O espanto de o mundo continuar a não ser plano
Vivo num mundo cada vez mais plano. Horas e horas por cada dia num computador, num tablet, num smartphone. Um mundo assim não tem cheiro. As imagens não têm profundidade. O som não reverbera. Penso nisso enquanto a noiva entrega um ramo à mãe dela e o noivo um outro à mãe dele. Aqui as paredes têm manchas de humidade. As estatuinhas dos santos têm rugas. Amolgadelas. Falta-lhes tinta. Tão certo como os santos terem pecados. As notas do piano arredondam-se contra as paredes da nave principal. A voz da Sara, chamemos-lhe assim porque quem canta desta maneira há-de ter um nome e convém-nos que seja bíblico, reencarna em torrente nos nossos ouvidos. Choro. Choramos todos quando a noiva entrega o ramo à mãe e o noivo outro à mãe dele. O templo, este compasso de espera, as orações, a homilia, o ritual do casamento, dão-me tempo. Tempo para os meus pensamentos, tempo para retomar o uso de faculdades sensoriais que trago tão embotadas. Nesta igreja, Bom Jesus, não reencontro o caminho para Deus. Mas estabeleço uma ligação para lá deste mundo plano, directamente ao mundo real, às sensações. E choro. Porque é impossível não chorar quando o filho ou a filha de alguém casam e se despedem da sua mãe. E porque só é possível chorar quando regressamos aos nossos sentidos.