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Delito de Opinião

Grandes romances (6)

Pedro Correia, 05.05.13

 

FAZER DAS FRAQUEZAS FORÇA

As Vinhas da Ira, de John Steinbeck

 

«Eu vi a miséria do Meu povo no Egipto e ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores. Conheço, pois, a sua dor. Estou decidido a libertá-lo das mãos dos egípcios e a conduzi-lo para uma terra fértil e espaçosa, uma terra que mana leite e mel.» Êxodo, 3: 7-8

 

A pobreza foi inúmeras vezes abordada na literatura - tanto em obras de ficção, com destaque para os clássicos de Dickens ou Zola, como em livros de reportagem de grandes escritores que anteciparam em décadas Truman Capote no seu conceito de romance de não-ficção. Escritores como Jack London, com O Povo do Abismo (1903) ou George Orwell, com Na Penúria em Paris e Londres (1933). Obras-primas no seu género e que deveriam ser incluídas nos planos curriculares de todos os cursos de comunicação social. Porque os livros podem substituir-se à vida no despertar da consciência social, algo indissociável da profissão de jornalista.

Mas de todos os livros que li até hoje nenhum me revelou de forma tão crua, tão impressiva e tão inesquecível o drama da pobreza extrema - aquela que se confina ao limiar da sobrevivência física - como As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1939), enorme romance-reportagem sobre a saga de uma família empurrada pela fome da sua aldeia de Sallisaw, no Oklahoma, até à Califórnia, suposta terra da promissão. Há um fôlego épico nesta penosa travessia que vamos acompanhando com crescente angústia, à medida que os membros da família adoecem ou morrem, tornando-se inevitável um paralelo com a saga dos judeus no Êxodo. Com duas diferenças assinaláveis: Deus parece ter abandonado este povo errante e afinal a soalheira Califórnia acaba por não se revelar uma terra por onde escorrem o leite e o mel.

 

 

A família Joad, que partira quase sem nada num calhambeque prestes a desconjuntar-se após ter perdido a casa por falta de pagamento da hipoteca bancária e ter visto todas as sementeiras destruídas por acção dos ventos ciclónicos, passa a ter por lar a extensa fita de alcatrão que a conduzirá aos dourados laranjais da orla do Pacífico. São trabalhadores rurais há incontáveis gerações. Nada têm de seu: eis-nos perante os mais pobres dos pobres.

Ao longo do trajecto - nesta espécie de antevisão do On the Road, de Kerouac, em sentido inverso e sem qualquer intuito hedonista - vão desfilando paisagens de outros Estados norte-americanos: Texas, Novo México, Arizona. De todos surgem novas legiões de migrantes internos, deserdados da sorte, em desesperada busca de meios de subsistência no seu próprio país. Ao desaguarem na próspera Califórnia, verificam que não há ali lugar para todos. E uma nova luta começa então: a luta por um salário digno, disputado ao cêntimo pela mão-de-obra exangue num cenário em que a oferta de trabalho excede largamente a procura.

 

John Steinbeck (1902-68) escrevia sobre uma realidade que conhecia bem, na sua Califórnia natal. Ele próprio praticara mil ofícios numa minuciosa aprendizagem da vida que lhe seria muito útil como escritor. E nunca escreveu de forma tão apaixonada como neste seu vibrante fresco dos EUA na era da Grande Depressão nos anos que antecederam a II Guerra Mundial, em pleno mandato do presidente Franklin Roosevelt.

O futuro Nobel de 1962 já tinha publicado romances também comprometidos com os pobres, tanto em atmosfera rural (A um Deus Desconhecido, 1933) como em ambiente urbano (O Milagre de São Francisco, 1935), mas só neste revelou toda a dimensão do seu talento. O livro valeu-lhe fama instantânea: recebeu o Pulitzer e o Prémio Nacional de Literatura norte-americana. Também em 1939, cedeu os direitos de adaptação cinematográfica à 20th Century Fox, daí nascendo no ano seguinte um filme excepcional, sob a direcção de John Ford. A obra-prima da literatura encontrava prolongamento natural na obra-prima do cinema (a foto que encima este texto é desse filme, protagonizado por Henry Fonda).

 

As Vinhas da Ira é um livro escrito com um arrebatamento quase juvenil, atento às particularidades do discurso oral, das diferentes pronúncias, das falas geracionais. Um livro dotado de uma original estrutura narrativa: os capítulos em que acompanhamos o trajecto dos Joad, escritos invariavelmente na terceira pessoa, alternam com outros em que o autor nos vai transmitindo impressões e dados sobre a América e a sociedade do seu tempo, numa cumplicidade acrescida com o leitor que o leva a abandonar o registo impessoal.

É um livro com imperfeições narrativas: uma personagem secundária, adjunto de xerife, chega a ter três nomes - Joe, John e Mike; o irmão mais velho de Tom, Noah, desaparece na página 215 de forma pouco credível e nunca mais saberemos dele. Mas é um livro inconfundível na sua autenticidade e na urgência de nos relatar uma ficção ancorada em factos. E com um invulgar poder descritivo: não conheço nenhum outro romance que nos seja tão capaz de transmitir uma sensação física de fome. O que diz tudo sobre o mérito do autor, editado desde os anos 40 em Portugal, onde As Vinhas da Ira foi o segundo título da popularíssima colecção Dois Mundos.

Por mim, gostaria que a editora Livros do Brasil actualizasse a velhinha tradução de Virgínia Motta, o que ainda não sucedeu no recente lançamento da obra completa de Steinbeck entre nós.

 

Se há romance onde pulsa a vida, mesmo quando as suas personagens estão no limiar da morte, é este. Um romance onde nos sentimos também a desfilar estrada fora com o clã Joad, encabeçado por Tom e pelo seu pai, Tom como ele. Lá vão a mãe, a avó, o orgulhoso avô William James Joad, os irmãos Noah e Al, a irmã Rosaharn, os miúdos Ruthie e Winfield, o tio John Joad, o cunhado Connie Rivers e tantos outros que se juntam à caravana.

Fabuloso mosaico de uma América em transição, a América rural que bateu no fundo mas sonha levantar-se, quer levantar-se, ousa levantar-se em resposta a uma voz de comando que vem do mais fundo de si própria, contra todas as inclemências do tempo, contra todas as prepotências dos poderosos. Uma América que faz das fraquezas força para demonstrar que nenhuma adversidade a derrubará.

 

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Outros textos desta série:

O Velho e o Mar - Um homem destruído mas não vencido

O Poder e a Glória - Ler para crer

Mrs. Dalloway - Esplendor na relva

Santuário - Sombras profundas num Sul sem sol

Pais e Filhos - Voz do sangue, voz da terra

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