha negra porque era rapariga.

Donald Barthelme, início de Chablis, a primeira de 40 Histórias. Edição Antígona, tradução de Paulo Faria. Ortografia em desacordo.

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