Livros que deixei a meio (2)
D. JOÃO VI - O HOMEM E O MONARCA
de Mário Domingues
Não sei se convosco sucede o mesmo: eu sempre gostei muito de histórias. E de histórias da História em particular. Já adulto, detestei aqueles volumes de História muito moderna, cheios de gráficos, de estatísticas, de "estruturas" longas e curtas - sem reis, sem personagens heróicas, quase sem cronologia, sem datas a assinalar o início e o fim de eras inconfundíveis, com toda a individualidade diluída em conceitos de pretenso rigor científico, como o de "luta de classes".
Eu gostava era da História à moda antiga. Das biografias, sobretudo.
Comecei ainda miúdo devorando as biografias escritas por Adolfo Simões Müller que encontrava na biblioteca escolar. Tendo feito todo o ensino obrigatório em escolas públicas (nove, por força de circunstâncias familiares), ainda hoje me espanto com a qualidade das bibliotecas existentes nesse tempo de notórias dificuldades materiais que ajudavam a suprir parte das deficiências do chamado "ensino formal" (que sempre me soube a pouco). E gostaria de saber se essa saudável tradição se mantém, tantos anos depois.
Lido Simões Müller (Infante D. Henrique, Camões, Serpa Pinto, Gago Coutinho...), passei para as biografias feitas pelo professor Agostinho da Silva, muito antes de voltar a ser famoso após décadas de exílio ao ser descoberto pela televisão. Eram livros de "divulgação", como então se dizia, de uma editora (Sá da Costa?) que fazia questão que parecessem ainda mais antigos do que eram. Li as biografias de gente tão diversa como Lincoln, Zola, Leopardi, Pestalozzi: lembro-me, ainda hoje, da impressão que me fez a morte acidental de Zola, em 1902, intoxicado pelo fumo de uma lareira...
Depois, claro, foi o tempo de Oliveira Martins - talvez o maior historiador português de todos os tempos. Nun' Álvares, Os Filhos de D. João I, Portugal Contemporâneo... Foram livros que me fascinaram, numa fase posterior. Um deles - creio que a biografia de D. João II - foi deixado muito incompleto devido à morte prematura do autor, o que sempre lamentei.
E havia Mário Domingues. Pouca gente saberá hoje quem era, mas nas décadas de 40 a 60 foi um autor muito popular, grande produtor de biografias que antecedeu (sem ecrãs de televisão nem a eloquência discursiva que lhe esteve associada) a fama de José Hermano Saraiva.
Mário Domingues era de uma escola histórica muito anterior à dos Annales, cheia de estruturas e dados demográficos e estatísticas sobre as variações das colheitas agrícolas. Via a História em termos técnicos como uma disciplina da literatura e em termos conceptuais como o fruto da acção de uns quantos indivíduos considerados excepcionais.
Não devemos analisar desta forma os acontecimentos históricos, sabemos hoje bem. Mas nunca perdi a convicção de que é fundamental recuperar as virtudes da narrativa no ensino da História. É uma convicção que me vem seguramente desses tempos em que creio ter aprendido alguma coisa com autores tão diferentes como Simões Müller, Agostinho da Silva e Oliveira Martins.
Mas regressemos a Mário Domingues. Tomei conhecimento com ele também através da biblioteca escolar, em terras longínquas. Ele sabia recriar figuras históricas - D. Afonso Henriques, D. João IV, D. João V, o Marquês de Pombal, D. Maria I - como se fossem personagens de ficção. Não era tanto o rigor histórico que procurávamos nessas obras, mas a capacidade de nelas descobrirmos insuspeitas virtudes romanescas em personalidades essenciais da nossa História.
Anos depois, em Lisboa, reencontrei as obras dele na montra de um alfarrabista nas Escadinhas do Duque. E passei a abastecer-me regularmente desses livros - nada baratos - nessas minhas incursões periódicas a um local que está associado ao início da minha actividade profissional em Lisboa, pois trabalhava lá perto.
Um dia trouxe desse alfarrabista um livro que, ao contrário de todos os outros, só me agarrou até meio. Era a biografia de D. João VI, um dos nossos reis mais controversos. Li-o exactamente até meio: encalhei numa página da qual não consegui passar.
O livro permaneceu esquecido no fundo de uma estante. Entretanto fui lendo muita coisa relacionada com essa época, incluindo esse campeão de vendas no Brasil que foi (e é ainda) 1808, de Laurentino Gomes - excepcional narrativa desse primeiro ano da instalação da corte portuguesa no Brasil, embora não disfarce algum preconceito contra a antiga potência colonizadora.
Esse livro fez-me regressar ao velhinho D. João VI - O Homem e o Monarca. Havia pontos de contacto entre ambas as obras, o que me conduziu à releitura. Mas não recomecei onde ficara, cerca de década e meia antes: parti novamente do zero, na esperança de o ler de um fôlego.
Assim parecia ser nos primeiros dias. Até que parei. Exactamente a meio, exactamente no ponto em que havia parado antes.
Julgo que nesta fase Mário Domingues tinha perdido o gosto por escrever biografias: limitava-se a encher páginas. Aqui socorreu-se sobretudo de uma obra que também foi muito útil a Laurentino Gomes: D. João VI no Brasil, de Manuel de Oliveira Lima. Mas Domingues cometeu um pecado mortal enquanto escritor: citando o original, passou a transcrever largos excertos dessa obra, sem os integrar devidamente na sua própria narrativa. Resultado: perdi pela segunda vez a vontade de ler o livro.
Pode ser que um dia o retome. Mas tenho a certeza de que não voltarei ao zero. Para não o deixar a meio outra vez.
As imagens foram recolhidas, com a devia vénia, dos blogues Torre da História Ibérica, Nesta Hora e Portal da Informação.