Não citarás Beauvoir em vão
Cécile Kyenge, ministra italiana da Imigração, tem sido alvo dos actos mais abjectos. Há dias, Roberto Calderoli, vice-presidente do Senado, chamou-lhe orangotango. Na passada sexta-feira, atiraram-lhe bananas. Estes actos definem, naturalmente, apenas e só quem os pratica. A barbárie vem à superfície, desta vez, por Cécile Kyenge ser negra. A ministra da Integração poderia ter respondido, por exemplo, citando Simone de Beauvoir: não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus hábitos. Poderia e teria razão para isso. Todavia, Cécile Kyenge preferiu outro caminho. A citação seria um mero recurso retórico. Cécile meteu o discurso na realidade: com tantas pessoas a morrer de fome por causa da crise é triste desperdiçar comida assim. O sentido democrático e a maturidade cívica também são isto. O desapego de si, da sua posição formal como ministra e a sensibilidade que permite pensar em terceiros mesmo sob fogo cerrado. Acossada, não se defendeu a si própria, mas remeteu para o sofrimento de outros, ridicularizando assim, ainda mais, o gesto obsceno dos que a pretendiam ofender. Na resposta, Cécile foi simplesmente Cécile. Trata-se, obviamente, de uma chapada de luva negra que estalou na face dos energúmenos. Mas é, também, um exemplo para quem, a uns milhares de quilómetros de distância, ainda há umas poucas semanas, com altivez, desvio corporativo e insuflado sentido da própria honra, citou Beauvoir para chamar carrascos, de forma absolutamente desproporcionada, aos cidadãos que se manifestaram nas galerias da casa que se diz ser a da nossa democracia.