Livros que deixei a meio (3)
RUMOR BRANCO
de Almeida Faria
Alguém ainda se lembra do nouveau roman? Certas correntes estéticas surgem no mercado ao som de torrentes de propaganda proclamando-se sempre novas embora já tresandem a velhas. É minha convicção firme que foi isso mesmo que sucedeu com o nouveau roman: novo apenas no rótulo e nas estratégias de marketing literário de que se rodeou, no final dos anos 50, quando a França dava - ainda sem saber - aqueles que seriam os seus últimos passos como potência quase hegemónica no plano cultural.
Eram pouco legíveis, essas obras que se propunham "revolucionar" a literatura. Na estética, tal como na política, ponho as maiores reservas às teses revolucionárias: é sempre preferível a evolução à revolução. Basta ver o que sucedeu na China de Mao durante a Revolução Cultural, que fez tábua rasa de tudo quanto cheirasse a "antigo": foram destruídos templos, palácios, monumentos de todo o género, para restaurar uma pretensa "cultura popular" expurgada de todo o vínculo ao passado. Este pesadelo durou apenas uma década, mas deixou estragos ainda visíveis na milenar cultura chinesa.
Também o nouveau roman prometia revolucionar - neste caso, a literatura. Abolia as estruturas narrativas tradicionais, a sequência cronológica em capítulos, a pontuação convencional, o clássico desfile de personagens, a presença de um narrador omnisciente. Abolia a trama, o enredo, o suspense - considerados artifícios destinados a distrair o leitor do que realmente interessava: a linguagem, considerada um fim em si próprio. O equivalente em cinema a um filme tão "seminal" (linguagem de certa crítica daquela época) como O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Robbe-Grillet. Não por acaso, também o principal mentor do nouveau roman. À luz desta corrente estética, todas as artes se equivaliam, todas eram intermutáveis.
Em Portugal, as novidades chegam sempre com bastante atraso. Mas neste caso nem aconteceu assim: em 1962 já havia o Robbe-Grillet português. Chamava-se Almeida Faria, um jovem prontamente celebrado como um dos maiores expoentes de sempre da literatura portuguesa. Tinha um livro, intitulado Rumor Branco, que foi recebido com fumos de genialidade. Novo Romance. Assim mesmo, em maiúsculas.
Eu não sou desse época, mas quase 20 anos depois, já o nouveau roman estava "gloriosamente empalhado" (tomo de empréstimo a justa farpa que Alexandre O'Neill dirigiu ao surrealismo), interessei-me por esse autor que parecia ter emigrado para uma ilha deserta: cedo celebrado, cedo lançado ao ostracismo.
Um dos meus escritores favoritos, Vergílio Ferreira, referia-se sempre a ele com indisfarçada admiração, prova de que era um intelectual generoso (fez o mesmo, por exemplo, com Lídia Jorge em 1980 no lançamento do primeiro livro desta romancista, O Dia dos Prodígios).
Descobri Rumor Branco numa Feira do Livro e trouxe-o de lá. Livro fininho, de escrita esparsa - até nisso a romper com o cânone do romance instituído no século XIX. Estava a preço de saldo, o que demonstra bem como são falíveis os ventos da moda. Já ninguém falava em nouveau roman nessa altura.
Chegado a casa, abri-o com interesse antes de qualquer outro. Não sei bem do que estava à espera, mas não era daquilo: uma escrita fragmentada, aforística, que parecia nadar em seco e contemplar-se no seu próprio vazio.
Li sem prazer duas dúzias de páginas e fiquei-me por aí. Há livros que se amam, outros que se admiram, uns poucos que se amam e se admiram em simultâneo. E há outros que nos deixam indiferentes: aconteceu-me com Rumor Branco. Creio aliás que Almeida Faria, apesar da polémica que desencadeou com este seu título de estreia, não ultrapassou o patamar de eterna promessa da literatura portuguesa. Um pouco mais de sol - e seria brasa. Não tem mal: aconteceu com muito boa gente.
Ignoro o que é feito do livro. Talvez um dia o retome, talvez não. O Novo Romance sempre me pareceu velho.
Imagem de baixo: fotograma do filme O Ano Passado em Marienbad (1961)




