Duas acusações recorrentes
Passos Coelho e Vítor Gaspar não conhecem o país.
Com uma parte desta acusação é fácil simpatizar: eu também preferiria que a carreira profissional dos actuais líderes políticos fosse mais rica. Mas convém não ter ilusões: em Portugal como noutros países (afinal, que carreira fora da política teve François Hollande, essa momentaneamente imprescindível referência da esquerda?), os líderes políticos emergem dos partidos, pouco mais tendo feito na vida que não política. Nem sequer é difícil perceber a razão: muitos empresários e gestores preferem quedar-se na sombra, beneficiando de um regime de interesse mútuo, e os restantes, aqueles verdadeiramente dinâmicos e competentes, não têm tempo nem apetência para os meandros insalubres do jogo político (excepção feita a esse expoente da qualidade governativa e do conhecimento das necessidades dos cidadãos chamado Silvio Berlusconi, evidentemente). Esta última razão aplica-se também a médicos, académicos, juristas, economistas, cientistas, contabilistas, funcionários de escritório, comentadores televisivos e surfistas. Sendo que conviria reconhecer um ponto importante: quando muito, a diferença no conhecimento do «mundo real» – ou, noutra expressão adorável, do «país real» – entre políticos como Passos Coelho ou Vítor Gaspar (ou António José Seguro) e a maioria dos médicos, académicos, juristas, economistas, cientistas, contabilistas, funcionários de escritório, comentadores televisivos e surfistas não ultrapassa dois ou três pontos numa longuíssima escala – e estou a ser simpático para os médicos, académicos, juristas, economistas, cientistas, contabilistas, funcionários de escritório, comentadores televisivos e surfistas. Na verdade, quem se pode reclamar da capacidade de conhecer o «país»? Mais: o que é «o país»? Um pescador de caxinas, um maquinista da CP, um doutorado pela Católica, um reformado sentado num banco de jardim, um broquista da indústria da cortiça, o Fernando Ulrich, o sem-abrigo que dorme junto à porta do balcão da Praça da Galiza do BPI (no kidding), o proprietário de um café em Olhão, um investigador bolseiro, o emplastro que aparecia na televisão atrás de políticos e desportistas, um elemento dos No Name Boys, o António Lobo Antunes, o pensionista que, em conluio com o patrão, passou anos a declarar apenas três dias de trabalho por semana e agora se queixa do montante da pensão de reforma, uma dona de casa de Castelo de Vide, um cirurgião da unidade cardiotorácica dos Hospitais de Coimbra, um pastor da Serra da Estrela, a presidente da Assembleia da República e a sua reforma aos 42 anos, o vimaranense que gritou «Messi, Messi, Messi» porque o Ronaldo não lhe ligou às miúdas? Ou será o próprio Ronaldo e o seu Lamborghini Aventador? O país é demasiadas coisas para que alguém possa reclamar conhecê-lo bem e não são três, dez ou vinte anos numa empresa (ou em duas ou em três), ou numa universidade, ou num escritório de advocacia que permitem conhecê-lo. Não da forma como parecemos exigi-lo aos líderes políticos. Mas talvez consigamos chegar a uma resposta satisfatória acerca do que significa «o país» e, muito especialmente, «conhecer o país» notando que Sócrates, com o seu currículo de ligações a câmaras municipais e a projectos manhosos, com as suas políticas beneficiando invariavelmente os empresários amigos e as classes habituadas a serem prioritárias em qualquer decisão governamental, raramente ouviu a acusação. Deve ser isto, então, «conhecer o país»: estar mergulhado nos seus vícios e disponível para os perpetuar. De resto, só assim se entende que alguns comentadores incluam nos pontos negativos a circunstância de Passos, Gaspar e Seguro, para além de nunca terem tido um emprego «normal», nunca terem sequer desempenhado cargos em governos anteriores ou autarquias – o que, equivalendo a acusá-los de fazerem parte do sistema por não terem desempenhado um papel oficial no sistema, tem lógica porque, na realidade, o que toda a gente continua a desejar é continuidade: as políticas e a retórica do costume. Só que Portugal não precisa de continuidade. Precisa de mudança. E, infelizmente, para a implementar, talvez Passos – como muitas pessoas em torno dele; como Seguro – ainda conheça o país demasiado bem. Só assim se explicam a força inabalável com que avançou para os aumentos de impostos e todas as dúvidas que parecem restar-lhe quanto ao corte da despesa.
Eles só olham para os números; as pessoas não são números.
Depois de tantas previsões falhadas por parte de Vítor Gaspar, esta parece hoje uma acusação incongruente mas, há três ou quatro meses, o Bloco de Esquerda, benza-lhe Deus o voluntarismo, até colocou a segunda parte da frase num cartaz. É verdade que, nas últimas décadas, à medida que as pessoas iam conseguindo melhores níveis de vida do que em alguma outra época da História, o calor humano parecia descer. A posse – nisto os marxistas tinham razão – implica egoísmo. É também verdade que muita gente em cargos de responsabilidade possui mais bagagem teórica do que experiência prática. Mas o nosso problema não advém de os nossos governantes olharem demasiado para os números. Pelo contrário: o problema nasceu ou, pelo menos, agravou-se muito para além do necessário por, ao longo de anos, não terem olhado o suficiente. Tivessem-no feito, e tivessem agido em função do que viam, e as pessoas estariam hoje melhor. As mesmas pessoas que, não sendo números, deviam aprender que eles querem dizer algo, que têm consequências práticas nas suas vidas – e deviam aprender a exigir aos políticos que olhassem bem para eles e não apenas numa perspectiva de curto prazo. Mas ignorar os avisos (enquanto o pau vai e vem, folgam as costas, certo?) ou até, como no caso do Bloco de Esquerda, do PC, da CGTP, exigir continuamente medidas que agravam as hipóteses de «os números» virem a ter consequências nefastas e depois regurgitar clichés é tão mais fácil, não é?