Apanha-se mais depressa um falso moralista do que um coxo
Ao demitir-se de produzir leis claras, e de clarificar as próprias leis que produz, a Assembleia da República causa sérios danos ao sistema jurídico-institucional tal como foi arquitectado em Portugal, com a clássica divisão de poderes, e no limite à própria democracia, permitindo que por esse motivo a todo o momento as decisões dos tribunais comuns condicionem escolhas dos decisores políticos na sua específica esfera de actuação.
A lei nº 46/2005, de 29 de Agosto de 2005, que impõe a delimitação de mandatos autárquicos, é muito curta mas foi muito mal redigida. Porque, pela sua ambiguidade, permite o entendimento de que visa o cumprimento de uma função em abstracto em vez de a confinar à delimitação territorial a que se destina. Ao recusar a clarificação que se impunha, o órgão legislativo remeteu a sua interpretação para os tribunais. Que, como era de pressupor, têm "julgado" cada qual a seu modo.
Escrevo "julgado" entre aspas porque considero absurdo haver decisão judicial sem corpo de delito: neste caso o tribunal decide sobre coisa nenhuma, ou seja sobre candidaturas que ainda não existem por não terem sido formalizadas. Há apenas declarações de intenções, nada mais que isso. Não admira, neste contexto, que ocorram decisões num sentido em Lisboa e Porto, e outras em sentido oposto em Loures e Tavira.
Como já escrevi aqui, não tenho dúvidas: esta matéria subirá ao Tribunal Constitucional, que considerará improcedentes as participações do Movimento Revolução Branca.
Porquê?
Porque não pode haver limitação de direitos políticos recorrendo a interpretações extensivas da letra da lei. Este é um princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-político.
A verdade é que a questão dos direitos nunca deve ficar fora deste debate. Por ser anterior e posterior a qualquer outra. O que está aqui em causa, seja qual for o partido (e há dois partidos visados nas providências cautelares em curso, o PSD e o PCP), é uma interpretação da lei no sentido de restringir ou não direitos políticos.
Acompanho, naturalmente, o pensamento do constitucionalista Vital Moreira nesta matéria: «A lei, tal como está, só proíbe a acumulação de mais de três mandatos seguidos na mesma câmara ou na mesma junta de freguesia. E penso que isso faz sentido, se se pensar que o objectivo da lei é evitar a perpetuação de políticos nos mesmo cargos mercê das dependências e interesses criados em virtude do exercício do cargo, o que não sucede, ou sucede em medida marginal, se se tratar de autarquia diferente, ainda que vizinha.»
De resto, seria ridículo que o presidente da Junta de Freguesia da Sé, no Porto, fosse impedido de se candidatar a presidente da Junta de Alvalade, em Lisboa, ou que o presidente da Câmara Municipal do Corvo se visse impedido de concorrer à presidência da Câmara de Figueira de Castelo Rodrigo por já ter sido autarca durante três mandatos consecutivos nos Açores. Mas ambos podendo sempre candidatar-se a deputados na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu, ou até à Presidência da República, sem qualquer impedimento legal.
Não deixa de ser irónico, entretanto, que o cavaleiro branco do movimento da mesma cor seja o ex-mandatário da re-re-re-re-re-re-re-recandidatura de Narciso Miranda em Matosinhos após 29 anos na presidência deste município.
Ironia das ironias: quem hoje combate os "dinossauros" pelejou ontem pela manutenção em funções de um dos dos maiores tironassaurus rex de que há memória no nosso poder local. E proclama, no palanque de um comício, «não poder recusar um convite de Narciso Miranda».
Por outras palavras: apanha-se mais depressa um moralista de ocasião do que um coxo. Haja paciência para os aturar: eu já a perdi.