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Delito de Opinião

Lucky Lucas

Rui Rocha, 01.07.13

 

Diz-se por terras de Espanha que um Sol assim é de justicia. Como se a situação meteorológica extrema antecipasse, aqui pelo calor, noutros cantos pelo frio, pela chuva ou por outra manifestação exasperada da natureza, a prestação final de contas que, diz-se, todos devemos fazer ao Criador mais tarde ou mais cedo. Pois assim estamos, a um punhado de quilómetros de Almeria, expiando as nossas faltas às mãos impiedosas deste astro que nos vai torrando, cogitando que talvez fosse melhor fazê-lo, a final, de uma só vez e de uma vez por todas. O almoço foi frugal, mas mesmo assim pesa nas pernas. Ou será o alcatrão em chamas que nos derrete os passos. Há, ao virar da esquina, nesse callejón que se estatela lá mais abaixo num mar que parece ter furtado todas as cores ao arvoredo, uma promessa de bar. Na barra, desvio o olhar das tapas de pimento, aceituna y queso de cabra e das cañas que dois locais vão aquecendo, à conversa, antes de irem tentar a sorte na máquina tragaperras em que depositam diariamente toda a esperança e uma parte do subsídio de paro que ainda recebem. A entrada é subitamente tomada por uma sombra. O homem de pernas arqueadas entra castigando o soalho com os tacões. Empurra o banco junto à barra com a ponta da bota. E senta-se cuidadosamente mirando em todas as direcções. Parece ter escolhido deliberadamente o único lugar em que é possível ver todo o bar. Aquilo que a vista não alcança directamente, encontra no espelho. Com a mão, desloca ligeiramente o chapéu para cima, num aceno imperceptível ao dono do local. Hola, Lucas. Qué te pongo?  Pues pá qué preguntas, Manolo? El carajillo de todos los días… Tem a voz rouca dos andaluzes, a fala cantada e o desplante desafiador. Crava-me os olhos azuis e dispara. Y tu de onde eres, forastero? Apanhado de surpresa, engasgo-me com a água gelada, e explico em cristiano ronaldês que de Portugale, qué por supuesto y hombre qué de vacaciones. A conversa prossegue entre curiosidade de Lucas e orações entrecortadas da minha parte. Neste jogo parece existir uma regra tácita que me obriga agora a devolver-lhe as perguntas. Y ustiede qué hace en la vidia? Pues, hombre, yo soy coubói. Arregalo os olhos de espanto. Enquanto as colunas de som vão misturando o ar frio do ar condicionado com a melodia de Get Lucky dos Daft Punk, Lucas explica-me que trabalha agora no deserto de Tabernas, a alguns quilómetros dali. No local onde foram filmados os westerns de Leone, existem agora réplicas de cidades do velho oeste onde se fazem espectáculos de índios e cow-boys para turistas. Vamos, qué he tenido suerte, afirma Lucas. Quando a bolha da construção rebentou, também foi para o paro, como os outros dois que vão aquecendo as cervejas ali mais ao fundo. E se não fosse o trabalho de cow-boy, pois aqui estaria a depositar toda a esperança na máquina tragaperras do bar do Manolo. Enfin, qué soy Lucky Lucas, diz com um sorriso nos lábios, enquanto vai roendo ao canto da boca uma barba de milho que não sei de onde diabo apareceu. Lucky Lucas despede-se: qué lo pases bien, forastero. Sai do bar com um pontapé na porta vai-vem de madeira. Fecho os olhos e imagino-o a montar um cavalo branco numa rua empoeirada, rumo a lugar nenhum. Pago a água gelada e saio a correr. Esfrego os olhos para me habituar à intensidade da luz. Lá fora não há ninguém. Caminho lentamente em direcção ao mar. Lá ao fundo, a carcaça enorme de um prédio abandonado a meio da construção. Atrás de mim, fica o barulho de portas que se fecham. Quando me volto, ainda vejo o Manolo a dobrar a esquina apressadamente depois de encerrar o Last Chance.

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