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Delito de Opinião

À beira do arco-íris

Pedro Correia, 08.06.13

 

Retemperar energias no regresso cíclico às raízes. Contemplar o panorama que fixei desde a mais remota infância. Respirar o ar da serra. Escutar de novo o sotaque da região, praticado com desenvoltura por parentes e amigos. Ver as cerejas prontas a colher, transbordando das árvores, na encosta norte da Gardunha. Mirar fotos antigas, vindas dos confins dos tempos, fixando instantes de eternidade.

Verificar o que mudou, reparar no que permance.

Comer devagar, matando saudades da gastronomia beirã, à mesa da Hermínia. Peço um arroz de carqueja com enchidos da região que traz um rasto de tempos imemoriais, quando a "cozinha de autor" ainda não tinha sido inventada e a arte culinária era transmitida através de inúmeras artesãs anónimas, junto às panelas e frigideiras, geração após geração.

 

Acabo de beber meia garrafa de tinto, o Praça Nova, produzido pela adega do Fundão. Restaurante quase cheio. Uma senhora de idade muito avançada marca mesa para um almoço de grupo, amanhã às 13. "O que tem?" Cabrito assado no forno. "Muito bem. Mas que seja mesmo cabrito: não quero borrego."

Na mesa ao lado, um dos ídolos da minha infância, baluarte da defesa do Sporting, um dos homens que trouxeram para Portugal a Taça das Taças. Apetece-me felicitá-lo pelas emoções futebolísticas que me proporcionou em garoto. Mas ele sai primeiro, fica para outra ocasião.

Chegam turistas perguntando a direcção para Alcongosta. Vêm à fresca, apesar do tempo incerto.

"Temos pudim de cereja à sobremesa." Venha ele.

Um periódico de Lisboa que tenho à minha frente, com aquela esquizofrenia típica de um certo discurso jornalístico, alternando prosas apocalípticas sobre a crise com o elogio destemperado a "spots da moda" onde uns tantos consomem como se não houvesse amanhã, gaba as putativas virtudes gustativas de um bar recém-inaugurado, enaltecendo um "combinado de sushi, sashimi, makis e nagiris" por módicos vinte e tal euros - muito mais do que pagarei por este almoço inteiro, inigualável, num local que felizmente jamais figurará no circuito das bempensâncias gastronómicas.

 

Sem horário, sem obrigações, sem programa: sinto-me como se tivesse todo o tempo do mundo. O que fazer? Talvez a digestão, num longo passeio a pé. Sentir a brisa leve mordiscando a pele. Percorrer veredas remotas, como nas intermináveis tardes inundadas de sol da minha infância.

No alto da serra, espreita um vistoso arco-íris. Como se estivesse a puxar-me para lá.

 

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