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Delito de Opinião

Crónica da Feira do Livro

Patrícia Reis, 01.06.13

A multidão aperta-se para ver os saldos na Praça Leya, há fila para os gelados e um senhor que teima em passear um cão minúsculo que, decerto, não sairá dali mais culto. Aflito? Isso é fatal. O desgraçado do bicho é mínimo e encara os homens e as mulheres, as crianças que podem - por ser dia da criança - comprar um livro. Baratinho, diz uma mãe. Depois fica para lá e dizes que lês e nunca lês, acrescenta naquele tom que certas mães têm, um tom que é o poder de desprezar as crianças. Mais tarde, num suspiro, dirá a uma amiga enquanto faz a manutenção das unhas de gel que o marido acha que custam 10 euros, quando custam 35: Fiz tudo para que o meu filho fosse um leitor.

Pois. Ok. Certo.

Tento fazer que não vejo, que oiço mas não oiço. Há uma senhora muito simpática que quer tirar uma fotografia. Um ex ministro da Justiça, do alto dos seus 70 anos, que se levanta, quase numa alegria infantil, e grita-me: Ó Patrícia, sou um sucesso, vendi dois livros. Ao contrário da Fernanda Serrano, digo-lhe eu enquanto admiro as curvas da senhora num daqueles placards de cartão, bem recortado, para se ver o que é preciso ver quando uma mulher bonita exibe um vestido vermelho. Nada contra a senhora, nada contra o vestido vermelho, por isso decidi que ia tirar uma foto por ali, para ver como fico. Não fico nem mal, nem bem, fico verde. Sim, sim. Verde, por excesso de sol. Explicam-me que é o excesso de sol que faz com que um poster com as minhas trombas esteja verde. Ao lado, o desgraçado do enorme poeta que é Nuno Júdice, está igualmente verde. Talvez a Rainha Sofia tinha sido indigesto, diz alguém ao meu lado. Os risos da ordem. O Nuno Júdice está de parabéns, mantendo o tom de pele ou parecendo mais marciano, eu estou ali ao lado, por ser uma princesa, e por solidariedade. Faço uma foto para o Instragram. O editor sobressalta-se, ai que não fica bem. Fica, fica, que estas coisas são para levar com ligeireza. Olhe, a senhora foi no outro dia à televisão? Pode ser, não sei a que se refere. Mas não tem cancro, ou tem? Não, eu não tenho, a Fernanda Serrano já teve e está ali o livro, não bastassem as revistas, para o comprovar. Ai, obrigada, mas sabe que a sua cara não me é estranha. Escreve sobre o quê? Na minha cabeça, a frase da minha mãe: merda, cagou-a o cão. Escrevo sobre pessoas, sobre o que me perturba. Ah, isso deve ser muito difícl. Pois. Fico então um pouco mais verde, alguém me traz um perna de pau, eu lembro-me que Johnny Depp largou a mulher e que é uma pena que não esteja ali a fazer de pirata. Há algo de circo em tudo isto? Não, meus amigos, eu já vi de tudo na feira, mesmo uma senhora de calções mini, sapatos de salto alto e chapéu largo, com um pacote de pipocas na mão, a pedir a um escritor de referência se ele não se importava que ela se sentasse ali ao seu lado, ela que tinha escrito (ou alguém por ela) um livro sobre a sua vida enquanto stripper. O escritor respondeu: Importo-me, importo-me muito, eu dispo a alma para escrever e há décadas.

A moça acabou por se sentar uns metros à frente e todos - sem excepção - admirámos a extensão das suas pernas e o cruzar suave, o sorriso lindo de boca vermelha que come pipocas. Para quê a literatura, meu Deus?, pensei então. A moça das pipocas não fez furor, temos pena, mas não temos passarinho e a feira este ano é sobre a crise ou as conversas são sobre a crise. Até a Quidnovi, editora com edital publicado a pedir insolvência, com doze páginas de credores, entre eles esta vossa amiga, brilha na feira, num lançamento de um livro de um desgraçado que, obviamente, não percebeu que não será distribuído e que nunca verá um tostão. O vento assobia, como escreveu Lídia Jorge, porém não vejo gruas, apenas a bandeira lá no topo. Está na minha hora. Como a fartura que não me dará um grama mais e vou-me. A feira do livro? Um evento cultural. Amanhã regresso. 

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